1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 (5 Votos)
Gustavo Henrique Lopes Machado

Clica na imagem para ver o perfil e outros textos do autor ou autora

Alétheia

O mito do capitalismo como ‘sociedade de consumo’

Gustavo Henrique Lopes Machado - Publicado: Quarta, 08 Abril 2015 22:35

Popularizou-se, no século XX, a ideia do capitalismo como uma "sociedade de consumo".


Essa concepção, completamente ausente em Marx, apesar de comumente atribuída a ele, mostrou ter longo alcance, estando presente nas elaborações de uma grande gama de autores que vai desde os pais fundadores da Escola de Frankfurt, Theodor Adorno e Max Horkheimer, passando por Hannah Arendt até autores mais recentes como Fredric Jameson e Zygmunt Bauman. De fato, nada parece mais coerente do que o capitalismo considerado como e enquanto uma sociedade de consumo, afinal, a irrefreável marcha do capital rumo a uma maior valorização faz multiplicar, dia a pós dia, a quantidade e diversidade de mercadorias com as quais nos defrontamos e, no mais das vezes, estas se inserem em nosso cotidiano como uma necessidade que não mais é possível evitar.

Apesar desses fatos óbvios, sustentamos que tal concepção é apenas superficial e, enquanto tal, falsa e enganosa. Tal ilusão, a de que vivemos na sociedade de consumo, é produzida, antes de tudo, em função de as relações sociais efetivas entre os indivíduos na forma social capitalista estarem veladas sob a forma rude e natural das mercadorias e do dinheiro e, por esse motivo, o que vemos diretamente é apenas a ampliação quantitativa e qualitativa das mercadorias consideradas em si mesmas, abstraindo o processo social que as fizeram emergir. Vejamos a questão mais de perto.

Em O Capital, Marx coloca o consumo como a realização do valor de uso das mercadorias. Apesar de a mercadoria possuir um valor de uso pelo simples fato de satisfazer uma necessidade humana de qualquer tipo – possibilidade de satisfação que está dada em sua própria corporalidade, em sua forma natural –, a realização desse valor de uso está dada em seu consumo, ato este que é posterior à sua troca, ou seja, a realização do valor de troca. Isso significa que se o valor de troca não se realizar, este fica também sem realizar o seu valor de uso. Enquanto mercadoria, para atingir a esfera do consumo, é necessário, antes, superar a esfera das trocas.

Já nesse momento abstrato da exposição de O Capital, o consumo aparece como subordinado à esfera das trocas, ainda que o valor de uso seja o suporte material do valor de troca sob a forma capital e o conteúdo material da riqueza em toda e qualquer forma de sociedade. Mais adiante, Marx analisa a fórmula da circulação simples de mercadorias: M-D-M (mercadoria-dinheiro-mercadoria). Nessa fórmula, o dinheiro aparece como mero mediador do processo, meio circulante, e sua finalidade é o valor de uso, isto é, a forma M-D-M tem por objetivo final o consumo, tendo como limite a satisfação das necessidades dos consumidores e o valor de uso. Por esse motivo, essa forma será sintetizada por Marx como: vender para comprar. Mas a forma M-D-M é apenas um momento abstrato e superficial das relações sociais capitalistas, visível na esfera da troca de mercadorias. Por esse motivo, Marx passa a analisar a forma D-M-D’, que traz consigo a especificidade do processo de troca de mercadorias sob a forma capital. Por esse motivo, essa fórmula é designada de forma geral do capital.

Na fórmula geral do capital, podem ser observadas transformações fundamentais. A mercadoria é comprada para ser revendida, e não mais para satisfazer uma necessidade individual. O dinheiro não funciona mais exclusivamente como moeda, mas como forma universal da riqueza, ou seja, é colocado na circulação pelo seu proprietário para dele se apoderar novamente. O que impele a realização desse circuito não é mais o valor de uso, mas o valor de troca. Nesse caminho, valorizar o valor infinitamente se torna a finalidade absoluta. Em suma, a satisfação das necessidades de consumo e o valor de uso transmutam-se em meros meios desse movimento insaciável de autovalorização.

É evidente que o valor de uso e a realização de necessidades humanas, historicamente constituídas por meio do consumo, não são literalmente jogadas para fora no modo de produção capitalista. O que diferencia essa forma social de todas as anteriores é que agora a produção de valores de uso não é mais subordinada pelas necessidades humanas, mas à valorização do valor. Em todas relações sociais anteriores ao capital predomina a produção voltada ao uso imediato dos produtos do trabalho, ou seja, o que rege a produção é o valor de uso e a prestação de serviços em espécie. Não sem razão, Marx (2011, p. 399) constata que “nunca encontramos entre os antigos uma investigação sobre qual forma de propriedade da terra, etc., é a mais produtiva, qual cria a maior riqueza”, pois a “riqueza não aparece como o objetivo da produção”. Todo esforço de investigação dos indivíduos imersos nessas formas sociais pretéritas se centram em atributos qualitativos, quer seja dos produtos criados pelo trabalho, enquanto valores de uso, quer seja dos indivíduos mesmos, como, por exemplo, a reflexão recorrente no mundo greco-romano sobre qual modo de sociedade cria os melhores cidadãos. Isso é assim, ainda que a riqueza possa aparecer, excepcionalmente, com o fim em si mesma, como nos povos exclusivamente mercantis “que vivem nos poros do mundo antigo” (MARX, 2011, p. 399). Nesse cenário, a riqueza é sempre “algo realizado em coisas, em produtos materiais, com os quais o homem se defronta como sujeito” (MARX, 2011, p. 399), ou seja, a riqueza se apresenta sempre em seu aspecto material, em sua configuração objetiva, em suas determinações concretas, diversamente da sociedade burguesa, na qual é representada por meio da abstrata figura do dinheiro.

Mesmo a exploração e o comando sobre o trabalho alheio têm por finalidade o gozo privado, a satisfação das necessidades dos respectivos proprietários. Mas não somente, afinal, nas formas sociais que precederam o capital, frente à riqueza considerada em sua determinação material, “o homem se defronta como sujeito”. Diante do capital, por sua vez, o homem que trabalha e o próprio capitalista figuram tão somente como um dos seus momentos. O transcurso rotineiro do processo de acumulação de capital ocorre à custa dos produtores, enquanto o capital se manifesta com a força de um sujeito automático. Em suma, as coisas de valor não mais se relacionam entre si como um meio para atender as necessidades humanas, ao contrário, os homens se relacionam entre si para atender as necessidades de valorização do capital e, por esse motivo, não mais se defrontam com os produtos materiais como sujeitos, e sim como algo externo, estranho, alheio à sua vontade.

Como se vê, para além das falsas aparências que emergem da esfera da circulação simples de mercadorias, quando esta é autonomizada, todas as formas sociais que precederam ao capital é que podem ser chamadas de sociedade de consumo. Por outro lado, nada mais falso que designar o próprio capital de sociedade de consumo. Estamos diante da sociedade da troca, do dinheiro enquanto forma universal e autonomizada da riqueza, regida pela sua acumulação de capital por meio da extração de mais-valia. De fato, em nenhum outro momento da historia humana o consumo foi tão pouco valorizado como nos dias de hoje. A enorme maioria dos indivíduos se satisfaz ao comprar essa ou aquela mercadoria, e o fetiche se esvai assim que esta é adquirida. Nos Estados Unidos, por exemplo, a chamada “pátria do consumo”, são comuns relatos de casas cujas garagens se encontram abarrotadas de mercadorias compradas e nunca consumidas. O sonho que povoa o imaginário da quase totalidade das pessoas sob essa forma social, capitalistas ou trabalhadores, não é a posse ou o usufruto de nenhum bem em particular, mas a quantidade de dígitos de seu extrato bancário.

Ilustramos essa diferença entre as sociedades antigas, as sociedades de consumo e a sociedade presente – a sociedade da acumulação – com o clássico livro O Declínio da Idade Média de Johan Huizinga. Nessa obra, o leitor desavisado é tomado pelo espanto ao se deparar com o profundo contraste do mundo medieval frente ao moderno. Paradoxalmente, na idade dita obscura, as coisas e pessoas são consideradas em conformidade com suas propriedades imanentes, ainda que parcialmente obscurecidas pelo cristianismo. Nesse cenário, o “contraste entre o sofrimento e a alegria, entre a adversidade e a felicidade, aparecia mais forte. Todas as experiências tinham ainda para os homens o caráter direto e absoluto do prazer e da dor na vida infantil” (HUIZINGA, 1996, p. 9). Distante da indiferença generalizada para com tudo e todos, qualquer “conhecimento, qualquer ação, estavam ainda integrados em formas expressivas e solenes, que os elevavam à dignidade de um ritual” (HUIZINGA, 1996, p. 9). “Nós, hoje em dia, dificilmente compreendemos a que ponto eram então apreciados um casaco de peles, uma boa lareira aberta, um leito macio ou um copo de vinho” (HUIZINGA, 1996, p. 9) e, tão logo nos defrontemos com essa situação, logo se esvai o mito de que vivemos em uma sociedade do consumo. Diversamente, o desfrute da riqueza produzida pelo trabalho humano nunca teve tão pouco valor frente à posse do valor de troca universal: o dinheiro.

Em contraposição à indiferença generalizada que verificamos em nossa sociedade contemporânea, no mundo medieval, narrado por Huizinga, os indivíduos estão sujeitos a uma efusão de emoções, pulsões, lágrimas a partir das relações sociais que estabelecem uns com os outros. Nas prédicas dos padres e curas, nas execuções públicas, nas procissões, nos duelos judiciais, na eleição do papa, nas solenidades de caráter político “as lágrimas eram então consideradas elegantes e honrosas” (HUIZINGA, 1996, p. 14-15). “Numa época cheia de reverência religiosa em face de toda a pompa ou solenidade, esta propensão aceita-se como perfeitamente natural” (HUIZINGA, 1996, p. 15). Por mesquinhos e fantasiosos que sejam o conteúdo desse estado de constante exacerbação emocional, o certo é que no ocaso da idade das trevas, os indivíduos ainda não se tornaram autômatos de um sistema social que se desenvolve a suas costas.

“O poder da riqueza é direto e primitivo; não é enfraquecido pelo mecanismo duma automática e invisível acumulação através dos investimentos; a satisfação de ser rico tem fundamento no luxo e na dissipação ou na bruta avareza” (HUIZINGA, 1996, p. 27-28). Isso significa que a satisfação de ser rico na Idade Média se manifesta no desfrute e gozo dos valores de uso produzidos e não no culto da abstrata acumulação de capital. Como se nota, à luz do fenômeno mistificador, fetichista e obscuro do “deus” dinheiro-capital no interior das relações sociais capitalistas, o Deus cristão medieval se mostra quase como profano.

Neste sentido, nada pode ser mais falso que conceber a noção de consumo como motor e motivo de sustentação da sociedade capitalista tal como a conhecemos. Esse equívoco tem outras consequências. A noção de consumo tem seus limites no individuo e, por esse motivo, ofusca as relações sociais que se encontram para além de indivíduos isolados. Não é casual que o autor pós-moderno Zygmunt Bauman tenha alterado a fórmula da sociedade de consumo pela Sociedade de Consumidores. A análise das relações sociais objetivas entre pessoas se deslocou para o âmbito da subjetividade dos indivíduos, em que a diferença entre necessidade e desejo ganha a tônica da analise. Em caminho contrário à Marx, Bauman entende que o consumo tem se convertido em propósito de existência (BAUMAN, 2008, p. 38).

Quem quiser empregar o termo “sociedade de consumo” para designar a especificidade da sociedade capitalista, que o faça. Mas que se deixe claro que tal ideia é a exata antípoda do que pensava Marx a esse respeito.

MARX, K. O Capital. Livro I. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2013.

MARX, K. Grundrisse. Rio de Janeiro: Boitempo Editorial, 2011.

HUIZINGA, J. O declínio da Idade Média. Lisboa: Ulisseia, 1996.

BAUMAN, Zygmunt. Vida para Consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.


Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Microdoaçom de 3 euro:

Doaçom de valor livre:

Última hora

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: info [arroba] diarioliberdade.org | Telf: (+34) 717714759

Desenhado por Eledian Technology

Aviso

Bem-vind@ ao Diário Liberdade!

Para poder votar os comentários, é necessário ter registro próprio no Diário Liberdade ou logar-se.

Clique em uma das opções abaixo.