Porque, o que mais pode suportar um povo quando já desapareceram e foram assassinadas as suas filhas - os feminicídios que já não são na Juárez distante e estigmatizada por ser uma fronteira - quando lhe venderam a terra, quando lhe privatizaram até o direito de respirar? O que mais pode suportar um povo quando os governos roubaram até os seus sonhos? Quando o engano e a repressão vêm por parte daqueles que supostamente são os que devem velar pela segurança? Quando é o governo o culpável por organizar máfias criminais, quando os subornos, o tráfico de influências e os desaparecimentos forçados têm ordem vinda da presidência? O que mais?
Quando é um esquadrão do exército que viola, assassina e faz desaparecer as nossas meninas, adolescentes e mulheres. Quando é um grupo antimotim que reprime a voz do seu irmão e o golpeia até a morte. Quando é toda uma estrutura policial a que sequestra os nossos meninos e adolescentes que jamais voltarão a aparecer. Quando o plano de tortura é elaborado por um conselheiro presidencial, com o aval de um arcebispo e com o silêncio dos beneficiados que o indulta no confessionário um sacerdote pedófilo.
O que mais pode suportar um povo que viveu de tudo? A humilhação, a fraude, a seca e a vigília perene. O pavor, a ansiedade, a paranóia, o abatimento emocional, o luto incessante que não tem dor. Quando são milhares os desaparecidos, milhares os assassinos e dezenas as valas clandestinas que gritam pedindo justiça com as suas entranhas cheias de sonhos truncados.
O que mais pode suportar um povo ao que roubaram o sorriso, a alegria e o amor?
Não foram as mulheres assassinadas de Juárez as que conseguiram indigná-lo, a violência de gênero continua tão patriarcal quanto o casamento heterossexual e religioso. Também não foi a Matança de Tlalelolco, na qual a história contada ao contrário e com toda a sanha da oligarquia e o Estado acabaram com as vozes rebeldes que estavam naquela praça.
O fato é que no México também está proibido pensar. Ai daquele que sonhe com o seu livre arbítrio! pois não durará três dias vivo. Assim foi, assim é e assim continuará sendo porque o gigante não se atreveu a se despertar.
Foram mais fortes o medo, a falta de memória, a indiferença e a ignorância. Graças a esta última, mudam televisões por votos, por aprovações e por silêncio. Manter o povo “sem memória” é um negócio rentável, pois a amnésia ajuda a que não tenha a capacidade de reagir e a que a indiferença continue sendo o enorme abismo entre a passividade e a ação.
Com estes 43 estudantes desaparecidos, o povo mexicano disse ao governo que esse pode fazer com ele o que bem entender, já que não é capaz de reagir porque a sua dignidade um dia se foi e também porque desconhece a solidariedade humana; enquanto não toquem à nossa porta e entrem para nos levarem, tudo o que suceda ao vizinho não nos interessa e se correm rios de sangue, imaginaremos que é água de um temporal.
Com isto, lhe dizemos ao governo que não nos importa o número de estudantes desaparecidos, que matem aos nossos filhos, pois nós lhes damos toda a autoridade para que o façam e nem vamos desconfiar. Porque oraremos para que o deus patriarcal nos dê a resignação.
Dizemos aos criminosos que continuem assassinando jornalistas, torturando defensores dos direitos humanos, lavando dinheiro sujo, privatizando até mesmo o ar que respiramos e fazendo de nós autênticas marionetes.
Ayotzinapa é uma segunda Tlatelolco e passará para a história. Primeiro será Ação Global dos Povos (People's Global Action) a cada mês, logo irá diminuindo e será uma por ano no seu aniversário e, assim, iremos esquecendo até que sejam somente os nossos avós os únicos que contem que “uma vez em Ayotzinapa...”. Porque não aparecerá nos textos dos livros escolares, pois a história oficial será contada ao contrário e as novas gerações irão memorizá-la da mesma forma que a juventude de hoje e nem desconfiarão quando escutarem sobre um tal Pancho Villa e Emiliano Zapata, bem como sobre um tal Exército Zapatista de Libertação Nacional que vem do norte, e uma tal Revolução Mexicana e as Adelitas [mulheres que participaram na Revolução Mexicana].
O México não se despertou; o gigante, tal e como disse o grande Chavela Vargas, continua dormindo. Porém, se admira e são tidos como exemplos as vozes que não se rendem, os seres que não se cansam de lutar, os pais que continuam procurando os seus filhos desaparecidos, a menina violada que se atreve a sonhar, o estudante universitário em rebelião que se atreve a pensar, duvidar e que as suas ações partem da sua conseqüência de vida. São também o docente que estimula aos seus estudantes a analisarem e criarem, os jornalistas comprometidos e todos aqueles que através da sua profissão ou ofício levam o México nos seus ombros.
São as mãos que se unem numa só luta: reconstruir o seu país, não esquecerem e novamente medi-lo. Todos vocês são a luz que ilumina na densa escuridão da injustiça, da falta de memória, da apatia e da impunidade. Hoje não digo “viva a México cabrones!”. Digo “vivan los cabrones que a pesar de los pesares le ponen pecho a la adversidad!” (viva os que a pesar de tudo enfrentam a adversidade). Por pessoas como vocês a utopia continua sendo poesia e insurreição.
15 de março de 2015.
Estados Unidos.
Tradução de Camila Lee para o Diário Liberdade.