As disputas da Guerra Fria e todo o enfrentamento entre movimento comunista e capitalismo mundial provocaram uma névoa de desconhecimento e ignorância sobre a história soviética que é difícil de dissipar. Os enganos, erros brutais, afirmações absurdas e narrativas grotescas abundam. O historiador israelense Moshe Lewin, que estudou a história soviética por 50 anos, afirma que quando os “especialistas” vão escrever sobre o tema “sua criatividade parece ser aguçada”. O filósofo francês Jean Salem, citando seu amigo Alain Besançon, afirma “em matéria de sovietologia nem sequer vale a pena mantermo-nos atualizados. O que é preciso é aprender a crer no inacreditável”.
Um dos muitos mitos que pairam sobre a história soviética é o que reveste o Gulag – sigla para: Administração Geral dos Campos de Trabalho Correcional e Colônias. O Gulag soviético é comparado ao campo de concentração nazista, tomado como campo de extermínio; mostrado como um dos grandes horrores do século XX – essa Era dos Extremos, no dizer do saudoso Eric Hobsbawm. Os objetivos desse texto são bem simples. Pretendemos traçar uma análise histórico-social do que era o Gulag soviético, mostrar se as “narrativas clássicas” da época da Guerra Fria estão certas e elencar elementos para entender o porquê dessa imagem atual do Gulag ser a dominante – e não outra.
Entretanto, antes de iniciar a análise histórica propriamente dita, é necessário fazer uma ressalva. O materialismo histórico entende que a análise histórica cientificamente correta deve partir do ponto de vista da totalidade. O que não quer dizer, é lógico, analisar tudo ao mesmo tempo. O Gulag soviético deve ser analisado como um componente político-institucional de uma sociedade complexa; delineando minimamente a composição de classe, o sistema político, as relações de produção e a ideologia dominante na sociedade soviética seriam fundamentais para produzir uma crítica teórico-metodológica acertada do Gulag Soviético. Não obstante, em vista do espaço e para evitar tornar o texto muito difícil e extenso, teremos que nos abster o máximo possível dessa análise. As menções à história soviética para além do Gulag serão pequenas e só usadas quando indispensáveis.
O mito Gulag: equiparação ao campo de concentração nazista
Antes de falar do o que era o Gulag Soviético, vamos tratar do que dizem que ele foi. Ao final da Segunda Guerra Mundial, o movimento comunista estava no auge do seu prestígio no mundo. Em todos os continentes existiam PCs (partidos comunistas) fortes e organizados, os processos de descolonização da África e Ásia marchavam juntos com a luta pelo socialismo, na Europa Ocidental os comunistas ganham força inédita, na América Latina o imperialismo estadunidense treme com a possibilidade de perder seu quintal.
O prestígio soviético [depois da vitória sobre os nazistas], estendido aos partidos comunistas, possibilitou a elevação espetacular de filiações de militantes advindos das lutas de libertação, compreendendo estudantes, intelectuais e operários. (...). O partido italiano salta de 5 mil membros em 1943 para 2 milhões em 1946; o francês vai de 1 milhão quando tinha 30 mil em 1943. Até mesmo o sempre pequeno partido comunista inglês consegue triplicar seus adeptos: vai a aproximadamente 50 mil filiados em 1944-45. Em países mais desenvolvidos, como Áustria, Finlândia, Bélgica, Dinamarca e Noruega, que, agrupados, somavam mais ou menos 100 mil membros, em 1947 já totalizavam 600 mil (BRAZ, 2011 P. 197-198).
O imperialismo estadunidense não podia, é óbvio, observar o avanço dos comunistas parado. Traçou uma estratégia muito clara: reorganização do capitalismo mundial sob seu comando através da criação da ONU, tratado de Bretton Woods, Bird (Banco Mundial de Desenvolvimento) e FMI (Fundo Monetário Internacional). Para a Europa a reconstrução foi pensada e executava através do Plano Marshall, que criava o padrão Fordismo/Estado de Bem-estar social e garantia a hegemonia estadunidense, e no “resto do mundo” tivemos uma síntese criativa de invasões militares brutais diretas pelos EUA e apoio ostensivo às ditaduras sangrentas que garantiam a continuidade do capitalismo [1].
Porém, como Antônio Gramsci nos ensinou, a dominação político-econômica tem que ser acompanhada de hegemonia ideológica. Era necessária e urgente uma estratégia frontal de enfrentamento ao prestígio soviético e dos comunistas. A estratégia usada foi brilhante – é triste admitir isso. A URSS foi à principal responsável por destruir o nazifascismo, libertou grande parte de Europa e todo o mundo; então o imperialismo estadunidenses e seus mercenários acadêmicos resolveram passar a equiparar a União Soviética com a Alemanha Nazista. Tal equiparação, quase um milagre da cretinice sociológica, foi conseguida graças, principalmente, à categoria de totalitarismo [2].
Com a categoria de totalitarismo o fascismo italiano, o nazismo alemão e o socialismo soviético eram colocados no mesmo “saco”, mil analogias eram criadas e supostas semelhanças nunca antes reparadas pipocavam a todo o momento. Depois que a estratégia começou a dar resultado os espadachins da Guerra Fria (Marx chamava os economistas burgueses de espadachins da burguesia) foram mais longe: o socialismo soviético era pior que o nazismo, a pior coisa que já passou pela terra. Satã perto de Stálin era um bom moço – quase um estudante presbiteriano temente a Deus.
O historiador François Furet, ex-marxista e hoje dedicado serviçal da classe dominante, escreveu essas distópicas palavras (citações de textos da internet sem paginação ficaram na nota de rodapé e não na bibliografia) sobre o sociedade/governo soviético:
O regime da União Soviética sob Stálin, quando aparece, no início da década de 30, não tem precedentes na História. Não se parece com nada do que existiu. Nunca um Estado teve como objetivo matar, deportar ou reduzir à servidão seus camponeses. Nunca um partido substituiu tão completamente um Estado. Nunca ele controlou tão integralmente toda a vida social de um país e a vida de todos os cidadãos. Nunca uma ideologia política moderna desempenhou um papel assim no estabelecimento de uma tirania tão perfeita que os que a temem devem, porém, saudar seus fundamentos. Nunca uma ditadura teve um poder tão grande em nome de uma mentira tão completa e, contudo, tão poderosa sobre as mentes [3].
Essa operação não estaria completa sem os dois principais nomes do “exército anti-soviético” (e comunista): Hannah Arendt e George Orwell. O inglês é responsável pelo genial romance (do ponto de vista literário), 1984. A história de uma sociedade totalitária onde um partido controla tudo e todos – até os pensamentos. Já Arendt, é a principal formuladora da categoria de totalitarismo. Vale a pena dar vazão às suas palavras:
Por outro lado, a prática russa [soviética] é mais “avançada” do que a nazista em um particular: a arbitrariedade do terror não é determinada por diferenças raciais, e a aplicação do terror segundo a procedência sócio-econômica (de classe) do indivíduo foi abandonada há tempos; de sorte que qualquer pessoa na Rússia pode subitamente tornar-se vítima do terror policial (ARENDT, 2009, p. 26).
Nas sublimes palavras da nossa autora, o sistema soviético era mais repressivo que o nazismo. A partir dessa estratégia ideológica definida, uma série de mitologias histórico-políticas grotescas foram criadas. Afirmaram que Stálin e o governo soviético eram anti-semitas (como equipara-lo à Hitler sem o “charme” do anti-semitismo?), que o governo soviético perseguia nacionalidades específicas por racismo, que Stálin acreditou e confiava piamente em Hitler na assinatura do pacto germano-soviético de não agressão, que os sistemas políticos eram iguais e que ambos – atenção nesse ponto! – tinham como característica os campos de extermínio como forma de domínio sobre as massas. O Gulag Soviético seria o homólogo do Auschwitz nazista.
Essa mitologia histórico-política só cresceu e ganhou corpo com o fortalecimento da propaganda anticomunista, e quando o movimento comunista entrou em crise e quase veio a sua fase terminal, essa lenda ganhou ares de verdade absoluta. Para coroar isso, um dissidente reacionário da União Soviética, o famoso Alexander Soljenítsin, em 1976, afirma que “entre 1917 e 1959 tinham morrido 110 milhões de pessoas [na URSS]”. O livro de Soljenítsin vendeu só na França mais de 900 mil exemplares [4] – some a isso as disputas no seio do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) na pós-morte de Stálin que redundaram no XX Congresso e no famoso discurso denunciando o culto à personalidade, que foi mais uma peça de propaganda anticomunista do que uma avaliação séria das debilidades da União Soviética.
O Gulag fora do mito
Para compreender o Gulag Soviético é necessário, como avisamos antes, traçar em linhas gerais o quadro econômico, político, ideológico e geopolítico da União Soviético entre os anos vinte e o fim dos anos cinquenta (quando o Gulag é desativado). A descrição será rápida, sem muita profundidade e lacunar, mas suficiente para os nossos objetivos teórico-metodológicos.
Depois da Revolução Russa de outubro, o governo revolucionário esperava com ardor e firmeza o deslace da revolução mundial. Embora o movimento comunista no mundo tenha feito progressos impressionantes, sendo o mais notável a criação da Terceira Internacional ou Internacional Comunista (IC) e o aumento substantivo de PCs mundo a fora, a revolução mundial não veio. Os bolcheviques tinham uma difícil missão: edificar o socialismo em uma economia atrasada, agrária, ainda com traços feudais; arrasada pela segunda guerra mundial e a guerra civil (quando 17 potências reacionárias invadiram a Rússia) e isolada mundialmente.
A situação era inédita do ponto de vista histórico e não existia nem sequer qualquer paralelo teórico para se espelhar. Depois da morte de Lenin, no começo de 1924, o pólo unificador dos bolcheviques some e uma forte disputa no seio do partido pelo poder se instala. Para além da conhecida polêmica “socialismo em um só país VS revolução permanente”, o que estava em jogo era um modelo de desenvolvimento socialista. Trotsky quando perdeu os seus poderes no Partido e na IC defendia a coletivização forçada do campo e a industrialização acelerada; Stálin e Bukhárin, os principais nomes da tendência majoritária do partido, defendiam a continuidade da NEP e a coletivização gradual do campo via medidas indiretas do poder público (como estimular a formação de cooperativas etc.).
Depois de derrotar Trotsky e exilá-lo da União Soviética, em uma virada inesperada e brusca, Stalin passa a defender praticamente o mesmo programa que seu inimigo derrotado. Assume da defesa da coletivização forçada do campo e da industrialização acelerada. Dois motivos principais colocam essa perspectiva para Stálin (que representava um grupo amplo dentro do Partido): A) A adesão à ideia de que a força dos kulaks ameaçava o poder do partido e era necessário exterminá-los enquanto classe; B) A posição de que no cenário geopolítico a URSS seria tratada como inimiga de todos os países imperialistas e era necessário construir rapidamente uma forte indústria de base e militar para defender o país de uma guerra vindoura. Sobre a primeira perspectiva, assinala Marcelo Braz:
A guerra contra os kulaks trouxe drásticas consequências imediatas ao povo russo, que se viu diante do racionamento de alimentos devido ao boicote organizado pelos grandes proprietários de terras que reagiram como estocagem da produção, e mesmo com à destruição de grande parte dela. Em 1928, a retenção do trigo realizada pelos kulaks obrigou o governo soviético a comprar o produto no exterior. Nas regiões dominadas pelos grandes fazendários, a reação envolveu inclusive a perseguição àqueles que apoiavam a iniciativa do governo, com ameaça e assassinatos. A liquidação desta classe significou efetivamente a defesa da Revolução Russa por parte do governo bolchevique (BRAZ: 2011. P. 155).
E sobre o perigo das invasões estrangeiras pelas potências imperialistas, o próprio Stálin avaliou bem a questão:
Num discurso pronunciado em 1931, Stálin lembrou que a Rússia "foi derrotada pelos beis turcos. Foi vencida pelos nobres poloneses e lituanos. Foi derrotada pelos capitalistas ingleses e franceses. Foi superada pelos barões japoneses. Todos a venceram – devido ao seu atraso... Estamos 50 ou 100 anos atrás dos países adiantados. Devemos superar essa distância em 10 anos. Ou fazemos isso ou eles nos esmagam" (Davis, 1978, p. 116).
O início dessa estratégia de desenvolvimento que se pretendia socialista combinada com a situação de extrema pressão externa, forte disputa pelo poder dentro do Partido e forte enfrentamento de classe (não só aos camponeses ricos) cria uma situação paradoxal na União Soviética: é combinado em um só movimento um forte impulso democrático, modernizador e socializante e tendências ultra-autoritárias e repressivas. A democracia soviética é desenvolvida com o fim da miséria, fome (ao fim dos anos trinta), desemprego, analfabetismo, garantia universal de acesso à saúde, educação e cultura, forte progresso tecnológico, combate incansável ao racismo, patriarcado (com muitas falhas e limites) anti-semitismo e opressão as minorias nacionais e ao mesmo tempo é comprimida com a universal caça aos “quinta coluna”, a violência do processo de coletivização e industrialização acelerada e o combate aos kulaks.
A ambiguidade do legado autocrático e democrático de Stálin até se manifesta nas repressões dos anos 30. A campanha contra os trotskistas e sabotadores em 1937, que conduziu milhões à prisão e milhares à morte, correspondeu a um movimento de massas lançado nos sindicatos e nos locais de trabalho pelo alargamento da democracia. O líder dos sindicatos, Nikolai M. Chvérnik, lançou este movimento no sentido de aplicar nos sindicatos os direitos consagrados na Constituição de 1936, ou seja, eleições secretas com múltiplos candidatos, um maior envolvimento das bases e uma maior prestação de contas por parte das direções sindicais. Este movimento estava de mãos dadas com a campanha contra o culto dos líderes, pela erradicação dos dirigentes corruptos, dos oposicionistas dissimulados e outros "inimigos do povo", que desviavam fundos dos sindicatos, violavam as normas de segurança, sabotavam habitações, serviços sociais e a produção. Como resultado deste levantamento a partir de baixo, no final de 1937, "mais de um milhão e 230 mil pessoas foram eleitas em 146 sindicatos e em centenas de milhares de organizações sindicais e comités de empresa (...) O resultado final das eleições traduziu-se numa mudança radical de quadros. Mais de 70 por cento dos antigos comitês de fábrica, 66 por cento dos 94 mil presidentes de comitês de fábrica e 92 por cento dos 30.723 membros dos comitês plenários regionais foram substituídos". O que aconteceu nos sindicatos e locais de trabalho em 1937 foi literalmente um movimento democrático a partir de baixo para afastar e punir determinados líderes sindicais. O historiador Wendy Goldman chamou-lhe uma "repressão democrática", e notou que esta "repressão não constituiu um ato contra o povo soviético realizado por uma 'entidade' maléfica, mas foi ativamente apoiada e difundida pelo próprio povo em todas as instituições" [6].
Essa dialética entre emancipação de milhões de pessoas e regressão de várias conquistas da própria Revolução de Outubro (como o desenvolvimento da autogestão operária e o funcionamento dos Sovietes como órgãos de poder) é às vezes bem sintetizada por Leon Trotsky. O principal adversário político de Stálin, derrotado por ele, não deixa de se vangloriar em júbilo pelos êxitos da planificação e da estratégia de desenvolvimento soviética.
O mundo burguês começou por fingir que não via os êxitos econômicos do regime dos sovietes, que são a prova experimental da viabilidade dos métodos socialistas. Perante a marcha, sem precedentes na História, do desenvolvimento industrial, os sábios economistas a serviço do capital ainda tentam muitas vezes manter profundo silêncio, ou então se limitam a relembrar “a excessiva exploração” dos camponeses. Perdem assim uma excelente ocasião de nos explicar por que razão a exploração desenfreada dos camponeses, na China, no Japão e na Índia, nunca provocou um desenvolvimento industrial acelerado, nem mesmo em grau diminuto, comparado ao da U.R.S.S. (TROTSKY, 1980, p.5).
Voltando a questão da repressão e nos preparando para entrar propriamente na questão do Gulag soviético, cumpre elucidar mais um ponto. A teoria marxista da transição socialista não é contra a repressão. Ao contrário, Lenin em sua obra clássico o Estado e Revolução (LENIN, 2007), definiu que a principal missão do Estado revolucionário no período de transição era reprimir as antigas classes dominantes e garantir a construção do socialismo – defendendo as novas formas de propriedade. Os próprios Marx e Engels, no Manifesto do Partido Comunista, afirmaram que a transição socialista só pode acontecer “mediante intervenções despóticas no direito de propriedade e nas relações de produção burguesa” (MARX e ENGELS, 2001, p. 60). A grande questão do governo soviético é que as repressões por causa das disputas de poder no seio do Partido e a situação de insulamento com necessidade de rápido desenvolvimento das forças produtivas fizeram com que a repressão deixasse uma marca indelével na sociedade soviética e fossem muito além de apenas as classes burguesas.
O processo de criação e expansão do Gulag enquadra-se nesse processo (acima descrito): repressão junto à democratização e elementos de emancipação. Segundo o historiador Moshe Lewin, desde o início da Revolução Russa, os bolcheviques tentaram várias inovações jurídicas e criminológicas. O paradigma do trabalho era muito forte. A ideia de que cumprindo reclusão o detento deveria ter acesso ao trabalho produtivo (e remunerado) e que este seria fundamental no seu processo de reeducação.
O Comissariado do Povo para Assuntos Internos (NKVD – sigla em russo) foi responsável pela administração dos campos de trabalho e colônias. A descrição de Lewin é importante:
Para supervisionar o sistema penitenciário – campos, colônias, prisões – uma nova agência administrativa foi criada, chamada Gulag, ou Diretoria Geral dos Campos, que também se encarregava das prisões e colônias para pequenos crimes e delinquentes juvenis. Uma agência separada dentro dela era responsável por pessoas condenadas ao exílio e isolamento nas colônias de repovoamento – kulaks, por exemplo. Este é apenas o início da história. Em torno e em combinação com o Gulag, o NKVD criou uma rede, de bom tamanho, de agências administrativas, florestais e de desenvolvimento da região do Extremo Oriente (o Dal’stroi). Projeto de pesquisa e de engenharia para produção de armas, inclusive atômicas, foram criados em campos especiais de presos – os chamados charashki -, com grandes especialistas, entre eles Tupolev (aviões) e Korolev (foquetes). (LEWIN, 2007, p. 149).
Lewin afirma que no período da NEP o regime interno das prisões e campos era muito mais brando, e que o “liberalismo” dessa época foi superado no início dos anos 30. O autor comete a falha de não considerar as reorientações políticas como tomadas dentro de um quadro histórico concreto que abarca a situação da luta de classe interna, o contexto geopolítico e os desafios do desenvolvimento econômico soviético. O fato que é diferentemente dos campos de extermínio nazistas, o Gulag soviético passou a integrar o aparato produtivo do país dentro da estratégia geral de desenvolvimento rápido e vigoroso das forças produtivas.
A ideologia oficial do Estado Soviético nos anos 30 afirmava que o socialismo estava sendo construído pelos trabalhadores do país. Cada nova estatística, cada novo aumento da produção, era mais um sinal do êxito do socialismo. Nesse titânico esforço todos devem contribuir. O frenesi pelo desenvolvimento era tão grande que várias vezes erros na produção eram tratadas como traição nacional – muitos gerentes de fábrica e diretores de sindicatos que não cumpriam suas cotas de produção estabelecidas no plano quinquenal sofriam pressão da base e da cúpula do Estado, sendo não poucas vezes afastados do seu posto [5].
Os prisioneiros não ficavam de fora dessa euforia desenvolvimentista. Enquanto no campo de extermínio nazista o judeu ou o comunista eram o inimigo, um não-cidadão inferior racialmente e impuro que deve ser eliminado o quanto antes, no Gulag soviético até pelo menos 1938 o preso é um camarada que comentou um erro – seja um crime político como ser trotskysta ou um ex-kulak, ou crime comum, como roubo – mas que pode se regenerar e fará isso através do trabalho, da produção, também dando sua contribuição na construção do socialismo.
Necessitando de operários especializados [em um Gulag do Extremo Norte], treinam aqueles que as tinham. Muitos deles, ex-kulaks, eram analfabetos ou semianalfabetos, e isso provoca problemas enormes quando se devia enfrentar projetos de certa complexidade técnica. Por isso, administração dos campos equipou escolas de formação técnica, que por sua vez exigiam outros edifícios e novos quadros: ensinantes de matemática e da física, como mero "instrutores políticos" para superintender o seu trabalho. Nos anos quarenta, Borkuta, uma cidade construída sobre um terreno permanentemente gelado, onde as estradas deviam ser reasfaltadas e tubulação consertada toda primavera, tinha agora um instituto geológico e uma universidade, teatros, teatro de marionetes, piscinas e asilos (APPLEBAUM Apud LOSURDO, 2010, p. 153).
Ainda sobre esse impulso desenvolvimentista:
Para terminar, os operários mais eficientes eram soltos antecipadamente; para cada três dias de trabalho nos quais a tarefa era realizada cem por cento, cada detido pagava um dia de pena. Quando o canal [do mar Branco] ficou terminado em tempo, em agosto de 1933, foram libertados 12.484 prisioneiros. Muitos outros receberam medalhas e prêmios. Um detido festejou a sua liberação antecipadamente com uma cerimônia no qual houve também a tradicional oferta russa do pão e do sal, enquanto os assistentes gritavam: “Hurra para os construtores do canal!” No ardor do momento, começou a beijar uma desconhecida. Acabaram passando a noite juntos à beira do canal (Idem, p. 155).
A pergunta natural que surge é sobre as condições de trabalho. Evidentemente, que o trabalho produtivo e não danoso à saúde no sistema prisional agrada muitos teóricos da ressocialização, mas a análise das condições de trabalho é fundamental: elas indicam se o trabalho tinha função realmente progressista ou servia como uma espécie de tortura ao detido. Nessa questão temos um problema no caso soviético. Existiam campos com condições muito mais extremas do que o geral, como o chamado “Gulag atômico”.
Como ilustra a pesquisa dos irmãos Medvedev, a União Soviética usou o modelo Gulag para produzir secretamente urânio e instalações capazes de criar a bomba atômica. Por causa da falta de conhecimento dos perigos da radiação do urânio e o extremo segredo do empreendimento (nunca é demais lembrar que a URSS era cercada por potências reacionárias que queriam sua destruição e trabalhavam ativamente para isso) que impossibilitava criar uma estrutura melhor em torno desses campos (como criar hospitais, creches, asilos, etc.), o índice de mortalidade e os acidentes de trabalho e o controle sobre os presos eram muito maior que a média geral (embora os “Gulags atômicos” sempre tenham sido minorias entre os campos) (MEDVEDEV, 2006, 213-242).
Outro elemento trágico no Gulag soviético era o grande número de tragédias por erros administrativos e decisões políticas erradas. O autor que estamos seguindo (Domenico Losurdo) descreve a tragédia de Nazino, na Sibéria ocidental, quando um conjunto de exilados em campos deveria cultivar na ilha:
Privados de apetrechos, com os medicamentos e comida desparecida em grande parte durante a viagem, numa ilha completamente virgem, sem nenhuma construção e sem víveres, os deportados procuram sobreviver alimentando-se de cadáveres ou praticando antes de verdadeiro canibalismo. São detalhes tirados de uma carta enviada por um dirigente comunista local a Stalin e depois comunicada a todos os membros do Politburo, que ficaram de algum modo transtornados com isso (APPLEBAUM Apud LOSURDO: 2010, p. 154).
Tragédias como essa causada por falta de organização e planejamento adequada se repetem, mas sem a proporção de horror de Nazino. A própria característica do Estado Soviético ajuda a entender o fenômeno. O modelo de planejamento adotado privilegiou uma ultra-centralização do poder e das decisões no cume do Estado, deixando pouca margem de atuação para a base (a difícil situação interna e no plano internacional, era elencada como justificativa para isso e em certa medida, a justificativa estava correta). Então muitas vezes o poder central tomava decisões incapazes de serem concretizadas no nível concreto de aplicação, ou seja, na base, e isso gerava problemas.
Losurdo cita as taxas de mortalidade média do Gulag soviético em 4,8% da população total ao ano (número substancialmente alto, sem dúvida). O número não abarca os Gulags de regiões secretas e segundo o autor trabalhado por Losurdo, os números podem estar subestimados. Contudo, é importante frisar que “altas taxas de mortalidade e de evasões podiam levar a sanções severas”, “as seções sanitárias dos campos temiam ser acusadas de negligência ou intempestividade na recuperação dos doentes e “sobre os dirigentes dos campos pairava constantemente a ameaça de inspeções” (KHLEVNIUK Apud Losurdo: 2010, p. 169).
Portanto, vemos que o impulso desenvolvimentista que perpassava toda sociedade soviética no esforço de construção do socialismo também estava presente nos prisioneiros dos Gulags - que eram camaradas, participavam do esforço produtivo, recebiam salários e trocavam dias de trabalho por encurtamento da pena. As condições de vida no geral não eram violentamente duras (dentro das condições gerais de vida do povo soviético, que nos anos 20 e 30 eram difíceis, afinal, era um povo lutando para superar a miséria e o “atraso”), à exceção, como já falamos dos campos de trabalho secretos (minoria). As tragédias que surgiram eram por erros administrativos e de condução política, mas não por um instinto assassino ou qualquer política sistêmica de extermínio do inimigo ou de raças inferiores, e os dirigentes esforçavam-se constantemente para aprimorar o sistema prisional (sem qualquer semelhança com o campo de concentração nazista, como ficará implícito e demonstraremos a posteriori).
O status social do prisioneiro
É atribuído ao líder sul-africano Nelson Mandela a frase que diz: “para conhecer uma sociedade, é necessário conhecer suas prisões”. O conhecimento do Gulag soviético necessita que olhemos mais de perto do status social do preso. Sabemos bem que no regime nazista e no imperialismo que domina a África e Ásia, o prisioneiro não é um cidadão, um membro do corpo social dotado de direitos que vai passar por um processo educativo, pelo contrário. O preso é o inimigo, um sujeito a ser eliminado, a raça inferior que envenena o mundo com sua impureza e precisa ser exterminado (VILLEN, 2013).
Aliás, os primeiros campos de concentração da História moderna foram criados na África pelo imperialismo das potências européias. A função era bem clara: terror e extermínio. O século XX “banalizou” o conceito de campos de concentração e seu nome virou sinônimo de uma prisão brutalizante, com condições extremamente degradantes. Contudo, por rigor teórico, não podemos deixar de perceber que o campo de concentração tem uma função específica dentro de um aparato de dominação: a função de propagar o terror e realizar o extermínio de certa raça, nacionalidade ou grupo político e/ou religioso (ZAFFARONI, 2007).
Como já demonstramos, o preso no gulag soviético era um camarada (até pelo menos 1937-38), alguém que participava do desenvolvimento e da construção do socialismo, mas que cometeu “erros” e estava pagando por eles. Como o “camarada” preso era “recuperado” além do trabalho? Uma forte atividade político-cultural era desenvolvida com os presos. A concepção vigente acreditava que a educação e a propaganda política eram capazes de recuperar os prisioneiros (o preso “comum” e o preso político). Como se sabe, os trotskysta são derrotados na disputa pelo poder do PCUS nos anos 30 e muitos são feitos prisioneiros e/ou mortos. As reivindicações deles ilustram bem sua situação enquanto preso:
Ampliar a biblioteca, incluir periódicos publicados na URSS, pelo menos, com edições da seção da KI [internacional Comunista], atualizar sistematicamente as seções de economia, política e literatura e as seções das obras nas línguas das minorias nacionais. Fazer assinaturas de pelo menos um exemplar dos jornais estrangeiros. Permitir a inscrição em cursos por correspondência. Organizar para tal fim um fundo cultural apropriado, como acontece até nas penitenciárias criminais [...]. Permitir a introdução na prisão de todas as edições estrangeiras admitidas na URSS, em particular os jornais estrangeiros permitidos, sem excluir os burgueses [...]. Permitir a troca de livros entre presos e guardas [...]. Adquirir papel em quantidade não inferior a 10 cadernos por pessoa por mês (KHLEVNIUK Apud Losurdo, 2010, p. 153).
Essas reivindicações foram feitas depois de uma greve de fome e foram parcialmente acolhidas. Chamam atenção duas coisas: em um campo de concentração onde a função é pura e simplesmente exterminar seguimentos da população, a própria ideia de greve de fome não faria sentido (a lógica, como sabemos, é que as autoridades vão atender aos pedidos para evitar que os descontentes morram de fome); e o conteúdo das reivindicações é significativo. No Brasil, por exemplo, esses pedidos são irreais para a imensa maioria dos presídios (em resumo os presos soviéticos pedem mais cultura, acesso ao conhecimento e possibilidade de se “manter” ativo politicamente).
Sobre o trabalho político-cultural propriamente dito de “recuperação” dos presos, um relato da atividade de um campo, no ano de 1937, diz:
Notava com orgulho [o administrador] que na segunda metade do ano foram realizadas 762 conferências políticas, assistidas por 70.000 prisioneiros (provavelmente muitos participavam mais de uma vez). Além disso, a KVC tinha organizado 444 reuniões de informação política, das quais participaram 82.400 prisioneiros, publicado 5.046 “jornais murais”, lidos por 350.000 pessoas; organizado 232 concertos e espetáculos, projetado 69 files e organizado 38 companhias teatrais (APPLEBAUM Apud LOSURDO: 2010, p.157).
Essa “fé institucional” na recuperação era um fator tão significativo que muitos presos acabavam trabalhando como administrador ou guarda no campo onde antes era prisioneiro (é impossível imaginar um judeu ou comunista como administrador de um campo de extermínio nazista). Porém, o status do preso muda substancialmente a partir de 1937-38. A perseguição uma quinta coluna (real ou imaginária, não é tema do nosso texto debater isso) capilarizada por todo corpo social, inclusive no Exército Vermelho, e os ventos da guerra que já estavam muito claros no horizonte, provocam um fechamento político maior do governo soviético. Os guardas eram proibidos de chamar agora os detentos de camaradas; nesse momento eles eram apenas “cidadãos” e o trabalho político-cultural de recuperação perde ênfase – mas continua existindo.
Mesmo tendo o status social rebaixado, o preso do Gulag é vítima agora de uma política sistêmica de extermínio por ser considerado um simples inimigo (ou racialmente inferior) da sociedade? A resposta é não. O único episódio de extermínio em massa de presos dos campos aconteceu entre 1941-1942, quando um quarto da população do Gulag morreu de fome, mas isso não aconteceu por uma ação premeditada do governo, mas por causa dos efeitos da guerra – URSS contra Alemanha hitleriana – que afetou a vida de toda população soviética. Entre 1941-1942 um milhão de cidadãos morreram de fome só em Leningrado por causa do certo alemão (LOSURDO, 2010, p. 163).
Mesmo assim, durante a guerra, o governo soviético inicia a construção de um fundo alimentar para ajudar a restabelecer o fluxo de alimentos nos Gulags e quando a guerra começa a virar em benefícios dos soviéticos, a situação nos campos melhora muito até se restabelecer – cumpre destacar que o status de camarada é restabelecido ao fim da Segunda Guerra Mundial nos campos até sua extinção no governo pós-Stalin (LEWIN, 2007, p.193-222).
Números fantásticos, mentes criativas
Quando se fala da história da União Soviética um aspecto sempre chama atenção: a criatividade ao falar do número de mortos. E isso não é especificidade dos espadachins da Guerra Fria, até historiadores sérios como Moshe Lewin (que estamos usando nesse trabalho), ao calcular o número de mortos durante o governo de Stálin, coloca na conta um “número de não nascidos” – não me parece existir qualquer justificativa plausível para criar essa categoria fantástica no estudo da demografia soviética.
O filosofo Jean Salem, na sua brilhante entrevista ao Jornal Avante, comenta de forma espirituosa esses números fantásticos de mortos:
Em 1956 tinha apenas quatro anos de idade. Só mais tarde, naturalmente, ouvi falar do XX Congresso do PCUS. Nos anos 70, era eu membro das juventudes comunistas em França, começou-se a falar cada vez com mais frequência de um milhão, dois milhões, de três ou quatro milhões de vítimas da repressão stalinista, pressupondo-se evidentemente que numa revolução nem todos os mortos são vítimas inocentes executadas por erro. Entre os anos 70 a 85, ou seja 30 anos depois do XX Congresso, assistiu-se ao inflacionamento demencial dos números (40 milhões, 60 milhões, etc.), a uma assimilação grotesca do stalinismo ao nazismo, e logo do sovietismo e do socialismo em geral ao nazismo.O que penso é que esta aritmética macabra tem de ser verificada e, evidentemente, desmentida já que é demasiado extraordinária para poder ser verdade [7].
É claro que com o Gulag acontece o mesmo. O número de presos e mortos nos campos é inflado de acordo com a falta de rigor teórico, o interesse político e o nível de cretinice do historiador. O historiador Víktor Zemskov, do Instituto de História da Academia de Ciências Russa, foi encarregado pelo governo do seu país de estudar a fundo as repressões da época stalinistas, com acesso especial a todos os arquivos secretos (o governo que o designou foi o de Mikhail Gorbatchov, alguém que não tinha a mínima intenção de reduzir a dramaticidade dos números).
Entre 1921-1953, segundo Zemskov, o governo soviético fuzilou por crimes políticos (cabe destacar que existia um processual penal, embora em toda história soviética do período, as regras do direito não eram imperativamente seguidas) 799. 455 pessoas. Reparam que o número trazido abarca não só o período do governo de Stálin, mas o de Lenin e do Triunvirato – Kamanev, Zinoviev e Stálin (é lógico que a repressão maior foi no período de Stálin). Para o “grande terror” de 1937-1938, nosso historiador achou um número total de 2,5 milhões de detenções – números que batem com os fornecidos por Monshe Lewin no seu livro já citado (Lewin também teve acesso especial aos arquivos russos) [8].
Independente do juízo que se faça dos números chama atenção à disparidade com versões mundialmente famosas. A “historiadora” russa Olga Chatunóvskaia fala em vinte milhões presos no “grande terror” (quase vinte vezes o número real). Quanto ao número de mortes, o famoso Robert Conquest, digno espadachim da Guerra Fria, falava em 12 milhões (doze vezes mais que os 799. 455 – em um período de quase trinta anos e com todas as condições históricas envolvidas). A metodologia de Conquest é interessante e merece ser citada [9].
Quando os nazistas tomaram a cidade russa de Smolensk, eles pegaram documentos do arquivo local que tratava das repressões políticas. Depois disso, o arquivo da mão dos nazistas passa misteriosamente para os estadunidenses (é de notório saber que centenas de agentes nazistas entraram no serviço secreto dos EUA ao fim da guerra para combater os soviéticos [10]). Conquest como bom “servidor da pátria” pega esses documentos, deduz que os números que estão ali são encontráveis em todas as regiões da União Soviética e cria o fantástico número de 12 milhões de mortos.
Estado Total?
No começo do texto falamos que a propaganda anticomunista na Guerra Fria não seria tão genial sem a contribuição de Georg Orwell. O seu romance mais famoso, 1948, foi distribuído aos montes pela CIA no mundo, transformado em filme, desenho, quadrinho, etc. Uma das imagens mais significativas do romance de Orwell (que alguns tomam como análise histórica séria) é que ideia de um Estado total, super poderoso, controlador e onipresente. Quando falamos do Gulag Soviético essa imagem do Estado onipresente também é evocada. A ideia de presos hiper vigiados, sob máximo controle, inevitavelmente vem ao imaginário social. Porém, assim como quase tudo que temos de certo sobre a União Soviética, essa imagem é falsa.
A pesquisa de Víktor Zemskov também traz números sobre os fugitivos do Gulag Soviético – já vimos que presos podiam tornar-se guardas e até administradores dos campos e que o Estado soviético tinha dificuldades muitas vezes em executar suas medidas administrativas de forma organizada, fatos que não combina com um Estado total onisciente. Zemskov fornece os seguintes números: “as fugas dos campos eram muito frequentes; quase 400 mil presos fugiram entre 1934 e 1953, dos quais 38% não puderam ser recapturados” [11]. Esses números dificilmente são compatíveis com a ideia de um Estado total, hiper controlador, e com o sistema prisional como seu reflexo. Se olharmos mais de perto os números percebemos que começam a contar justamente no auge da intensificação da repressão – pelos motivos que já tratamos – e mesmo assim temos um aumento número de fugas e não recapturados elevado.
Aliás, faz-se-á necessário suprimir de uma vez com a lenda do “Estado 1984” citando um trecho esclarecedor do livro do Domenico Losurdo:
Espaços de insegurança, mal controlados pelas autoridades, onde se concentram marginalizados e gente fora da lei, onde os bandos armados atacam os kolkhozes isolados e matam os raros “representantes do poder soviético”. Espaços de arbítrio e violência, onde todos estão armados, a vida humana não tem valor e a caça ao home, quando acontece, substitui a caça aos animais [...]. Espaços em que o Estado, pelo menos aquele definido por Max Weber como o “sistema que reivindica com sucesso o direito a legislar sobre um território, enquanto monopolista do uso legítimo da força” está quase ausente (KHLEVNIUK apud LOSURDO, 2010, p. 163).
A análise supracitada aborda a sociedade soviética nos anos 30, auge do poder do grupo dirigente liderado por Stálin. É impossível compatibilizar a analise séria da realidade com a mitologia política do “Estado 1984” – na verdade o Estado soviético só controla efetivamente todo seu território, no sentido dado por Weber, depois da Segunda Guerra Mundial.
Conclusão: a crítica fora do mito
É muito comum a historiografia sobre a União Soviética desconsiderar todo o quadro histórico concreto que delineia as condições de desenvolvimento e a construção do socialismo – o que nós marxistas chamamos de condições objetivas – e reduzir todas as ações políticas do grupo dirigente à mentalidade de Stálin; mentalidade traçada com base em um psicologismo barato onde ganha quem criar um arquétipo mais sádico, louco e desumano.
Vimos que existiu na história soviética uma dialética entre emancipação/socialização e repressão/regressão. O fim dos flagelos da miséria (fome, falta de moradia, desemprego, etc.), o combate ao colonialismo, a derrota do nazifascismo, o fim da secular opressão contra nacionalidade, os avanços no status social da mulher, etc. são fenômenos emancipatórios de enorme envergadura. A União Soviética garantiu para seu povo direitos sociais e um padrão de vida que até hoje a maioria da população do mundo está privada; ao mesmo tempo; a repressão política, fechamento do universo da critica político-cultural (só permitido a linha do partido), esvaziamento dos Sovietes como órgãos de poder e da autogestão operária – consolidação da linha do diretor único na fábrica – marcam regressões significativas no período.
Essa dialética entre emancipação e regressão marca também a história do Gulag. Mesmo compreendendo todo o cenário extremo – internamente e na arena internacional – que a URSS enfrentava, o número de 2,5 milhões de presos não pode deixar de nos impressionar (de resto, é importante lembrar que esse é o número atual de presos na “democracia” estadunidense [12]). Um sistema prisional violentamente dilatado e amplo demais. De certo, dentro do processo de coletivização e industrialização acelerada, o alto número de presos seria inevitável; mas o que parece claro que é houve um excesso de perseguição nos enfrentamentos políticos no seio do Partido e do Estado e que esse número de presos poderia não ser tão catastrófico e o processo não tão violento – reduzir essas perseguições e fortes enfrentamentos políticos à personalidade de Stálin não é um exercício de pesquisa científica, mas de imaginação hollywoodiana.
Esse sistema repressivo pode guarda “elementos emancipatórios”. Já analisamos amplamente o funcionamento interno do Gulag soviético; para termos uma visão correta do que ele significou na história do povo, faz-se-á necessário comparar o Gulag com a prisão na época da Rússia Czarista (apoiada por várias potências liberais do “Ocidente”). A descrição de Anton Techekhov é a seguinte:
Fizemos definhar na prisão milhões de pessoas sem nenhuma finalidade, sem nenhuma consideração e de modo bárbaro, levamos essas pessoas em corrente no gelo por milhares de verstas, nós as contagiamos com sífilis e as corrompemos, corrompemos e aumentamos os criminosos, mas fomos nós todos que temamos as devidas distâncias desse assunto, como se não nos dissessem respeito (APPLEBAUM Apud LOSURDO: 2010, p. 159).
Para ilustrar mais ainda o que estamos falando, é mister descrever a situação em uma prisão do sul racista do Estados Unidos.
[...] que os detidos eram excessivamente e, às vezes, cruelmente castigados; que estavam miseravelmente vestidos e alimentados, que os doentes não recebiam cuidados, porque não se providenciara nenhum hospital e eram encerrados junto com os detentos sadios". Uma pesquisa feita pelo grande júri no hospital da penitenciária do Mississipi relatou que os pacientes traziam "todos em seus corpos os sinais dos tratamentos mais inumanos e brutais. Muitíssimos têm as costas dilaceradas pelas bexigas, cicratizes e bolhas, alguns com a pele esfolada depois de cruéis chicotadas...Jaziam moribundos, e alguns deles sobre tábuas nuas, tão fracos e macilentos que os seus ossos eram quase visíveis debaixo da pele, e muitos se lamentavam pela deficiência de alimentação. [...] Os condenados a trabalhos forçados nos campos de terebentáceas da Florida, com "correntes nos pés" e "correntes na cintura" presas aos seus corpos, eram obrigados a trabalhar a trote" (WOODWARD apud LOSURDO, 2008, p. 168).
O que fica perceptível é que mesmo o Gulag Soviético com seus elementos regressivos, significou um “avanço civilizatório” em relação as prisões czaristas e a situação dos negros presos no Sul dos Estados Unidos (é lógico que esse tipo de comparação é sempre relativa e que o ideal seria a inexistência de todos esses complexos repressivos).
Outro elemento indispensável na análise do Gulag Soviético é perceber que relação entre posição geopolítica da União Soviética e sistema político interno. Temos uma clara relação mediada entre fragilidade geopolítica e fechamento do sistema político interno. Nunca é demais lembrar que os períodos mais duros de repressão política e enfrentamentos de classe na URSS, coincidem com situação de forte hostilidade internacional. É claro que não é uma relação mecânica, determinista, mas sim condicionante.
Dentro dessa perspectiva é que podemos entender o fim do Gulag. Depois da reconstrução da União Soviética no pós-Segunda Guerra, o país já era uma civilização urbano-industrial, com espetacular desenvolvimento das forças produtivas (segunda maior potência do mundo) e todos os flagelos da miséria já haviam sido superados. Ao mesmo tempo, o forte poder militar e industrial colocava o país em uma posição privilegiada. Não era mais o fraco país agrário cercado e ameaçado; era a forte superpotência com influência e prestígio mundial capaz de enfrentar frontalmente qualquer exército do mundo (inclusive dos EUA).
Essa mudança na posição geopolítica combinada com as fortes transformações societárias e a intensa disputa de poder no seio do PCUS no pós-Stálin, condicionaram uma significativa revisão da política criminal e penal. Os níveis de repressão foram amplamente minimizados, o aparato penal substancialmente reduzido e a Administração Geral dos Campos de Trabalho Correcional e Colônias (o gulag) foi fechado (gradualmente, não podemos esquecer).
De 1953 em diante, o número de prisioneiros caiu regularmente. Entre 1953 e 1957, o Presidium do Soviete Supremo anunciou várias anistias para diferentes categorias de prisioneiros – entre as quais, uma, em 1955, para pessoas que haviam colaborado com os invasores alemães. Em 1957, o 40° aniversário da revolução de outubro contemplou uma nova anistia, afetando um significativo número de internos. Em 1956 e 1959, foram criados comissões nas repúblicas para revisar diretamente os estabelecimentos penitenciários os casos daqueles condenados por crimes contra o Estado, conduta ilegal e outros crimes econômicos, bem por delitos menores. A Promotoria Geral da URSS ajudou a redigir essas medidas e supervisionou a sua implementação (LEWIN: 2007, P. 151).
Por fim, conhecendo agora minimamente a história real do Gulag soviético, podemos avançar em algumas conclusões: A) a propaganda reacionária da Guerra Fria de equiparar o Gulag ao Campo de Concentração Nazista está errada do começo ao fim; B) Sobre o número de presos, a situação deles no sistema prisional, o número de mortos, o status social dos presos e a política de reabilitação no Gulag, a maioria das análises mais famosas estão equivocadas; C) embora muitos aspectos do Gulag sejam deploráveis (como o alto número de presos, os erros administrativos que causavam tragédias, etc.), vimos que em comparação com as prisões da Rússia Czarista ou do Sul racista dos EUA (ou até com os campos de concentração do imperialismo na África e Ásia), o Gulag tinha condições gerais muito melhores.
A crítica dos erros na condução da política penal e prisional na experiência soviética é mais que necessário para os comunistas. Contudo, essa critica deve ser feita com base em dados reais, pesquisas históricas sérias e análises materialistas que considerem todo o quadro histórico concreto que dota de sentido explicativo as ações políticas concretas. Não avançaremos um milímetro nessa crítica se ficarmos presos às imbecilidades criadas durante a Guerra Fria. Esse texto não pretende esgotar o tema, mas apenas ser uma singela contribuição na desmistificação da historiografia reacionária que ainda domina o estudo da sociedade soviética.
Notas:
[1] – http://khaosvergir.blogspot.com.br/2011/07/capitalismo-prosperidade-e-estado-de.html.
[2] – http://www.ifch.unicamp.br/criticamarxista/arquivos_biblioteca/artigo100critica17-A-losurdo.pdf.
[3] – https://bertonesousa.wordpress.com/2014/07/11/kruschev-nao-mentiu-sobre-stalin/.
[4] – http://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=554.
[5] – http://choldraboldra.blogspot.com.br/2014/05/o-colapso-da-uniao-sovietica-revisitado.html.
[6] – http://choldraboldra.blogspot.com.br/2014/05/o-colapso-da-uniao-sovietica-revisitado.html.
[7] – http://pcb.org.br/fdr/index.php?option=com_content&view=article&id=554.
[8] –http://choldraboldra.blogspot.com.br/2001/06/o-verdadeiro-terror-de-stalin.html.
[9] – Mesma fonte da nota anterior.
[10] – http://oglobo.globo.com/sociedade/historia/eua-recrutaram-ex-nazistas.
[11] – http://choldraboldra.blogspot.com.br/2001/06/o-verdadeiro-terror-de-stalin.html.
[12] – http://operamundi.uol.com.br/conteudo/.
Bibliografia:
V. I. Lenin. O Estado e a Revolução. Expressão Popular, 2007.
Patricia Villen. Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo. Expressão Popular, 2013.
Moshe Lewin. O século Soviético. Da revolução de 1917 ao colapso da URSS. Editora Record, 2007.
Domenico Losurdo. Stalin. História crítica de uma lenda negra. Editora Revan, 2010.
Zhores A. Medvedev e Roy A. Medvedev. Um Stalin desconhecido. Novas revelações dos arquivos soviéticos. Editora Record, 2006.
Karl Marx e Friedrich Engels. Manifesto do partido comunista. L&PM Pocket, 2001.
Leon Trotsky. A revolução traída. Global editora, 1980.
Hannah Arendt. Origens do totalitarismo. Anti-semitismo, imperialismo, totalitarismo. Companhia das letras, 2009.
Marcelo Braz. Partido e Revolução 1848-1989. Expressão Popular, 2011.
Horace B. Davis. Para uma teoria marxista do nacionalismo. Editores Zahar, 1978.
George Orwell. 1984. Companhia Editora Nacional, 2007.
E. Raúl Zaffaroni. O inimigo do direito penal. Editora Revan e Instituto carioca de criminologia, 2007.