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Alexandre Araújo Costa

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Desigualdade e irracionalidade, marcas da crise climática

Alexandre Araújo Costa - Publicado: Segunda, 16 Fevereiro 2015 17:23

O presente artigo não é ainda um balanço geral da COP-20, realizada no último mês de dezembro, em Lima (algo em que nosso blog ainda está em dívida).


Ao invés disso, a ideia é analisarmos aspectos que são importantes para entender a profunda paralisia que permanece nos círculos de negociação, para além, claro do enorme poderio (e, consequentemente do poderoso lobby) da parte da indústria fóssil em geral e das petroquímicas em particular.

Um dos fatores que leva à paralisia é a evidente desigualdade entre beneficiários das emissões de gases de efeito estufa e os mais atingidos pelos impactos das mudanças climáticas. No que diz respeito aos Estados nacionais, os dois conjuntos (maiores beneficiários versus principais atingidos) contêm interseções, claro, mas a regra é o contrário, isto é, em geral, os países que estão na linha de frente do risco climático estão longe de ser os que mais geraram e acumularam riqueza propulsionados pela queima de carvão e petróleo.

A divisão entre países, aliás, é algo que reflete, dentro de cada um deles, a segregação de classe, o profundo fosso social que separa os muitíssimo ricos da gigantesca massa de pobres em escala global e dentro de cada país; entre o 1% das pessoas mais abastadas, cuja riqueza é 65 vezes maior do que a de 3,5 bilhões de pessoas e especialmente, dentre aquelas, das 85 pessoas cujo patrimônio se iguala ao da metade mais pobre da população mundial, segundo dados da Oxfam. Enquanto os pobres pouco emitem (no caso de comunidades tradicionais e povos indígenas as emissões líquidas se aproximam de zero), os ricos possuem uma "pegada de carbonoper capita muito grande e mesmo sem considerar o fato de que vários são proprietários ou sócios em companhias de setores econômicos associados a grandes emissões (indústrias fóssil e automobilística, mineração, agronegócio, produção de cimento etc,), tal pegada se expressa muito bem no padrão individual de consumo e no estilo de vida (uso de automóveis com motores de grande cilindrada, viagens aéreas frequentes, consumo muito elevado de bens industrializados, vários produzidos às custas da queima de carvão em termelétricas chinesas e até mesmo consumo de alimentos com maior impacto em termos de emissões, como carne bovina ou comida importada, que responde por parcela nada desprezível das emissões de transporte de carga).
 
Mas já que falamos de produtos chineses, voltemos à análise das emissões por Estados nacionais, particularmente as do País de maior população mundial e, hoje em dia, também o maior emissor. Não se pode simplesmente partir do dado óbvio de que a China ocupa esse posto (maior emissor) desde 2005 quando, segundo dados do World Resources Institute (WRI), disponibilizados pelo CAIT2.0, ela ultrapassou os EUA (naquele ano, a China emitiu 5,935 bilhões de toneladas de CO2, ou 7,337 bilhões de toneladas de CO2-equivalente, incluindo os demais gases de efeito estufa, enquanto os EUA emitiram 5,828 bilhões de toneladas de CO2, ou 6,908 bilhões de toneladas de CO2-equivalente). Em primeiro lugar porque o carbono emitido pelas termelétricas chinesas que fazem da China o galpão de fábrica mundial é "exportado" para o planeta inteiro dentro de cada computador, cada smartphone, cada roupa, cada bugiganga eletrônica ou brinquedo barulhento. Ou seja, é o mercado ultraconsumidor mundial, especialmente nos países mais ricos, o principal indutor das emissões "chinesas". De acordo com o Worldwatch Institute, em 2005, um terço das emissões chinesas já estavam diretamente associadas à produção de bens para exportação (bem mais do que os 12% de 1987).  Mas essa percentagem possivelmente está bastante subestimada, já que provavelmente não leva em conta as emissões indiretamente ligadas às exportações chinesas, como a produção de máquinas que não são exportadas, mas que são utilizadas pelas indústrias que produzem bens para exportação. Em segundo lugar, porque as emissões históricas e as emissões per capita revelam uma outra realidade.
 
Se considerarmos todas as emissões de CO2 desde 1850 (estimativas para os outros gases e, portanto, para o CO2-equivalente só estão disponíveis para um período mais recente), os Estados Unidos lideram com folga, totalizando nada menos do que 356 Gton (uma gigatonelada equivale a um bilhão de toneladas), o que equivale a incríveis 28% das emissões globais. Mesmo agrupando os atuais 28 membros da Comunidade Europeia, chegamos a 322 Gton (25% das emissões globais) e a China, atualmente a maior emissora anual, historicamente emitiu 132 Gton de CO2 (pouco mais de 10%), seguida pela Rússia, com 99 Gton (ou pouco menos de 8% das emissões globais totais desde 1850).

Do ponto de vista das emissões per capita de CO2, considerando a taxa anual do presente, o Qatar aparece como aquele que mais emite por habitante (40,4 toneladas de CO2 por habitante por ano, de acordo com o WRI). O ex-protetorado britânico, que se tornou independente há meros 33 anos, conta com uma população de apenas 2,168 milhões de pessoas (em 2013, segundo o Banco Mundial), é detentor daquilo que se estima ser a terceira maior reserva de gás natural e petróleo (25 bilhões de barris) e é um dos países com maior PIB per capita (também de acordo com o Banco Mundial, pulou 12 posições no ranking dessa variável em apenas uma década e em 2012 assumiu a terceira posição, logo atrás de Luxemburgo e Noruega). O site do Banco Mundial não apresenta dados do índice GINI (que nos ofereceria uma informação quantitativa), mas sabe-se que é também um local de grande concentração de riqueza e um dos piores locais do planeta para se trabalhar, segundo informações da International Trade Union Confederation.

Mas o que é mais importante nessa discussão toda não é, evidentemente, "livrar a cara da China", como seus próprios dirigentes, em acordo com a cúpula do governo dos EUA, tentam fazer, vide o questionável "acordo bilateral", celebrado às vésperas da COP-20. O mais importante é estabelecer, como dito antes, o contraste entre os grandes emissores (atuais e históricos) que são principalmente os ricos dos países ricos e as pequenas emissões dos países mais afetados por calamidades que, segundo várias evidências, estão se agravando em função do aquecimento do sistema climático terrestre, como secas, enchentes, tempestades violentas e ciclones tropicais (furacões e tufões).

Durante a COP-20, como já vem ficando de praxe, as Filipinas foram violentamente atingidas pelo tufão Hagupit, que levou ao deslocamento de mais de meio milhão de pessoas de suas casas, um ano após o Haiyan ter devastado cidades inteiras (como Tacloban) e matado mais de 6000 pessoas. E de fato, segundo a Germanwatch, em 2013, as Filipinas, o Cambodja e a Índia lideraram a lista de países atingidos por eventos extremos. O relatório completo da Germanwatch indica, por sinal, a lista de países mais afetados nas duas últimas duas décadas, indicada abaixo, tendo eu acrescentado os dados do WRI para emissões e emissões per capita.
 
Chama evidentemente a atenção para o fato de que nenhum desses 10 países está entre os grandes emissores globais e que, considerando-se as emissões per capita, todos eles estão para além do centésimo posto num ranking de 188 países. Além disso, o maior emissor per capita dentre eles (a Republica Dominicana), com 1,97 toneladas de CO2 por habitante por ano ainda fica distante da média global (apenas 43% das 4,54 ton/hab/ano emitidas globalmente).
 
É importante também cruzar os dados do índice de risco climático com os das condições econômicas desses dez países mais afetados. Neste caso, usando os dados do Fundo Monetário Internacional para 2013, o PIB per capita de 9 dos 10 países listados (não havia dados sobre Myanmar) não deixa dúvidas quanto às suas condições: U$ 2.323 para Honduras (127ª posição no ranking de 183 países), U$ 819 para o Haiti (159ª posição), U$ 1.839 para a Nicarágua (134ª posição), U$ 2.790 para as Filipinas (124ª posição), U$ 903 para Bangladesh (157ª posição), U$ 1.901 para o Vietnã (132ª posição), U$ 5.834 para a República Dominicana (o único país melhor acima do centésimo PIB per capita mundial, na 91ª posição, mas ainda muito abaixo do PIB per capita mundial de U$ 10.486), U$ 3.512 para a Guatemala (114ª posição) e U$ 1.307 para a Guatemala (143ª posição). Em resumo, países pobres: muito menos responsabilidade histórica, muito menos usufruto da riqueza em associação com as emissões de CO2 e outros gases e muito mais vulnerabilidade à mudança climática.

O conceito de justiça climática precisa estar presente ao discutirmos saídas, cada vez mais difíceis (mas ao mesmo tempo cada vez mais imprescindíveis), para a crise climática. Ela requer responsabilidades e investimentos diferenciados, redução acelerada e radical da desigualdade nacional e de classe, abandono das fontes fósseis como base da geração energética, contenção da hiperprodução e hipersonsumo, fim de restrições de patentes que obstaculizem a ampla difusão de tecnologias de mitigação, proteção dos mais frágeis, transição energética acelerada nos países ricos, apoio material, humano e financeiro para que os países mais pobres preservem seus estoques de carbono e tenham acesso a um desenvolvimento baseado noutro modelo. Contrabalançar a contradição que verificamos entre quem se beneficiou das emissões (os ricos) e quem é mais vulnerável às consequências deletérias e cada vez mais catastróficas dessas emissões sobre o clima (os pobres) requer um esforço coordenado mundial e uma postura responsável por parte dos países mais desenvolvidos, numa lógica que teria de confrontar, necessariamente, com os interesses da grandes corporações, particularmente as dos setores petroquímico, energético, automobilístico, agropecuário etc. Mas infelizmente a história que temos para contar não segue esse rumo.
 
Como tem se comportado os países mais ricos? Não só não é visível nenhuma movimentação no sentido de esvaziar o poderio da indústria fóssil, o que seria necessário como parte de uma saída justa para a crise climática, como pelo contrário, evidenciando que os aparelhos de Estado nacionais, mesmo sob regimes ditos democráticos são instrumentos nas mãos das corporações, são enormes os investimentos públicos em apoio a essa mesma indústria.

As conclusões do Relatório "Price of Oil" são eloquentes, gritantes diria. Ele compara o que está sendo destinado ao "Fundo Verde do Clima", ou Green Climate Fund (GCF), que se espera que movimente até o ano 2020, 100 bilhões de dólares em financiamento anual para fins de adaptação e mitigação em países em desenvolvimento. O que o relatório mostra, porém é que os gastos com apoio à indústria fóssil são muito maiores do que essa cifra.

Somente para a busca por novas jazidas de petróleo, carvão e gás, os países desenvolvidos aplicam quase 3 vezes o que é colocado para proteção climática. Enquanto o GCF havia recebido até Dezembro de 2014 um total de 9,95 bilhões de dólares, o suporte público à exploração de jazidas fósseis por parte dos países do chamado "Anexo 2" da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima somou nada menos que 26,6 bilhões de dólares (167% a mais). Em outras palavras, aqueles países industrializados responsáveis por destinar recursos financeiros às ações voluntárias de mitigação e adaptação nos países em desenvolvimento e promoverem a transferência de tecnologias para sustentabilidade, continuam colocando muito mais peso no prato da balança da crise climática do que no da sua solução!
 
Ora, é inaceitável, inadmissível, inconcebível que qualquer investimento público seja feitos para se encontrar novas jazidas fósseis quando já se sabe que a maior parte das jazidas conhecidas e certificadas precisa permanecer intacta para que não se ultrapasse o patamar de um aquecimento de 2°C (pense na crise hídrica de hoje, pense nos eventos extremos dos dias de hoje, pense nas Filipinas, em Petrópolis, no Cantareira... e lembre-se que estas são as calamidades de 0,89°C de aquecimento, uma brincadeira de criança se comparadas com o que se espera num cenário de dois, três, quatro ou sabe-se lá quantos graus acima da temperatura global pré-industrial).

O que dizer então quando constatamos que esse investimento existe e, no caso de países como a Austrália, a Áustria e a Bélgica, nenhum centavo sequer foi destinado ao GCF? O que dizer quando se constata que os EUA, entre subsídios públicos e investimentos públicos diretos, joga nada menos do que 6,5 bilhões de dólares por ano nessa atividade que deveria ser banida e que toda a encenação de Obama não esconde a dura realidade de que os subsídios aos combustíveis fósseis cresceram em 45% desde 2009? Quando a Holanda, país-sede (ao lado do Reino Unido) da Shell, aplica U$ 4,9 bilhões no desastre climático, enquanto repassa míseros U$ 124 milhões (40 vezes menos!) para o GCF? Quando mesmo a Alemanha, único país do Anexo 2 a destinar mais recursos ao fundo climático do que à pobre coitadinha indústria fóssil ainda assim entrega quase meio bilhão de dólares de dinheiro público nas mãos dela todo ano?
 
Ora, a indústria fóssil já aufere lucros astronômicos. As petroquímicas, em particular, como mostramos em texto anterior, ocupam a maior parte das posições de cima no ranking de maiores empresas em faturamento (nada menos do que 7 das 11). Segundo a Forbes, só a Gazprom russa obteve um lucro líquido de U$ 38,97 bilhões em um ano (o 4º maior lucro líquido dentre todas as companhias do mundo), ou seja, 4 vezes o destinado ao GCF por todos os países! Ainda que a crise climática não existisse, já seria por si só uma contradição aberrante o fato de os defensores do "deus-mercado" apelarem tão frequentemente para uma "forcinha" do aparato estatal, especialmente quando esse setor econômico tem tanta bala na agulha para ele mesmo cuidar dos investimentos que lhe interessassem... Mas não é assim, longe disso! Não apenas a crise climática existe como é o maior impasse a impor soluções para os próximos anos, a fim de que as chances de evitarmos consequências catastróficas não se tornem exíguas. Nesse contexto, o poder público (fica clara a necessidade de outro poder público que não o estabelecido, aliás) teria a obrigação de impedir a indústria fóssil de realizar qualquer prospecção em busca de novas jazidas fósseis, tirar-lhe o controle das jazidas já existentes e obrigá-la a respeitar o "orçamento para dois graus" ao invés de subsidiar-lhe a farra e o carnaval. Do contrário, não haverá meios de conter a fome total, a sede total, a perda de bens materiais e vidas nas secas, enchentes e tufões. Ó mundo tão desigual...
 
Publicado originalmente no blog: O que você faria se soubesse o que eu sei?

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