O mecanismo de constituição macroeconômica da UE é curioso. Os mercados são unificados: moeda única, livre circulação de pessoas, mesmo regime fiscal, livre circulação de “fatores de produção”, etc. entre os países do bloco, mas sem uma política econômica de equalização das diferenças de competitividade e capacidade produtiva de cada país. A Alemanha, por exemplo, devorou as indústrias dos países menores e frágeis como a Grécia. O capital alemão obrigou os trabalhadores do seu país a aceitar congelamento de salários ou aumentos residuais sob a ameaça de mudar as indústrias para Romênia, Bulgária, etc. Com baixos níveis salariais, alta tecnologia e produtividade, foi fácil para o capital alemão devorar as indústrias pequenas e médias das economias mais frágeis – como a política alfandegária é definida a nível europeu, países como a Grécia não podiam tomar medidas protecionistas (A Croácia, por exemplo, está vendo sua indústria naval ser destruída) [1].
Esse processo de retratação da indústria dos países mais frágeis foi compensado por ampla disponibilidade de crédito e entrada de capitais especulativos. Com a crise capitalista de 2008 o esquema todo caiu e ficou claro para os analistas sérios – espécie em extinção – que a UE foi construída para beneficiar os capitais das economias mais fortes, notadamente Alemanha e França, e sobre uma “superestrutura” antidemocrática [2].
Com a piora da crise capitalista a UE procurou tomar medidas de “recuperação” que só fortaleceram seu caráter antidemocrático e pró-monopólios. Um país membro da UE não controla soberanamente seu câmbio, política alfandegária, política de importação/exportação, política agrária e industrial, política fiscal e de juros. O Banco Central Europeu (BCE), cujo seus gestores não são eleitos e nem subordinados ao mínimo de controle público, controla os principais fatores macroeconômicos da UE. O Tratado sobre Estabilidade, Coordenação e Governança para a União Econômica e Monetária (TECG) impõe:
O TECG obriga os países signatários a constitucionalizar a “regra de ouro”. E, caso a Comissão – única competente – anuncie um “déficit estrutural”, os Estados deverão colocar em marcha um mecanismo de correção “automático”, ou seja, “que não será submetido à deliberação parlamentar”. Na prática, isso significa que não serão mais os eleitos, e sim a Comissão constitucional que terá o poder de controlar a adequação dos orçamentos a essa nova regra. Quando um Estado sair da tabela prefixada (déficit orçamentário superior a 3% do PIB e dívida acima de 60%), deverá submeter um programa de reformas estruturais obrigatórias à Comissão e ao Conselho [3].
Outro órgão político-financeiro com papel central e totalmente antidemocrático na estrutura da UE é o Mecanismo Europeu de Estabilidade (MEE). Esse funciona assim (seguindo o mesmo texto da citação anterior):
Dirigido por um conselho de ministros de finanças chamados “governantes”, assemelha-se a um Estado dentro de outro: é independente do Parlamento europeu e de seus parlamentos nacionais; seu espaço de funcionamento e seus documentos são invioláveis e não podem ser objeto de investigação. Por outro lado, os chamados “governantes” poderão acionar a CJUE, única competente, contra um Estado-membro contraventor. O MEE visa “mobilizar recursos financeiros e fornecê-los sob estritas condições” a um país-membro em grave dificuldade financeira que ameace a estabilidade financeira da zona do euro. Para esse fim, dispõe da capacidade de levantar fundos junto a Estados e aos mercados. Seu capital é fixado em 700 bilhões de euros, fornecidos pelos Estados-membros, que se comprometem “de maneira irrevogável e incondicional” a dotar o MEE dessa quantia “nos sete dias seguintes ao recebimento da solicitação”. De sua parte, a França deverá fornecer 142,7 bilhões de euros. O MEE tem poder de decidir sobre o aumento da contribuição de cada país-membro sem ser refutado.
A Corte de Justiça da União Europeia (CJUE) também é outro órgão com forte atuação jurídica e política, tendo como prática cada vez mais frequente a criação de jurisprudências, mas sem o mínimo controle democrático. O que podemos dizer, em resumo, é que as instituições eleitas – como o Parlamento Europeu – estão cada vez mais marginalizadas (instituições já com um forte déficit democrático) em detrimento de órgãos como o BCE e a própria Troika (Banco Central Europeu, FMI e Comissão Europeia); e ao mesmo tempo, a política econômica de um país dentro da UE foge ao seu controle e fica sob o julgo dos desígnios do capital alemão e francês.
Ao assumir o governo na Grécia, o Syriza tomou medidas importantes. Começou a fornecer luz de graça para 300 mil pobres, aumentou o salário mínimo, parou as privatizações em andamento e anunciou a recontratação de funcionários públicos demitidos. Essas medidas causaram certa euforia na esquerda e alguns parecem que esqueceram que o imperialismo europeu não iria assistir a isso sem agir [4].
O BCE já anunciou que deixará de aceitar a dívida pública grega como garantia para os bancos, o que de fato significa cortar o financiamento do país e pressionar por um novo resgate, e sabemos que os resgates vêm acompanhados de medidas de austeridade fortes [5]. O fato é que a dívida grega hoje corresponde a 170% do PIB. É uma dívida impagável – principalmente em situação de recessão econômica -, e o Syriza não defende o calote, mas sim negociar, fazer uma auditoria, pagar as partes justas com uma reestruturação; ou seja: ter prazos maiores e juros menores para pagar a dívida.
O Syriza defende o fim da Troika e um movimento europeu pela auditória e reestruturação da dívida – movimento que não existe nesse momento. A grande questão é: a Grécia tem déficit crônico de financiamento, precisa de crédito, investir em um programa de industrialização, reconstruir seus serviços públicos e reverter toda pobreza gerada pelas políticas de austeridade e a crise capitalista. Se a UE negar crédito ao país e asfixiá-lo, é lógico que isso vai impactar negativamente toda UE e os próprios mega-bancos que tem títulos da dívida grega, ao mesmo tempo, a estratégia do imperialismo parece querer levar a situação a uma catástrofe maior para que a situação convença o povo que a “estabilidade” só será possível com um novo governo – tirando o Syriza do “poder”.
Se a Grécia não dispõe de mecanismo de controle macroeconômico soberanos como ela pode adotar uma estratégia de desenvolvimento priorizando a reconstrução social e garantindo o crescimento econômico? Um país com forte potencial de turismo como a Grécia poderia nessa situação de crise desvalorizar sua moeda nacional, atrair capitais para esse setor e transferir valor desse setor para a indústria através de um forte planejamento estatal na alocação de recursos (apenas um exemplo), mas isso é impossível dentro da UE.
A proposta do Syriza de democratizar a UE só faria sentido se realmente existisse um movimento europeu de enfrentamento as estruturas antidemocráticas e pró-monopólios atuais, mas esse movimento não só não existe, como em países centrais como a Alemanha e a França as forças conservadoras (e até fascistas, no caso da França) estão cada vez mais fortes.
O Partido Comunista Grego (KKE) não entrou em coalizão com o Syriza pôr compreender que dentro da UE é impossível combater a austeridade e resolver os problemas fundamentais do povo (desemprego, fome, etc.). O KKE avalia que o Syriza comete um erro grave ao impregnar a ilusão da possibilidade de acabar com a austeridade dentro da UE, baseando-se em um suposto movimento europeu pela reestruturação das dívidas que nem existe [6].
O KKE está sendo chamado de sectário, isolacionista, ortodoxo etc. O fato é que poucos pararam para analisar as condições concretas que um país dentro da UE tem para enfrentar o poder dos monopólios. As primeiras medidas esperadas e importantes do Syriza serviram para aumentar ainda mais esse frenesi geral e a falta de perspectiva de uma análise estrutural e de longo prazo.
O risco é bem claro: se o KKE estiver certo em sua avaliação – como eu compreendo que está – o Syriza será derrotado em seu programa limitado e parte considerável dos trabalhadores que apoiaram a “Esquerda Radical” vai compreender a necessidade da radicalização e aderir às fileiras dos comunistas; caso o Syriza esteja certo, se for possível combater a austeridade, resolver o problema da dívida e recupera a qualidade de vida do povo dentro da UE, o KKE pode ficar isolado e perder influência em sua gigantesca base operária.
De qualquer forma, o KKE já se comprometeu a apoiar no Parlamento Grego as medidas pró-trabalhadores propostas pelo Syriza e cooperar junto quando for necessário [7]. Superando o afã de opinar apressadamente sobre a questão, antes de tudo, é necessário avaliar todos os ricos e variáveis de uma estratégia de enfrentamento ao poder dos monopólios dentro e fora da UE. Esse texto foi apenas uma pequena e singela contribuição ao assunto. Contudo, mesmo sem muita profundidade, avançamos na conclusão: dentro da UE é impossível combater efetivamente as políticas de austeridade e o poder dos monopólios. Só com o rompimento com o euro, a recuperação da capacidade soberana na condução da política econômica, a planificação da economia e a socialização dos meios de produção é que a Grécia pode traçar uma estratégia adequada de desenvolvimento e enfrentamento dos problemas fundamentais do povo.
Notas:
[1] - http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1457.
[2] - http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1315.
[3] - http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1197.
[4] - http://operamundi.uol.com.br/conteudo/noticias.
[5] - http://brasil.elpais.com/brasil/2015/02/05/internacional/1423148636_975255.html.
[6] - http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=8131.