Com o olhar aguçado de quem reflete e sabe medir as palavras, não querendo usufruir da propriedade da razão, contava-me ter o conhecimento de várias pessoas que nas noites de inverno iam para as tascas, não só para conviverem e fugirem do isolamento mas também para se aquecerem o que, ao fim e ao cabo, e dei por mim a concluir, ficava mais barato do que se aquecer em casa. Quem viveu no distante Portugal rural dos anos 80 conhece a resiliência do Estado face à distribuição da riqueza e dos recursos sociais, ao nível do território.
Sim, dizia-me, as casas em Portugal são muito frias, o inverno apesar de muito mais curto do que na Alemanha, é húmido e as temperaturas fazem-se sentir dentro das casas sendo que, por vezes, está mais frio do que no exterior das mesmas. Verdade, consentia eu: sabes, é que nós temos em termos relativos aos rendimentos dos cidadãos europeus, e até em termos absolutos, a energia elétrica das mais caras da Europa e, por conseguinte, das taxas mais altas de população sem acesso ao adequado aquecimento doméstico[i].
Aliás, a complexidade deste tema, induz à discussão sobre um dos maiores assaltos efetuados na história da economia portuguesa, aquele que se deu com a entrada da Troika que, por princípio, pensa ser obrigatória mais concorrência a par de menos regulação, um (des)equilíbrio que tem de garantir, é óbvio, os interesses de quem investe, os accionistas.
A troika, com a sua entrada em abril de 2011, exigiu a venda da totalidade das grandes empresas públicas ao governo do hoje presidiário ex-primeiro-ministro José Sócrates. O plano de privatizações é considerado uma das medidas estruturais do programa de ajustamento, pelo "impacto liberalizador da economia", que o primeiro-ministro Passos Coelho decidiu acelerar.
A EDP, como uma dessas grandes empresas, tem hoje como maior acionista a empresa China Three Gorges, uma empresa diretamente sob a tutela do governo chinês. O governo português vendeu a este grupo uma posição de entrada na Europa, recusada por outros governos europeus, e a entrada no mercado lusófono.
Um dos projetos o qual as “Energias De Portugal”, a Iberdrola e a Endesa têm nas mãos ofertado pelo Estado português é a apropriação das maiores riquezas do nosso país – a água, e a manipulação deste recurso que, com a construção de nove gigantes barragens que do ponto de vista do desenvolvimento sustentável: ambiente, sociedade e economia, é castastrófica.
Sob a bandeira da poupança-nos-bolsos-dos-contribuintes através de energia mais barata, o que aliás já se veio a provar que é falso, o Estado compactua e ajuda a concessionar estas obras no pagamento de “custos adicionais” nas faturas emitidas. Joanaz de Melo[ii], professor universitário na área de engenharia do Ambiente, uma das vozes mediáticas na denúnica deste elefante branco avisa que “estas nove novas barragens vão custar-nos um aumento de 10 por cento na factura de electricidade” para além do caos ecológico que se vai gerar, submergindo-se ecossistemas e comunidades rurais para sempre.
A Plataforma Salvar o Tua tem sido uma das vozes mais sonantes e opostas a este flagelo, focando-se em particular no Vale do Tua, uma região transmontana. Esta enviou já várias queixas[iii] à própria UNESCO a denunciar o não cumprimento, por parte do governo, das contrapartidas previstas por esta instituição que zela pela preservação das áreas classificadas como Património da Humanidade, como é o caso da região transmontana na qual, hoje mais do que nunca, e citando Miguel Torga no seu “Reino Mravilhoso”, “o granito protesta” e “(...)nos acorda para a força medular de tudo”[iv].
Este conjunto de 12 obras previstas, 9 novas barragens e o reforço de outras 3 já existentes, será um ensaio tecnológico nunca posto em prática em outros países concretizado, no caso de vencerem a resistência cidadã, por empresas que receberão um subsídio equivalente a 30% da capacidade de produção, haja ou não água para produzir[v]. Mesmo paradas, recebem. A troika importa-se com isto? Ninguém no espetro político do centrão português, PS, PSD e CDS, se parece importar com este absurdo, que não posso deixar de associar à prepotência de um tal ditador de Tirania, série de ficção espanhola de Francisco Ibáñez, que na tentativa de construir mais para obter mais dinheiro, tinha como objetivo a betonização do seu império, onde não haja mais aldeias, nem cafés centrais, nem amigas, nem amigos para conversar: apenas resorts que emulam os paraísos naturais nos quais ainda correm os rios do nosso país, e turistas domingueiros mal-deleitados sob as paisagens de betão que se impõem sobre o granito do Reino de Torga.
Notas:
[i] Anderson, Richard, “Energy bills: Who pays the most in Europe?” http://www.bbc.com/news/business-25200808.
[ii] Joanaz de Melo, “Cinco argumentos ridículos: do atentado à anedota”: http://www.gaia.org.pt/node/16193.
[iii] Plataforma Salvar o Tua, “Nota de imprensa, 4 Junho 2014”: http://www.salvarotua.org/wp-content/uploads/2014/06/Infraccoes-Tua_4Jun2014.pdf.
[iv] Torga, Miguel, “Um Reino Maravilhoso (Trás-Os-Montes)” http://calltm.dsi.uminho.pt/imagens/thumbs/pdf%27s/miguel_torga.pdf.
[v] Dousado, Daniel, “Novas barragens = crimes”: http://www.jn.pt/Opiniao/default.aspx?content_id=1981816.
VÍDEO:
Grande Reportagem SIC - As Novas Barragens: https://www.youtube.com/watch?v=plyWzs_SKjc.
Reporter TVI - Facturas de Betão: https://www.youtube.com/watch?v=lQDffpP2BeE.
Biosfera 331 - Barragem do Tua: Quem fica a perder?: https://www.youtube.com/watch?v=PwX17IcNyrk.