1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 (1 Votos)
Pedro Monterroso

Clica na imagem para ver o perfil e outros textos do autor ou autora

O diabo revisitado

A digitalização de mim ou como eu decidi ir viver para um aquário

Pedro Monterroso - Publicado: Terça, 20 Janeiro 2015 17:34

Anoitecido por um dia atónito. Não tenho forças nem para abrir a caixa de comida do sábado, aquando do jantar animado entre amigos. Entediado, resolvo-me, levanto-me, encaminho-me em alguma direção que já não sei. Volto a sentar-me. Computador sobre as pernas, botão "ON" e o som habitual do sistema operativo que reclama mais um desinício do dia. É um "feed" de notícias a correr. A alimentar-me a curiosidade. A rede social. São os amigos, as amigas, os jornais e a publicidade, tudo tangente ao pensamento se me passa perante os olhos, qual peixe de curta memória, aquarizado que, em cada cinco segundos, vê notícias de um mundo igual que acusa estar diferente.


(Saltam-me notícias dos atentados às vistas sonâmbulas e, pelo destino da ironia, vêm-me lágrimas enquanto parto a cebola que resolvi deitar para a fritadeira, por ter verificado que a minha fome era maior que os restos guardados no frigorífico.)

Na França, matam por um cartoon. Dizem que foi planeado pelo ocidente, para criar uma onda de ódio contra os muçulmanos e para a opinião pública esquecer a independência da Palestina e não esquecer o ódio de estimação aos muçulmanos. Acredito nisso. Mas, não penso. É domingo. Na Nigéria, um massacre, com mais de… Quantos mortos, não se sabe ao certo. Sei lá. Foram muitos e foi lá longe. Afinal, o que é a Nigéria comparada com Paris? Em quantos livros se fala da Nigéria? Quantas pessoas vão visitar a Nigéria? Quantos atores, realizadores, amantes, e passantes já lá foram? Aliás, qual é a capital da Nigéria?

Mais notícias e eu, vegetado, só queria o desfoco das gargalhadas entre os amigos da noite passada. Aos domingos não sou de esquerda. Não sou coisa nenhuma. Sou um avatar que come informação e um pastelão com os ovos e cebola que entretanto fritei. Chicotadas na Arábia Sáudita a um jovem que, quis a sorte, se tornou num ativista global, exposto pela Amnistia Internacional – símbolo da religiosa injustiça que não deixa os homem pensar e os quer condenar todos à pior das prisões, o silêncio e o consentimento com a bárbarie. Não aguentou este, esta prisão. Hoje está condenado a 10 anos de cativeiro e a mil chicotadas. Nas indispensáveis 50 primeiras para remissão dos pecados já estava em perigo de vida. Diz que Fidel Castro disse “antes morrer de pé do que viver de joelhos”, malgrado este tenha querido morrer em pé, querem-no fazer viver e morrer de joelhos.

“Gosto”. “Gosto”. “Gosto”. É a rede social. Sou uma conta domingueira, um nome que “gosta” e, não gostando, não tem como dizer que não gosta. Admirável novilíngua! Comentando, ou não, a informação, aquilo que os olhos devoram.

Desmond Morris comparou, em suas obras, a cidade moderna ocidental a um zoo: o ser humano, um macaco nu, vivendo em super tribos, suprimiu as necessidades básicas – e a necessidade da caça. Tornou-se um predador aborrecido, a princípio inquieto e, por fim, neurótico. Com os exímios e terríveis instintos predatórios que desenvolveu na evolução da sua incomum espécie, o macaco nu hoje, não tendo a liberdade espacial e vivendo em cidades super-povoadas, quando o ideal segundo o autor seriam tribos de 100 espécimes, não deixou de se dedicar à caça, por impulso biológico. E não tendo espaço, nem o que caçar, esta é emulada todos os dias. Caça com os olhos, simula os instintos predatórios e caça informação freneticamente, enquanto compõe os óculos, coça o nariz, as orelhas, com trejeitos de um animal num jardim zoológico.

Sei que a metáfora inicial se referia a outro animal. Continuarei. Édomingo. Estou no meu quarto. As horas passam e já silenciaram o tique-taque do relógio há muito. São mais rápidas: tempos digitais. Estou seguro. Seguro dos medos, que eles aqui não chegam, é o sossego do lar, é o futuro que nos projetaram. Um lar que me protege e me deixa ver o mundo lá fora. Lar-doce-lar. Sou um peixe num aquário, dentro de um oceano dominado por tubarões, onde a raia-miúda se limita à transparente vedação.

Há dias, o médico, aquando da minha consulta e do questionamento surpreendido das causas das minhas alergias, respondia-me que, em princípio, todos nascemos sem alergias, estas vão desenvolvendo-se com a vida, fruto da reação do corpo ao meio. Achei a explicação meio básica, mas como um peixe não tem cara de entendido, foi a melhor que ele arranjou. Comparei isso ao cândido otimismo de que o homem nasce puro: a sociedade potencializa a sua malícia. Pelo caminho vão aparecendo corpos que, antes no útero materno, não haviam. O exterior fez-me mal e à vezes fico pensando porque saí de lá, o que vim cá fazer. Também isto são pensamentos domingueiros. Na verdade, vivi sempre saindo e, hoje, repouso em águas de bacalhau. Sinto que tenho alergia ao mundo.

___________

Se um fizer a mensuração do tempo que passei em frente de um monitor, morro tomado pelo assombramento da matemática. Mas não faço essas contas de forma a evitar novo êxodo. Não tenho para onde ir, nem realmente quero. Resolvi-me pela segurança dos poucos metros quadrados e da minha janela para o oceano.

Entretanto, as horas passaram. Vou dormir. Muito bem, botão vermelho, off. Apagou. Amanhã é segunda-feira e tudo voltará à normalidade. Sentar-me-ei no metro, a caminho do trabalho, expectando a revolução, num mais pequeno e dinâmico ecrã, que me deixará a olhar para o mesmo vazio. O metro encontrar-se-á cheio de peixes como eu. Que até poderão enlaçar as mãos com os seus pares, mandarão sorrisos virtuais, piscadelas de olhos, lágrimas e gargalhadas virtuais com o mesmo enfado estampado no rosto. As caras auscultadas não acusarão emoções.

Para o trabalho. Para o caralho. Desculpem o vernáculo mas rimava e tinha de o escrever. Aliás quem o disse foi o Manuel João Vieira e eu só lhe pus um “gosto” mas sem querer ofender ninguém. Alguém me irá também por um “gosto” neste meu texto? Claro que sim. E o melhor é que, nem mesmo o lendo, nem sequer chegando à leitura do segundo parágrafo, ficarão pela batidinha nas costas e deixar-me-ão a falar sózinho até aqui. Pecados que não são alheios. O tempo corre. Não há tempo para metáforas da vida. Nem poesias, nem coisa nenhuma. No sentido de evitar essa hipocrisia e de não vos deixar cair em tentação, acabei aqui: “OFF”.


Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Microdoaçom de 3 euro:

Doaçom de valor livre:

Última hora

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: info [arroba] diarioliberdade.org | Telf: (+34) 717714759

Desenhado por Eledian Technology

Aviso

Bem-vind@ ao Diário Liberdade!

Para poder votar os comentários, é necessário ter registro próprio no Diário Liberdade ou logar-se.

Clique em uma das opções abaixo.