Mas, para além deles, há uma série de mediações a ser consideradas para uma melhor compreensão do episódio, de modo que do geral devemos ir ao particular (para ao geral voltar, como o bom e velho método dialético ensina).
De início, podemos retornar à velha questão: houve ataque à liberdade de expressão e, aproveitando o ensejo, essa liberdade tem limites? É evidente que tem, caso contrário o hate speech não seria tão combatido. Não há direitos absolutos (nem mesmo a vida, pois é possível matar em legítima defesa ou em caso de guerra declarada, para ficamos em exemplos do ordenamento jurídico brasileiro), e a liberdade de expressão não seria exceção. Há outros valores e princípios que devem ser levados em consideração, antes de qualquer um sair dizendo o que der na telha; é o preço da vida em sociedade, e sociedade em tempos globalizados é basicamente o mundo inteiro. Nacionalidade e etnia são assuntos importantes, por exemplo; têm a ver com a própria dignidade do indivíduo, o seu próprio reconhecimento enquanto parte integrante de um povo ou de uma cultura. Orientação sexual, a mesma coisa; gênero, cor da pele etc., são todos tópicos sensíveis. Não estamos falando de preferência futebolística, literária ou musical (2) mas de algo, repito, que diz respeito à dignidade intrínseca da pessoa.
A religião se insere nesses tópicos sensíveis. Em seu sentido mais evidente, é o vínculo que o indivíduo tem (ou acredita ter) com a divindade, de onde extrai o norte para sua vida presente e para a próxima. Envolve sentimentos ancestrais: medo, esperança, desespero, paz, toda uma gama de sensações -inclusive contraditórias- em torno daquilo que há de mais sagrado em sua concepção, e não só sua como na de sua comunidade. Ópio do povo?, que seja, mas esse ópio deve ser lido dentro do contexto: se a religião é (também) expressão, e protesto contra, a miséria real (3), é porque se coloca diante de problemas reais, concretos e, assim, pode ser parte de sua solução.
Não é o tema aqui, contudo, eventual caráter emancipador da religião. Quero consignar que é um tema sensível, como dito, e portanto seu trato deve ser feito de forma cuidadosa, não menos do que nacionalidade, etnia, orientação sexual etc. Retornemos portanto às charges da "Charlie Hebdo". A linha é a satírica, iconoclástica, debochada. Diz atingir a tudo e a todos. Essa é a função do humor, de fato; ridendo castigat mores, conforme o velho adágio, e o enfoque crítico sob a capa do humor é poderosa ferramenta de agitação. Mas esse humor deve ser bem direcionado. É fácil ser iconoclasta, pois colocar abaixo é mais fácil que levantar. Mas se a intenção é apenas a de provocar o choque, a repulsa, não é exatamente de humor que estamos falando. O já famoso -depois do atentado- desenho em uma das capas do satírico, o de um ménage à trois entre os elementos da Trindade, não é engraçado (4). É bizarro e de mau gosto, além de, em sua bizarrice, dar azo à homofobia. A matéria da capa é justamente sobre casamento homossexual. A publicação, em seu humor duvidoso, peca (ops) por, ao supostamente combater o preconceito, municiá-lo ainda mais. É o caso da caricatura da ministra francesa Christiane Taubira como macaca, feita pela revista. Ora, disseram, apenas retratamos a forma como os racistas franceses enxergam a ministra. Isto é: a Frente Nacional enxerga a ministra como macaca, e o "Charlie Hebdo" responde a isso... retratando a ministra como macaca! É como o famigerado "Somos todos macacos" de Neymar e outros menos cotados: combater o racismo reforçando associações que deveriam, muito pelo contrário, sequer ser minimamente cogitadas.
Os ataques ao Islã se inserem nesse contexto. Combatem apenas os "radicais fundamentalistas", dizem, mas se todo muçulmano é retratado na publicação como radical fundamentalista fica difícil dissociar as imagens aos olhos do público- público, bem entendido, o europeu, do avanço cada vez maior da xenofobia e da extrema-direita. O muçulmano europeu é o imigrante ou o descendente direto de imigrante, egresso das ex-colônias: tunisianos, argelinos e assim por diante, submetidos a subempregos e à periferia. É sobre eles que recai a pecha de "radical fundamentalista". A sátira não ajuda, ao contrário, reforça o preconceito, chegando às raias do bullying dada sua reiteração. E dizer que o Corão é uma "merda" por não proteger contra balas (piada tristíssima, por se referir a morticínio ocorrido no Egito), ou retratar Muhammad pelado com uma estrela na bunda, não diz respeito apenas aos "radicais fundamentalistas": é toda a comunidade muçulmana a atingida.
Poderão dizer que é preciso banalizar o Islã, tanto quanto o catolicismo é banalizado. Mas, como colocado em um dos melhores textos que já li sobre o episódio (5), é um processo que deve ser feito (aliás, por que "deve"?) de dentro para fora, e, para deixar ainda mais claro, pelos próprios muçulmanos. Não serão os europeus os responsáveis pela banalização do Islã, a não ser que estejamos falando de outra incursão colonial. Zizek diz que o Islã, assim como todas as outras religiões, deve ser submetido a uma implacável -mas respeitosa- análise crítica, pois, se a questão para o "verdadeiro ateu" não é o mero respeito pela crença alheia (que seria, nessa ótica, condescendência com a ilusão do religioso), tampouco possui, o "verdadeiro ateu", necessidade de "promover sua posição chocando o crente por meio de declarações blasfemas" (6). A publicação francesa ficava no choque. Limitava-se, como um adolescente rebelde, a escandalizar.
Os defensores da publicação recorrem aos velhos chavões da "liberdade de expressão" e da "democracia", conceitos dos mais adulterados e falsificados na história da sociedade de classes moderna (7), e isso mesmo depois da França prender, logo em seguida, o humorista Dieudonné, acusado de críticas ao judaísmo (8).
É evidente que o ataque não se justifica; a "Charlie Hebdo" não "teve o que mereceu". Foi um crime bárbaro que ajudará na escalada xenófoba e islamofóbica. Sobre a própria autoria, aliás, haverá sempre dúvida. Mesmo que o wahhabismo tenha assumido o atentado (9), desde o início o crime levantou suspeitas de provocação por parte da direita europeia, interessada, justamente, na escalada xenófoba e islamofóbica. Como quer que seja. Não se pode, à luz de todas as contradições apontadas, "ser Charlie". Sejamos antes o pequeno imigrante de pele morena e língua árabe que lava as latrinas dos europeus por um salário de fome.
Notas:
(1) Evitarei aqui esquerda "revolucionária", "marxista", "revisionista", "isso ou aquilo" etc.; sutilezas semânticas não comportariam um assunto complexo como este.
(2) Contudo, a piada e deboche com base em preferências artísticas não raro escondem um preconceito maior, de fundo; vide por exemplo a tachação da cultura funkeira como inferior, o que denota em verdade o preconceito contra a cultura de periferia, ou, no passado, a perseguição sofrida pelo chorinho (que, se me permitem registrar, é muito melhor que o funk).
(3) Karl Marx, "Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel".
(4) Aqui, para quem ainda não viu:
http://bit.ly/1wVkE27. "Ménage à trois com membros da Trindade", vejam só como ficou redundante.
(6) Slavoj Zizek, "Violência".
(7) As polianas e os canalhas em geral esquecem, no caso das primeiras, ou fingem esquecer, no dos segundos, a advertência de Lênin em "Que fazer": "A liberdade é uma grande palavra, mas foi sob a bandeira da liberdade da indústria que foram empreendidas as piores guerras de pilhagem, foi sob a bandeira da liberdade do trabalho, que os trabalhadores foram espoliados. A expressão 'liberdade de crítica', tal como se emprega hoje, encerra a mesma falsidade".