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Carlos Serrano Ferreira

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Em coluna

“Je ne suis pas Charlie” e o esquerdismo

Carlos Serrano Ferreira - Publicado: Domingo, 11 Janeiro 2015 21:58

O esquerdismo tem uma forma peculiar de enxergar o mundo, que é diferente da forma como enxergam os revolucionários e como enxergam os trabalhadores e oprimidos.


Um esquerdista vê "princípios", onde não estão em questão princípios, como forma de justificar seu "princípio" maior: como se afastar das massas e permanecer "puro". O esquerdista foge da contradição como o diabo foge da cruz. Mas, como ensina o marxismo – não a caricatura feita dele, mas o marxismo de Marx – a vida é contradição, as massas são contraditórias, tudo é contraditório. Até a evolução é contraditória, e de muito senso de humor, lembrem-se do ornitorrinco. O esquerdista foge da vida, foge da massa, foge do mundo, para o conforto de sua micro-organização, de seu mundo perfeito e utópico. Reclama que as massas não fazem nada, mas quando elas fazem reclamam por elas o fazerem.

O revolucionário não. O revolucionário vive a contradição. O revolucionário navega em suas águas, pois é nessa vivência que encontra as massas. Como revolucionário de facto, e não de palavrório, sabe que não há revolução sem as massas, sem essa multidão de trabalhadores e oprimidos. O esquerdista não. Ele faz saudações à bandeira, diz amar as massas, mas de facto a detesta. Ele gosta dos "iluminados", iluminados sem luzes, e seu fogo fátuo não ilumina ninguém, a não ser a si mesmo e a meia dúzia que vive como mariposas à procura da luz, e que quando não as encontra foge. Pois, é fogo que não aquece.

A diferença entre o esquerdista e o revolucionário é ontológica – não da abstrata, mas a de classe. O esquerdista é um pequeno-burguês – seja de origem social, seja de consciência. Ele sempre está certo, ele sempre tem opinião sobre tudo – ele "tem" que ter sempre opinião sobre tudo – e a opinião das massas não valem para nada. O esquerdista é incapaz de tocar a consciência das massas, de remexê-la, de revolvê-la e retirar do meio do estrume que a burguesia, seus mestres, generais e líderes religiosos lhe depositam, e buscar a sabedoria que está lá contida como uma pedra preciosa. O revolucionário faz esse "trabalho sujo". Ele chafurda à procura da pedra bruta, ele a lapida junto com a massa, e a mantêm com essa massa, que cada vez menos deixa de ser a privada das concepções do velho mundo e passa a ser a depositária de belíssimas pedras preciosas de um mundo novo.

Em momentos de grande comoção. Naqueles momentos onde as massas se põem a caminhar, se revoltam, choram e lutam, é que a diferença entre esse ser mesquinho esquerdista e o verdadeiro construtor do novo mundo, o amante das contradições e da vida, o revolucionário, fica claro. Na última semana esta diferença floresceu. O esquerdista floresceu em seus cactos espinhosos e os revolucionários em frondosas árvores que alcançam os céus. A diferença entre as duas se expressam na esquerdista "Je ne suis pas Charlie" e na revolucionária "Je suis pas Charlie".

Quando o horror se abateu sobre o Charlie Hebdo a consternação foi imediata. As massas oprimidas do mundo se identificaram com suas vítimas. Manifestações ocorreram de imediato. Pude participar pessoalmente da que ocorreu na sexta-feira passada na Praça dos Restauradores em Lisboa. Congraçados portugueses, franceses, italianos, brasileiros, trabalhadores e jovens. Fizemos uma manifestação em separado da Câmara Municipal. Aquela foi a manifestação dos hipócritas, das lágrimas dos crocodilos. A nossa foi a manifestação dos que de facto se identificavam, dos que sentiam que o que foi atingido foi a si mesmo.

O esquerdista diria: "Pois, mas quantos não foram mortos Iêmen? Na Nigéria?". E, o revolucionário diria: "O terror obscurantista do islamismo fundamentalista – como do fundamentalista cristão de direita Brevik que assassinou 70 jovens socialistas na Noruega – atinge o mundo inteiro. É preciso denunciá-lo, é preciso repudiá-lo. Vamos conversar com as massas sobre isso, denunciar a imprensa burguesa que só denuncia quando atinge seus semelhantes, quando quer usar um facto para seus interesses, quando não precisa denunciar o imperialismo. As vítimas no Charlie Hebdo são vítimas para nós como são as do Iêmen ou da Nigéria, ou os palestinianos. Nós a choramos da mesma maneira. O que você propõe esquerdista: dizer às massas que não chorem seus mortos, pois não souberam dos seus outros mortos, porquê não choraram os outros?".

O papel da agitação revolucionária é canalizar os sentimentos das massas oprimidas contra seus inimigos reais. O esquerdista não sabe nada de agitação então. O esquerdista quer dar lições filosóficas. Por isso, o esquerdista diria: "Je ne suis pas Charlie pois eu defendo a liberdade religiosa". Curiosamente, o esquerdista só se lembra da liberdade religiosa quando é para se contrapor às massas. Pois, o esquerdista acha que agitação revolucionária e proselitismo ateu são a mesma coisa, e vive a encher sua 'timeline' do facebook – grande espaço de atuação do esquerdista – com humor antirreligião. O revolucionário diria: "Ora, meu amigo esquerdista, nós defendemos a liberdade religiosa. Defendemos o direito de todos terem sua religião. Denunciamos, por exemplo, a perseguição contra as minorias religiosas no mundo e defendemos o Estado laico – única garantia de liberdade religiosa, defendemos separação entre Estado e Religiões. Essa é a nossa defesa. Mas, a liberdade religiosa não é impedida pela liberdade de expressão. Todos podem falar sobre religião, contanto que não persigam os cultos, não matem fiéis de outra religião, e que o Estado nem persiga – nem estimule – uma das religiões."

O esquerdista então diz: "Eu não sou Charlie, pois eles eram islamofóbicos". Um dos problemas metodológicos do esquerdista – que é pior quando se diz internacionalista – é que enquanto um "sábio perfeito", um "timoneiro das massas sem massas", ele tem que emitir opinião sobre tudo, e sobre todos os países, mas não existe em todos os lugares. E, ele ainda tem outro problema gravíssimo: uma desconfiança patológica de tudo que é diferente de si mesmo – quando trabalhadores, óbvio. Como ele resolve o problema? Ele escuta o que tem a dizer as pessoas ou organizações do local? Não. Ele prefere acreditar no que lhe dizem os jornais da grande imprensa burguesa – como se fossem fontes justas de informação, e não mecanismos de distorção de classe, mecanismos de desinformação popular. Por isso, se o Times diz que os separatistas do Leste da Ucrânia são pró-russos, ele irá dizer – claro, acrescentando alguns jargões de esquerda para disfarçar sua incapacidade de elaboração e parecer que conhece o problema – "os separatistas do Leste são pró-russos fascistas ao serviço do imperialismo russo". Nunca lhes ocorre procurar saber o que as organizações que existem lá, como o PCU ou o Borotba tem a dizer – e estas dizem que do lado ocidental, onde o esquerdista vê revolução, está a contrarrevolução que persegue e mata a esquerda – e no Leste, a maioria esmagadora do movimento é composta por operários antifascistas e lutadores socialistas. A mesma coisa com Charlie Hebdo: prefere aceitar que eles eram preconceituosos, aceitando as charges que lhes apresentam, selecionadas em tema e retiradas do contexto – do que escutar as massas que estão lá, ou as organizações que vivem no local, que dizem que esta era uma cooperativa que não aceitava dinheiro do Estado e de empresas para manter sua independência, que criticava todos os fundamentalistas, inclusive a extrema direita, como a social-democracia, a partir de uma óptica de esquerda. O esquerdista ajuda a matar novamente o Charlie Hebdo, pois mata a sua memória e seu significado. Nessas horas, nossos inimigos tem sempre mais clareza dos factos que os esquerdistas. O velho fascista Le Pen da Frente Nacional também disse que não é Charlie, pois ele não brigará para "defender o espírito da Charlie, que é um espírito anarco-trotskista". Mais claro impossível. Não são mais palavras necessárias neste ponto.

O esquerdista então diz: "Eu não vou me misturar nessas manifestações. Elas são contra os islâmicos e é uma hipocrisia que chefes de Estado que são contra a liberdade de expressão e assassinos estejam lá. Se eles estão lá, eu não vou.". Agora o esquerdista lembrou-se da liberdade de expressão... Mas, lembrou de algo correto: da hipocrisia dos governantes burgueses que choram lágrimas de crocodilo e tem as mãos manchadas de sangue. Mas, como sempre, nosso amigo esquerdista não é capaz de lidar com a contradição, nem conversar com as massas, ao contrário do revolucionário: "Meu caro amigo esquerdista – desta vez com um tom mais impaciente, pois o revolucionário antes de tudo é humano – essas manifestações não são anti-islâmicas. A própria comunidade islâmica se incorporou nelas. Todas as tentativas que foram feitas de virá-las contra os islâmicos foram refutadas. As massas rejeitaram a participação da Frente Nacional nas manifestações. O caráter que elas tem imprimido às manifestações é de manifestações pela paz, contra o terrorismo, não por vingança, nem preconceito. Deverias ter escutado o operário que em Berlim, com as lágrimas nos olhos, dizia que aquela era uma manifestação contra a violência, pela liberdade, e que estava lá também para impedir que aquilo fosse manipulado pelos inimigos dela, pelos racistas, e mostrou um cartaz contra a islamofobia. Ou, nessa mesma marcha, a senhora dizendo "Esta é minha cidade, não vou as deixar para os nazistas e xenófobos".".

E, o esquerdista lembra: "Ah, mas você não respondeu sobre a presença dos chefes de Estado! Você estará lado a lado com eles, dizendo que é Charlie?". De pronto o revolucionário responde: "Não, esquerdista, não estarei ao lado de Hollande, de Obama ou de Rajoy. Estarei ao lado das massas. Inclusive, pois só estando ao seu lado eu poderei denunciar como Hollande é do Partido Socialista Francês que tinha na Internacional o ditador Ben Ali da Tunísia; que o império americano mata milhares todos os dias no mundo e é o maior inimigo da paz, e que mantêm na prisão pessoas que defenderam a liberdade pessoal e de imprensa contra o patrulhamento da NSA, como o Snowden; ou que Rajoy não pode defender a liberdade de expressão, pois acabou de aprovar a lei da Mordaça para coibir a liberdade de manifestação e de imprensa. Não estive na manifestação do Costa em Lisboa, pois lá não estavam as massas. Mas, estarei hoje em Paris. Se eu estou longe das massas e digo de forma prepotente que a defesa delas da liberdade de expressão é errada, que eu não sou Charlie, que eu não sou elas, eu as deixo nas mãos dos hipócritas Rajoy ou dos assassinos Netanyahu. Também estarei lá para denunciar a hipocrisia que é a liberdade de expressão no capitalismo, que os jornais recusavam publicar as charges mais de esquerda e críticas dos chargistas do Charlie Hebdo. Denunciar que enquanto os meios de comunicação estiverem nas mãos dos grandes meios conglomerados econômicos não haverá de verdade a liberdade de expressão. E, que não se combate os erros e exageros da liberdade de expressão com censura, mas com a máxima liberdade de crítica, e isso só democratizando os meios de comunicação, tirando das mãos da classe dominante, colocando na mão do povo. Que a verdade deve florescer da contradição – essa que você teme, esquerdista."

Por fim, o esquerdista apela para seu último argumento – que nem todos os esquerdistas o fazem, apenas os mais esquerdistas: "Mas, se o atentado não se justifica, o terrorismo islâmico é a expressão do imperialismo. Eles estão colhendo o que semearam". É quase um: bem feito! O revolucionário consternado diz: "As vítimas do fundamentalismo islâmico não foram e não são os imperialistas que estão por trás da miséria e do saque que mantêm no Médio Oriente, na África ou na Ásia e na América Latina, apoiando e sustentando ditaduras cruéis e governos assassinos. As vítimas do Charlie Hebdo foram pessoas de esquerda que sempre denunciaram esse imperialismo e o fundamentalismo, seu filho bastardo. Como as vítimas na Nigéria ou no Iêmen, são vítimas diretas e indiretas do imperialismo, são trabalhadores e seus filhos, em particular mulheres, que mais sofrem. É preciso dizer que se é Charlie, pois também se é anti-imperialista. É preciso estar com as massas paras dizê-las que os seus governos são tão culpados pelo atentado como os que apertaram os gatilhos. Que os talibãs e os mercenários sírios foram treinados, armados e financiados pelos EUA. Que se agora o fundamentalismo islâmico se volta contra o Ocidente, é como o filho rebelde que se volta contra quem o criou, e que as suas vítimas não serão os Bushs ou Reagans, mas serão o Zé Povinho, os pobres e trabalhadores do mundo. Temos que estar junto dos trabalhadores europeus para dizer que só haverá paz na Europa quando eles se libertarem de seus governos imperialistas e ajudarem a libertar os povos do Terceiro Mundo da miséria que cria o campo para os fundamentalismos. Que fundamentalismo islâmico é o irmão gêmeo do fascismo europeu, e que os dois são filhos malcriados do imperialismo e do capitalismo. E, que contra essa família de monstros só há uma saída: a união de todos os trabalhadores e oprimidos, sejam brancos ou negros, árabes ou orientais, católicos, protestantes, islâmicos, judeus e de todas as religiões, unidos pelo socialismo."

O esquerdista se cala. Pensa. E, vocifera para o revolucionário: "Você é um oportunista. Eu não sou Charlie", vira-se e vai embora. Não tem jeito. O esquerdista sempre dará às costas aos revolucionários e às massas.


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