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Juliano Medeiros

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Charlie Hebdo e a força das palavras

Juliano Medeiros - Publicado: Sexta, 09 Janeiro 2015 00:23

O que há em comum entre Charlie Hebdo e Veja? A pergunta, claro, é apenas uma provocação. A história das duas publicações, sua relação com os problemas de cada país e suas opções editoriais não poderiam, em tese, dar margem para um questionamento dessa natureza.


 Por se tratar de uma revista satírica, Charlie Hebdo seria muito melhor comparada com o clássico O Pasquim, editado entre 1969 e 1991, e que teve o humor como arma contra o autoritarismo. De lá saíram ícones do jornalismo satírico, como Henfil, Ziraldo e Millôr. Da mesma forma, apesar das controvérsias envolvendo a linha editorial do semanário francês, Charlie Hebdo não pode ser considera uma publicação conservadora, muito diferente do carro-chefe da Editora Abril, hoje porta-voz das posições mais conservadoras presentes na sociedade brasileira.
 
O que, então, permitiria comparar Charlie Hebdo à famigerada revista da família Civita? A resposta está menos nas publicações em si, mas no efeito que produzem em quem as lê.
 
A revista Veja surgiu em 1968. Como a maioria das publicações da época, foi alvo do controle por parte do Governo Militar durante vários anos. Em fevereiro de 1974, ao desrespeitar a censura e publicar matéria alusiva à indicação de Dom Hélder Câmara ao prêmio Nobel da Paz, Veja passou a ser alvo da perseguição sistemática do regime. Nos dois anos em que VEJA esteve sob tutela, foram vetadas mais de 10 mil linhas, 44 fotos e vinte ilustrações. Isso, evidentemente, aumentou a “combatividade” do jornalismo de Veja, que se tornou uma referência editorial na defesa da democracia.
 
Charlie Hebdo surgiu na mesma época de Veja. O grupo original que criou a revista tinha suas origens no movimento político-cultural de 1968 e, por décadas, vinculou-se abertamente às causas progressistas na França. Nos últimos anos, sob a direção de Stéphane Charbonnier, o semanário investiu pesado contra o islamismo. Isso lhe rendeu severas críticas à esquerda e à direita, centenas de ameaças, além de um atentado à sede do jornal, em novembro de 2011, após a publicação de uma charge satírica contra o profeta Maomé.
 
Quase meio século depois de seu surgimento, Veja tornou-se a representação do que há de pior no jornalismo, estimulando o ódio, a intolerância, o preconceito e as mais retrógradas visões de mundo. Seus ataques à esquerda e suas propostas, porém, seguem tendo ampla repercussão entre seus leitores, a maioria deles vinculada a uma classe média que, no processo de redemocratização dos anos 80, engrossava as fileiras progressistas e democráticas. Veja e a classe média no Brasil tornaram-se mais conservadoras com o passar do tempo. Hoje a revista dos Civita tornou-se um poderoso instrumento contra os avanços democráticos de que necessita o país, incitando abertamente o preconceito contra pobres, nordestinos, negros, índios, sem-terra e a esquerda em geral.
 
Charlie Hebdo, por sua vez, não se converteu numa revista conservadora. Mas ao escolher como inimigas centrais as religiões, fez uma aposta arriscada. E não me refiro ao risco de uma tragédia como a que vitimou 12 de seus colaboradores, mas ao risco de ver seu anticlericalismo usado pelo extrema-direita contra árabes ou praticantes da fé islâmica em geral. Evidentemente, o fato de Charlie Hebdo não ser uma publicação comprometida com posições reacionárias – muito pelo contrário! – é uma grande diferença em relação a Veja. Mas assim como o semanário dos Civita, a proposta editorial degradante de Charlie Hebdo em relação ao Islã foi largamente utilizada para estimular o preconceito e a intolerância. A questão a se pensar, portanto, é a que causas a revista francesa estava, objetivamente, servindo.  
 
Devemos lembrar que, diferente do Brasil, a França tornou-se o epicentro da problemática envolvendo a massiva imigração árabe na Europa. As políticas implementadas pelos governos conservadores de Jacques Chirac e Nicolas Sarkozy contra essas comunidades – cujo principal ilustração é a proibição do uso do véu islâmico nas escolas públicas francesas – foram objeto da crítica e do repúdio de todos os democratas do mundo. A extrema-direita, profundamente xenofóbica, alimenta-se do anti-islamismo de publicações como Charlie Hebdo para crescer entre os setores médios que repudiam a esquerda. Ao mesmo tempo, o fundamentalismo islâmico arregimenta seguidores em sua cruzada contra os infiéis aproveitando-se das manifestações de intolerância, recorrentes na França. E, embora inimiga do fascismo e do fundamentalismo, a revista parecia não levar isso em conta ao desferir seus ataques contra a fé islâmica. O atentado, portanto, é uma vitória do fundamentalismo, mas também da extrema-direita francesa, inimigos declarados de Charlie Hebdo.
 
Não são irrelevantes os sentimentos que as publicações de Veja ou Charlie Hebdo produzem. Deliberadamente ou não, elas alimentam forças e valores imprevisíveis. Isso, é claro, não pode servir de justificativa para atos como os que vitimaram jornalistas e outros franceses na manhã deste 7 de janeiro, muito menos como estímulo para que sejam perpetradas ações violentas contra o semanário brasileiro. Mas deve contribuir para que a solidariedade com as vítimas do atentado e nossa defesa da liberdade de imprensa não obstruam nossa capacidade de criticar aquilo que, para os que buscam construir uma sociedade fundada nos valores da solidariedade e da compreensão do outro, se converte em obstáculo. 

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