Para o povo chinês, em primeiro lugar. Para os povos de todo o mundo também, porque desapareceria uma força cujos interesses actuais são incompatíveis com os dos EUA. E o imperialismo estado-unidense permanece o grande inimigo da humanidade.
Desmontar «peça a peça essa mentira desavergonhada, mostrar à China, que se mascara com coqueteria de marxismo, de socialismo e comunismo, o seu verdadeiro rosto de Górgona estatista e capitalista, e isso desde o início» - é o objetivo de um livro que está a gerar compreensível polémica em França.
Ao contrário do que se poderia crer por essa afirmação, a autora, Mylène Gaulart não é anticomunista.
Assumindo-se pelo contrário como marxista é nessa condição, recorrendo ao pensamento, ao método e à obra de Marx que essa jovem francesa, professora da Universidade de Grenoble, afirma que «a direção do país (a China) pelo partido comunista nunca empreendeu, na verdade, uma rutura com o modo de produção capitalista».
As ideias defendidas no doutoramento foram posteriormente retomadas e desenvolvidas num livro que tem sido tema de interessantes debates [1]. «É inegável que um país no qual o assalariamento continua em vigor, separando os trabalhadores e os seus meios de produção - escreve - e no qual se encoraja um processo de produção baseado nesse assalariamento e no fosso crescente entre o valor gerado pelo trabalho e a remuneração deste, um tal país somente pode ser analisado como capitalista».
Enumerando o conjunto das categorias específicas do capitalismo, Mylène afirma que se impõe uma conclusão: «a China é plenamente capitalista».
Refletindo sobre os diferentes modos de produção desde o asiático e o romano ao feudal e ao instaurado pela revolução industrial, a autora nega categoricamente «o carácter comunista da revolução de 1949». Segundo ela, «as elites políticas dos PCC situam-se, num país onde a grande maioria da população é rural, mais no acompanhamento da lógica da burguesia ascendente do que numa oposição frontal a esta».
No desenvolvimento da sua tese sublinha que «a adesão massiva dos funcionários do Kuomitang ao Partido garantiu o controlo de um aparelho de estado já fortemente burocrático». E lembra que a quase totalidade dos militares de Chiang Kai-Shek, incluindo generais, aderiu ao novo Estado.
Segundo «a interpretação do governo chinês - afirma Mylène - a bandeira da Republica Popular da China é, aliás, identificada por um fundo vermelho que simboliza a revolução e cinco estrelas amarelas que representam a união do Partido Comunista com as quatro classes sociais do país, os trabalhadores proletários, os camponeses, a pequena burguesia (comerciantes) e os capitalistas patriotas».
O próprio Leu Shaoqui, logo após a vitória da revolução, criticou «os camaradas que, a arrepio do bom senso, querem atacar a burguesia» e condenou «os instintos destruidores de um proletariado de hooligans».
Grande parte do livro é dedicada ao estudo da atual estrutura de classes na China, nomeadamente à nova classe média, ao papel do Estado e do Partido Comunista, e a temas económicos.
Na opinião da autora, «o desenvolvimento da burguesia chinesa tinha já tinha sido tão encorajado pelo Estado que este último podia retirar-¬se progressivamente da esfera da produção, para ceder o lugar a essa nova classe dominante».
Recorrendo amplamente a estatísticas oficiais, informa que a participação do Estado no PIB, que era de 31,2% em l978 caiu para 18% em 2012.
Sublinhando que, apesar da redução da pobreza ter diminuído, a desigualdade social aumenta em vez de decrescer, alerta para o fato de a maioria dos bens de consumo duráveis serem somente acessíveis a 100 milhões de pessoas, numa população total de 1 bilhão e 300 milhões.
Os salários aumentaram mais do que a produtividade nos últimos quinze anos, mas as elevadas taxas de crescimento da economia que guindaram o país a primeiro exportador mundial somente são possíveis porque o custo da mão-de-obra é ainda baixíssimo, comparativamente aos EUA e aos países da União Europeia.
Citando Marx, Lenin e Rosa Luxemburgo a propósito das consequências dos fenómenos de superprodução, reflete sobre os êxitos da indústria chinesa e as suas fragilidades.
A China, salienta, é responsável atualmente por 85% da produção mundial de tratores, de 75% dos relógios, de 70 % dos brinquedos, de 55% das camaras fotográficas, mas a produtividade está em declínio apesar do enorme aumento da taxa de investimento (48% do PIB em 2012). A participação das empresas estatais na produção industrial que atingia 80% em 1979 não ultrapassava 35% em 2012. Somente os EUA têm hoje mais bilionários, alguns membros do Comité Central do Partido.
Um capítulo inteiro é dedicado à baixa da taxa de lucro e à inquietante bolha imobiliária.
Mylène, ao analisar esses fenómenos, conclui que as causas das crises cíclicas do capitalismo são já identificáveis na China cujos fundos de investimento figuram entre os mais importantes do mundo.
Graças aos seus colossais excedentes comerciais, a China possui as maiores reservas cambiais do mundo, avaliadas em 3.240 mil milhões de dólares, grande parte em títulos do Tesouro dos EUA. Tamanha acumulação de capital é perigosa se permanecer entesourada. Dai os recentes e gigantescos investimentos chineses em África, na América Latina, no Sudeste Asiático, na Europa e nos EUA.
Essa pujança financeira não oculta, na opinião de Mylène, as debilidades de uma economia ameaçada por atividades especulativas, pela corrupção e pelo crescimento desmesurado do setor imobiliário.
Desde a «tomada do Poder pelo Partido Comunista – enfatiza - o aparelho produtivo chinês caracteriza-se pela sua forte intensidade capitalística, cavando um fosso cada vez maior entre os sectores mais modernos da economia e os mais tradicionais (...). A economia chinesa depende alem disso de maneira dramaticamente crescente dos seus mercados exteriores e não de uma demanda interior que contínua insuficiente, e isso torna-a muito sensível às flutuações económicas internacionais»
A autora encara o futuro do país a medio prazo sem otimismo.
Vê a China cada vez mais integrada no sistema global do capitalismo onde «nada ocorre por acaso e menos ainda pela livre vontade dos indivíduos ou dos Estados. É convicção sua que a crise atual somente pode desembocar num aprofundamento nocivo e nefasto, com a perspetiva de um encadeamento de ciclos mundiais de crises económicas e de guerras cada vez mais destruidoras, as únicas capazes de regenerar o capitalismo (...)»
A conclusão do livro é ingénua, quase romântica. Perante o horizonte sombrio que esboça, Mylène enxerga a saída num «movimento que um dia conduziria à instauração da verdadeira comunidade humana (...)»
Não emito uma opinião sobre a tese central de Mylène Gaulart. Limito-me a chamar a atenção para o seu livro polémico.
Não tive a oportunidade de visitar a China. Acompanho de longe, com absorvente interesse, as suas transformações e o seu rumo, marcado por guinadas imprevisíveis.
Como comunista, identifico no socialismo científico, criado por Marx e Engels, a alternativa para o capitalismo, o sistema que conduz à barbárie.
Não vejo futuro para o chamado socialismo de mercado.
O livro de Mylène Gaulart trouxe-me à memória a teoria da «lógica difusa» concebida por Loffy Zadek (nascido cidadão soviético em Baku em 1921) hoje amplamente utilizada no desenho de toda a aparelhagem e sistemas. A realidade difere da visão que dela tinha Aristóteles. Para Zadek a realidade é difusa e dialéctica, e quer máquinas quer sistemas funcionam como o mundo, são parte dele à semelhança da natureza e de nós mesmos.
Como lembra o meu amigo e camarada Rui Rosa, a lógica difusa apresenta pontos de contacto com o materialismo dialéctico e o budismo. Essa proximidade, creio, estará presente na brumosa tese de Mylène Gaulart.
A China aparece-me como o país do imprevisível. Evito criticá-la porque os seus interesses nacionais, independentemente da ideologia, são incompatíveis com os dos EUA. A confrontação entre Washington e Pequim é inevitável. E para mim o imperialismo estado-unidense é o grande inimigo da humanidade.
Nota:
[1] Mylène Gaulart, Karl Marx à Pekin- Les Racines de la Crise en Chine Capitaliste, Editions Demopolis, 260 paginas, Paris, 2014.
Fonte: O Diário.