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Joycemar Tejo

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Elogio da dialética

Sobre meu rompimento com o PCB

Joycemar Tejo - Publicado: Sábado, 13 Dezembro 2014 09:12

Eu me desliguei do PCB em outubro deste ano, em meio às discussões sobre a posição correta para o segundo turno presidencial de 2014. Como o motivo explicitado foi a discordância com a linha tirada pelo CC do Partido, alguns camaradas, na época -inclusive de dentro da organização-, comentaram comigo que "não havia necessidade" de sair por isso, como se a questão fosse estritamente eleitoral. Mas o tópico eleitoral foi apenas o estopim de uma escolha que eu já vinha amadurecendo. Em respeito a essas pessoas, gostaria de voltar ao assunto.


O motivo público, como dito, foi a questão do voto nulo. Falei a respeito em minha nota no Facebook e me reporto a ela [artigo postado também no Diário Liberdade: aqui]. Entendo que é questão vital -no sentido mais literal do termo- para uma organização revolucionária ter noção de tempo, de momento, de oportunidade. O PCB falhou fragorosamente nisso. Nos segundos turnos de 2006 e 2010 capitulou à cantilena do voto crítico, isso quando o PT tinha larga vantagem e a oposição de direita se mostrava tímida. Já no momento atual, quando a esquerda tem sido agredida fisicamente nas ruas, como no infame 20 de junho de 2013, quando sem o menor pudor a grande mídia -de Merval n'"O Globo" à Veja- fala em impeachment, quando PT e PSDB disputam uma eleição na margem de erro... O PCB, de forma "purista", reconhece que o PT não é assim diferente do PSDB e o voto nulo se justifica. Isto é, toda a retórica dos anos anteriores que embasou o voto crítico no passado, deixou de valer na conjuntura atual, quando o PT se mostra, na conjuntura, como a opção efetivamente menos pior (e é duro aceitar isso), e o PCB, então, "acorda" para o fato de que os dois são iguais e que é preciso votar nulo.
 
Esse despertar não poderia ter vindo em pior hora. E podemos interpretá-lo sob dois ângulos. O mais óbvio seria a miopia partidária; a falta da devida percepção da realidade, querendo, de forma inoportuna, "correr atrás do prejuízo" e, dando tapinhas no próprio ombro, poder se olhar no espelho e se enxergar como um autêntico revolucionário. Seria um erro honesto, um erro, mas honesto. Não se está a imune a isso. Já o outro ângulo é um pouco mais sombrio. Seria o partido voluntariamente optar por essa tática, no afã de buscar inserção junto aos setores da vanguarda (pois isso tudo diz respeito à vanguarda, a massa trabalhadora nada tem a ver com isso) que adotam o voto nulo por princípio e que têm chamado a atenção com sua postura mais "combativa" aos olhos da mídia, como a FIP. Sombrio, porque escancaria de vez o total descolamento (e não apenas falta de percepção) da realidade e aguetização do Partido, e, também aqui, uma miopia suicida- porque, ironia das ironias, tais setores são hostis ao PCB e a qualquer agremiação que possua registro partidário.
 
Quando falo em miopia partidária, é preciso deixar claro: é miopia do Comitê Central do Partido, porque é dele que baixam as decisões. Mas não basta essa miopia; além de tudo, é descida imperativamente, sem mediações, para o cumprimento acrítico por parte das bases. E há fiscalização severa sobre eventuais recalcitrantes, e voltaremos a isso. Não adianta aqui falar que é tudo democrático e que as bases podem se manifestar, se sabemos que as posições das bases, quando conseguem subir, são apenas de caráter opinativo ou, quando muito, consultivo. Aliás, que o debate, apesar de ser (a princípio) estimulado, nem sempre é considerado, fica patente nas etapas congressuais. Salta-me à lembrança por exemplo a discussão em torno da natureza da República Popular da China no XIV Congresso de 2009, que, apesar de profícua, rica e complexa, deixando claro que há camaradas com posições radicalmente distintas sobre o caráter da experiência chinesa, não foi considerada para alterar uma vírgula sequer do projeto de resolução inicial. Ou seja: o plenário pode discutir à vontade, mas muito já está definido de antemão.
 
Esse autoritarismo apareceu para mim de maneira muito clara no segundo turno de 2014. Ao expor minha intenção de me afastar do Partido para defender o voto crítico, me foi dito que, se eu quisesse (sic) continuar no Partido, deveria aceitar (sic) a posição do Comitê Central e não manifestar minha posição pessoal sobre o segundo turno.
 
Preferi sair, mantendo minha convicção.
 
Antes que evoquem Lênin, deixemos claro: isso não é Lênin, Lênin das "Teses de Abril" publicadas sem consenso partidário; é sua versão degenerada. Centralismo burocrático, não democrático.
 
Mas houve outro motivo que pesou na minha decisão, esse que vinha sendo maturado.
 
Trata-se da existência, em minha opinião, de um verdadeiro monolitismo ideológico, no pior sentido do termo, no interior do partido.
 
O Partido, desde seu processo de reconstrução, vive a "expectativa sempre renovada de superação do pesado fardo" -nas palavras de outro camarada em sua carta aberta de rompimento com o mesmo PCB, em 2011- que carrega, assim como os PC's do mundo. Desta forma, tentando superar o dogmatismo do passado, tem se mostrado mais aberto, mais receptivo, às diversas correntes da tradição marxista, para que possa servir de pólo aglutinador das esquerdas. É assim que se apresenta em seus documentos oficiais; contudo, parece ser apenas outra "boa intenção" de pouca repercussão prática. É uma pluralidade mais em tese do que concreta.
 
O trato com a questão trotskysta é o maior dos sintomas. Veja-se por exemplo a ausência de Trotsky nos órgãos -páginas virtuais e publicações impressas- do Partido. Se não é garantida a tribuna às diversas opções teóricas no campo do marxismo, o que há é um simulacro de diversidade. Este, aliás, é o pior tipo de mistificação: prometer algo em palavras e negá-lo em atos. Causou frisson na Comissão Política Regional, por exemplo, a tentativa de utilização de frase de Trotsky em material da campanha de 2014 ao governo do Estado; o medo que os burocratas soviéticos dos anos 30 possuíam ressuscitado hoje em 2014, em um partido que se pretende da reconstrução revolucionária. O escamoteamento de Trotsky é tal que mesmo teses nitidamente trotskyanas -reivindicações transitórias, revolução permanente- aparecem inclusive em resoluções congressuais (sem esses nomes, evidentemente) sem que, sequer tangencialmente, o debate venha à baila. Daí nasce a curiosa situação: o Partido é aberto também a trotskystas, sem que Trotsky possa ser debatido. Não me refiro às iniciativas de militantes isolados, dentre os quais me incluo, de citar Trotsky e trazê-lo para discussão, conforme haja possibilidade; falo da política oficial do Partido, a partir de seus órgãos dirigentes. É uma censura dissimulada.
 
Ao longo da minha militância observei vários casos se acumularem nesse sentido. Em outro exemplo, a nota "Por uma Frente Anti-Imperialista Mundial", de abril de 2010, assinada pela Comissão Política Nacional do PCB, diz em seu item -ironicamente- nº 4 que um dos motivos do Partido não encampar a Quinta Internacional chavista é não reconhecer a Quarta, verbis:
 
Além disso, quando falamos em V Internacional estamos levando em conta a chamada IV Internacional, que foi, na prática, uma articulação de grupos trotskistas, com pouca influência social e política, que terminaram dividindo-a em vários pequenos grupamentos, cada um reivindicando-se o seu legítimo herdeiro, alguns até os dias de hoje.
 
Ou ainda, quando, ao se elaborar a ementa de um curso de formação pelo PCB-RJ em 2013, com a trajetória do Partido desde sua fundação, o nascimento da Oposição brasileira sequer ser citado (e isso no tópico "polêmicas e dissidências comunistas"!), como se simplesmente a discussão dos anos 20-30 não tivesse existido. Nem uma mísera menção nas agendas publicadas anualmente pela Fundação Dinarco Reis (do PCB), que registram datas de personalidades díspares de Blanqui a Lumumba, que eu saiba, Lev Davidovitch mereceu. Não existiu, não foi protagonista da Revolução Russa, não foi fundador do Exército Vermelho. Ora, apagar a história é o que o stalinismo soube fazer de melhor. Além de tudo isso, inúmeros outros episódios informais e burlescos, como no dia, no final de dezembro de 2010, em que ouvi em uma mesa de bar que "caçariam trotskysta dentro do Partido" -bravata que prontamente enfrentei, é claro-, que, mesmo em espírito de troça, reflete uma animosidade que não deve(ria) existir entre camaradas.
 
Esse antitrotskysmo nunca deixou de permear o Partido, desde os já aludidos anos 30. Jamais deixou de seguir a linha oficial, stalinista, quando o caso, kruschevista (que é o stalinismo de direita), então, sempre a reboque de Moscou. Há que reputar como meritosa essa lealdade; o que não quer dizer que tal lealdade seja correta, pelo simples motivo de que o que deve pautar os comunistas é a classe trabalhadora mundial, e não o partido que se diz representante da classe. Como quer que seja, mesmo que hoje, no suposto processo de autocrítica, o Partido critique em seus documentos congressuais o "marxismo de manual" dos velhos tempos, essa autocrítica não se realiza na prática.
 
Deixo claro que apesar disso nunca sofri, ao menos não que eu tenha percebido, perseguições dentro do Partido por minha opção trotskysta. Ao contrário, desde janeiro de 2006, quando me filiei, expus abertamente minha posição, e isso não impediu meu ingresso no Partido e, posteriormente, minha ascensão à Comissão Política Regional. Mas eu estaria contrariando os meus referenciais históricos e teóricos, se continuasse em uma organização que tolera, mas que não apenas não reconhece como sequer dá espaço a tais referenciais.
 
Creio que não posso ser tachado de sectário por sair do partido por esse motivo. Muito pelo contrário, ter insistido por quase dez anos, apesar do clima dominante, é prova da minha boa vontade. Mas já basta: seria quixotesco de minha parte continuar.
 
Há um terceiro fato que motivou minha decisão, e este depoimento seria incompleto sem ele.
 
Meus filhos, Heitor e Glauco, nasceram no dia 21/ 03/ 14, e, por serem prematuros, foram imediatamente internados na UTI neonatal da maternidade, em Jacarepaguá. O Glauco, especialmente, necessitava de muitos cuidados, pelo seu quadro pulmonar. Como qualquer pai nessa situação, pedi imediata licença de minhas atividades de dirigente partidário, até que tivesse condições pessoais e familiares de retomar a militância.
 
Ao longo desses dias, dividido entre o trabalho e a vigília na UTI, fiz um rapidíssimo comentário no Facebook, a propósito de uma notícia sobre transporte público e a categoria dos rodoviários do Rio de Janeiro. O link está aqui, e qualquer pessoa com um mínimo de discernimento verá que se trata de um comentário ligeiro e informal, sem a menor pretensão de ser uma formulação política. Como costumava fazer, mesmo estando licenciado enviei o link da matéria, juntamente com meu comentário, por email à Comissão Política Regional (CPR), email este que foi respondido de forma genérica por dois dos membros da dita instância.
 
Dias depois, quando eu já havia até me esquecido do assunto -há muito soterrado por postagens mais recentes, na dinâmica ágil própria das redes sociais- recebo telefonema de membro da Comissão Política Regional dizendo que eu estava sumariamente excluído da direção, em razão do tal comentário, por decisão da CPR. Tal punição sumária -isto é, sem aviso prévio ou chance de defesa- causou repulsa não apenas no militante, mas no advogado que eu sou. E comuniquei que recorreria ao Pleno do Comitê Regional, na reunião que aconteceria no dia 05/ 04, contra essa decisão.
 
Pois bem: após um maçante "julgamento de Moscou" que tomou metade do sábado (e o comitê estadual de um partido gastar tanto tempo e energia por causa de três linhas no Facebook diz muito sobre crise de direção), onde pude me defender, a punição proposta pela Comissão Política Regional foi amplamente rejeitada pela maioria do Pleno, que reconheceu a desproporcionalidade do "castigo" e o erro de condução do processo. Apenas foi necessário que eu redigisse uma autocrítica, na verdade um pequeno comentário onde pude desenvolver minha posição sobre o assunto e da qual nenhum marxista sério discordaria (aqui).
 
Acabado o "julgamento", retornei imediatamente à UTI neonatal para prosseguir a vigília sobre meus filhos. O Glauco faleceu no domingo da semana seguinte.
 
Apesar de eu ter saído "vitorioso" do processo, sequer tendo perdido meu assento na Comissão Política, uma cicatriz ficou marcada. Afinal, pensei comigo, um coletivo partidário que urde uma punição sumária contra um camarada de quase uma década de convívio, em um momento dificílimo de sua vida (e que inclusive já se encontrava licenciado), não é exatamente um coletivo solidário. Mesmo que eu tenha recebido condolências -acredito- sinceras do conjunto da direção e que após o incidente a convivência partidária e social (e com certeza fiz amigos no Partido) tenha continuado por mais alguns meses, temas como companheirismo, generosidade, confiança e respeito vão sendo pensados e repensados. E não consigo conceber organização revolucionária que não seja dotada desses elementos. Se não é um clubinho de amigos, tampouco pode ser um ambiente de desconfiança onde, ao menor deslize, cabeças rolam. Já vi camaradas "caírem em desgraça", na melhor tradição stalinista. E sempre de forma seletiva, naturalmente; paciência monástica em uns casos, mão de ferro em outros.
 
Esse teria sido o motivo pessoal, ao lado dos motivos políticos, que levaram à minha escolha. Que fosse estritamente pessoal, já seria válido; os militantes somos seres humanos e a revolução não será feita por robôs. Mas mesmo esse fator pessoal carrega sua dimensão política.
 
No conhecido poema é dito que não basta que a causa seja justa, é necessário que a justiça esteja dentro de nós. "Camarada" não pode ser mera forma de tratamento, mero cacoete ao se expressar. Deve ser uma palavra viva, deve trazer em si a camaradagem propriamente dita. O PCB-RJ falhou nesse quesito, em minha opinião, ou comigo ao menos, em um dos momentos mais difíceis da minha vida. Principalmente a sua atual Comissão Política, com cujos membros eu me reunia quase semanalmente e, quase diariamente, falava ao telefone (criando no romântico a impressão de estar entre camaradas). Mas é de praxe o clima policialesco, a "sondagem" para se saber o que se "achou" de determinado comentário feito, às vezes inadvertidamente, por determinado camarada- para quem sabe já pensar no castigo aplicável.
 
reconstrução revolucionária não é um processo apenas objetivo, mas também subjetivo. Sem a superação de determinados padrões do passado, essa reconstrução é mero palavrório. Não pode hoje emular a mentalidade dos anos 30. Que o PCB, instituição que transcende a todos nós, em sua caminhada já quase centenária, possa efetivamente se reconstruir. Mas como está, não me parece de futuro promissor. Ao contrário, se amesquinha.
 
Dito isso, o PCB é doravante página virada. Mas eu estava devendo essa explicação aos camaradas.
 
Quanto a mim, de agora em diante minha militância será dedicada ao erguimento do Partido Mundial da Revolução Socialista, que, para mim, é a Quarta Internacional (a ser reconstruída após a degeneração pablista), conforme o Programa de Transição trotskyano.

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