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Alexandre Araújo Costa

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A Hidra Ilógica, bicho de 7 cabeças

Alexandre Araújo Costa - Publicado: Quinta, 27 Novembro 2014 00:00

A hidra é a famigerada criatura mitológica de muitas cabeças. Eram sete cabeças que podiam se regenerar, rezando a lenda que a hidra, de tão venenosa, era capaz de matar quem dela se aproximasse apenas pelo hálito.


A luta contra um ser terrível como esse, pronto a atacar por vários flancos, certamente não deveria ser fácil. E é por isso que a escolhi, para além da semelhança fonética, para representação da crise hídrica que assola não apenas o Brasil, mas várias partes do mundo. Neste texto, analisaremos como todas as cabeças da Hidra Ilógica convergem em um único fim: o risco de crises de abastecimento em nossas cidades é hoje muito maior, por uma conjunção de fatores climáticos, ambientais, sócio-econômicos e políticos.

 
O ponto principal é que não adianta tentar esconder esse bicho-de-sete-cabeças embaixo do tapete, ou detrás da cortina. A humanidade precisa ser capaz de mostrar um mínimo de capacidade de preservar o próprio acesso, em quantidade suficiente e qualidade necessária, à substância que responde por mais de 70% de nossa própria massa corporal. Uma crise hídrica como a que esvaziou o Cantareira, deixando várias cidades do estado de São Paulo, incluindo sua capital, em condições tão difíceis; que voltou a assombrar boa parte do Nordeste Brasileiro, que secou a nascente do Rio São Francisco, em Minas Gerais e que não está circunscrita ao nosso País (vide os recentes fatos ocorridos na Califórnia, China, Índia etc.) deveria, pelo menos nos fazer pensar em termos sistêmicos, ou seja, enfrentar a Hidra Ilógica como um todo e não isoladamente, cabeça por cabeça. A euforia pelo alívio momentâneo em cortar uma dessas cabeças (antes que ela própria se regenere e volte a atacar) pode ser enganosa diante da iminente mordida traiçoeira de outra.
 
A PRIMEIRA CABEÇA: Mudanças climáticas aumentam a capacidade de armazenamento de vapor d'água na atmosfera, o que muda o regime de chuvas, levando a secas piores e tornando mais prováveis as crises de abastecimento. É a consequência de uma lei física simples, expressa pela equação de Clausius-Clapeyron, que prevê uma dependência quase exponencial entre a pressão de vapor de saturação, que tem a ver com a máxima quantidade de vapor d'água que a a atmosfera pode conter antes de haver condensação (como na formação de nuvens), e a temperatura. Num aparente paradoxo, o aumento de temperatura, nesse caso, levaria tanto a secas mais severas e prolongadas quanto a tempestades (chuvas intensas, furacões e mesmo nevascas) mais intensas. Para entender o fenômeno, uma analogia pode ser feita com dois baldes colocados diante de uma torneira (esta mantida a uma vazão constante, por simplicidade). A espera para encher o balde pode ser comparada com o período de seca: a água se acumula no reservatório (seja o balde, seja a atmosfera), não estando disponível. Quando o balde enche, podemos agora utilizar a água, literalmente despejando-a (ou, na natureza, com as chuvas sendo "despejadas"). Ora, se o balde for maior, tanto o tempo de espera é maior e a carência pela água se prolonga (seca mais longa e severa), quanto maior é a quantidade de água despejada (chuvas mais fortes, enxurradas etc.).
 
A SEGUNDA CABEÇA: Desmatamento provoca exposição das nascentes, erosão, transporte excessivo de sedimentos e assoreamento dos rios e reservatórios, tornando mais prováveis as crises de abastecimento. Em alguns casos, o próprio rio inicia um processo de morte lenta, com os sedimentos se acumulando, reduzindo a profundidade da calha. Mas mesmo em casos em que a vazão do rio que alimenta o reservatório aumente, o assoreamento do reservatório leva à redução do volume útil, abrasão de componentes, obstruções nas tomadas de água etc.
 
A TERCEIRA CABEÇA: Desmatamento faz com que uma das fontes de umidade para a atmosfera (a água armazenada no solo e bombeada para cima pela vegetação) seja eliminada, reduzindo o vapor d'água disponível para produzir nuvens de chuva, levando a secas piores e tornando mais prováveis as crises de abastecimento. O sistema de raízes das árvores capta umidade em camadas mais profundas do solo, mesmo quando, na superfície, ele está seco. Essa umidade é transportada para cima e liberada na atmosfera pelo mecanismo de evapotranspiração. Muitas vezes, essa umidade é importante para a transição do período seco para o período chuvoso de algumas regiões e, no caso de extensas zonas florestadas, a perda dessa umidade pode provocar não somente efeitos locais, mas também efeitos remotos, caso essa umidade passe a ser transportada, em menor quantidade, pelos ventos. De maneira simplificada, é esta a fundamentação da Teoria dos "Rios Aéreos" ou "Rios Voadores", defendida pelo colega pesquisador Antônio Donato Nobre, que avalia já haver impactos do desmatamento da Amazônia no regime de chuvas do Sudeste e que o leva a concluir que não basta apenas não desmatar mais, sendo necessário haver reflorestamento. Ou seja, não poderíamos ficar restritos mais à bandeira do "Desmatamento Zero" tão bem assimilada pelo movimento ambientalista. Seria necessário defender um "Desmatamento Negativo"!
 
A QUARTA CABEÇA: Mudanças climáticas podem acelerar a degradação e virtual morte da floresta, em virtude de ondas de calor, maior número de incêndios e as próprias secas mais prolongadas, provocando mortandade de árvores, que reduz uma das fontes de umidade para a atmosfera, levando a secas piores e tornando mais prováveis as crises de abastecimento. Existe uma discussão ainda fortemente em aberto em meio à comunidade científica, sobre o possível destino do bioma amazônico em diferentes cenários de mudança climática global e, por exemplo, pesquisadores do mesmo grupo de pesquisa, como os britânicos do Hadley Centre, usando dois de seus modelos, chegaram a resultados conflituosos: um modelo mais antigo apontava para um cenário de "die-back", isto é, morte completa da floresta até o final do século XXI, no cenário de maiores emissões; enquanto o modelo mais moderno dizia o contrário. Isso chegou a ser noticiado como uma "boa notícia", mas em conversa pelo twitter com Richard Betts, um dos líderes da equipe inglesa, ele admitiu que havia várias incertezas e efeitos ainda não considerados, mesmo no modelo mais novo, sendo necessários introduzir a representação dos incêndios florestais, da incidência de pragas e até da mortandade de árvores por enxurradas, descargas atmosféricas etc. Interessante dizer que nosso grupo de pesquisa aqui na UECE, mesmo usando um modelo regionalalimentado por dados do modelo global do Hadley Centre que não prevê die-back, chegou ao que pode ser considerada uma situação intermediária: no cenário de maiores emissões (o famigerado "RCP8.5") o leste da Amazônia tem a sua precipitação muito reduzida, principalmente em Setembro-Outubro-Novembro, com impactos óbvios sobre o destino dessa porção da floresta, mesmo que paremos de desmatá-la!
 
A QUINTA CABEÇA: Nascentes e florestas estão comprovadamente melhor preservadas em terras indígenas. Uma política de abandono das demarcações dessas terras, como se verificou nos últimos anos, conjugada às mudanças deletérias no Código Florestal, expõem ainda mais nossas florestas à devastação e, como já discutimos, desflorestamento... torna mais prováveis as crises de abastecimento. Os dados do estudo World Resources Institute (WRI) em parceria com o Rights and Resources Initiative (RRI) parecem incontestáveis: de 2000 a 2012, a perda de florestas foi 0,6% dentro de terras indígenas em comparação a 7% fora dessas áreas; o desmatamento na Amazônia fora dos territórios indígenas produziu 8,7 bilhões de CO2, enquanto que nas terras indígenas houve 27 vezes menos emissões! Acredito que mesmo o mais fútil dos indivíduos de vida urbanóide pode entender que a água não brota magicamente da torneira e que alimentos não florescem por encanto em prateleiras de supermercados. E que decorre daí que é hora de entender na real o que significam os tais ciclo hidrológico e ciclo do carbono que são mostrados nos bancos da escola, para que finalmente se enxergue porque não tem nada melhor para o mais urbano dos urbanos do que deixar os povos indígenas em paz, tomando conta das florestas e das nascentes dos rios. Não é admissível, portanto, que o assassinato de indígenas siga crescendo em níveis galopantes enquanto as demarcações permanecem em último plano por conta das alianças do governo Dilma com o agronegócio. Dados do Conselho Indigenista Missionário apontam para uma média de 56 assassinatos de indígenas por ano nos governos comandados pelo PT, com apenas 11 homologações de terras indígenas no governo Dilma (média de 3,6 por ano) contra 79 homologações com Lula e 145 homologações com FHC (não, isto não é elogio aos tucanos e sua desastrosa política social, ambiental, etc., mas quando se aparece tão mal numa comparação com eles é preciso ver que algo está muitíssimo errado!).
 
A SEXTA CABEÇA: Uma política de recursos hídricos voltada principalmente para atender às demandas do agronegócio e da grande indústria implica em um uso continuado de grandes quantidades de água dos reservatórios, fazendo com que... se tornem mais prováveis as crises de abastecimento, óbvio! É evidente que gestos individuais como o uso contido da água no banho ou em outras atividades domésticas é louvável, mas muito mais pelo exemplo, pelo caráter simbólico.
 
Não podemos admitir, porém, que o incentivo a essas atitudes seja objeto de manipulação por parte dos governos federal e estaduais, que escondem as outorgas generosíssimas de água para grandes empresas capitalistas. A água é insumo fundamental para a agricultura e pecuária e alguns alimentos são particularmente intensivos em termos de "pegada hídrica" (quantidade de água utilizada), como é o caso da carne bovina (o que se soma à elevada "pegada de carbono", ou seja às emissões de gases de efeito estufa, no caso, além do CO2, principalmente o metano). Ao agronegócio, que utiliza água de forma bem mais intensiva do que a pequena agricultura familiar (conforme admitido pelo próprio governo) e, ao contrário desta, produz bem mais commodities para exportação do que alimentos para a população, não se pode destinar tanta água, de forma tão generosa (além de subsídios, há muito desperdício). Mas a este, ainda se soma a grande indústria que, de forma direta ou indireta utiliza também enormes quantidades de água. Por exemplo, uma siderúrgica precisa de quase 300 mil litros de água para produzir uma única tonelada de aço. Além disso há a "pegada energética": se a energia for gerada a partir de fontes que se utilizam de água de forma intensiva (como por exemplo termonucleares ou térmicas a carvão que, além do consumo de água produzem rejeitos radioativos e enormes emissões de CO2), o quadro piora ainda mais. Novamente, a questão se volta para a discussão em torno da hiperprodução e do hiperconsumo (a quantidade de aço e alumínio produzida hoje é uma mostra de perdularismo) e da matriz energética que movimenta essa roda que não quer deixar de se acelerar. Como em tudo mais, a pegada hídrica das energias renováveis é, em geral, bem menor do que a das fontes fósseis.
 
A SÉTIMA CABEÇA: Privatização da água, bem público cuja oferta para a maioria da população precisa ser garantida aparece, enfim, como uma medida completamente oposta ao necessário nas atuais condições. Sendo a água tão essencial à saúde, ao bem estar, enfim, à vida humana, e estando a oferta dela, na quantidade e qualidade recomendadas, ameaçada, é natural se pensar que a governança desta tenda cada vez mais a uma perspectiva pública, democrática, participativa e com prioridade social, correto? Parece o racional, mas não é. Infelizmente, a lógica quase geral, desde o final dos anos 90, com o auge da ofensiva neoliberal, e contando com forte influência do Banco Mundial,  têm sido a de trabalhar com a água como mercadoria e com a privatização de companhias de gestão e abastecimento. Ora, quando o lucro passa a ser o objetivo principal, absurdos como o da SABESP sob a gestão de Geraldo Alckmin se tornam quase inevitáveis. Mas é preciso não ficar na superficialidade do discurso. Há algo muito além da ausência de prioridade para obras que pudessem aumentar a oferta em função da cobrança dos acionistas para verem a "cor do dinheiro" independente se os paulistas iriam ou não ver a "cor da água". É possível que a profundidade da crise hídrica vivida por São Paulo hoje pudesse ter sido evitada, não fosse o tucanato tão cegamente privatista e irresponsável, mas é preciso deixar claro: sem mudanças profundas no uso da água, recusando a demanda imposta por setores do capital como agronegócio e indústria pesada, o adiamento dessa crise se daria apenas por alguns anos. Mesmo que isso seja feito, e se passe a priorizar água para o consumo humano e atividades menos intensivas, incluindo a produção de alimentos por pequenos agricultores, sem tocar nas questões como desmatamento e mudanças climáticas, esse adiamento no máximo se dá por algumas décadas (poucas, provavelmente).
 
É preciso atuar embaixo, na adaptação, mudando a gestão da água, adaptando casas, adotando reuso e sobretudo recusando a demanda do grande capital materializado no agronegócio, grande indústria e setor energético. Mas é preciso atuar em cima com igual radicalidade e urgência, cortando as emissões de CO2 e demais gases de efeito estufa, revertendo o processo de desmatamento e assegurando o direito à terra aos povos originários, nem que seja "apenas" em nome do destino da nossa própria civilização. Não adianta cortar uma cabeça da Hidra Ilógica, equivalente a soluções superficiais para uma crise hídrica tão profunda. A cabeça irá rebrotar ainda mais forte, a não ser que o monstro seja enfrentado em seu todo: clima, ambiente, economia, sociedade, política. O trabalho hoje é hercúleo, mas talvez possível. Adiar é deixar, para nossa velhice e para as gerações mais jovens, um caos que pode ser demais até para todos os deuses e deusas do Olimpo juntos.

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