É verdade que os reacionários capitalistas, não sem artifício, utilizam o regime de Stálin como espantalho contra as idéias socialistas. Na realidade, Marx nunca disse que o socialismo poderia ser alcançado em um só país e, ademais, em um país atrasado. As contínuas privações das massas na União soviética, a onipotência da casta privilegiada que se levantou sobre a nação (…) não são conseqüências do método econômico socialista, mas do isolamento e atraso da Rússia, cercada pelos países capitalistas. O admirável é que nessas circunstâncias, excepcionalmente desfavoráveis, a economia planificada (…) tenha demonstrado seus benefícios insuperáveis.” (Leon Trotsky) [1]
“Se não é possível negar, antecipadamente, a possibilidade, em casos estritamente determinados, de uma frente única com a parte termidoriana da burocracia contra a ofensiva aberta da contrarrevolução capitalista, a principal tarefa política na União Soviética continua sendo, apesar de tudo, a derrubada da própria burocracia termidoriana. O prolongamento de seu domínio abala, cada dia mais, os elementos socialistas da economia e aumenta as chances de restauração capitalista.” (Leon Trtosky)[2]
A queda do Muro de Berlim divide, até hoje, apaixonadamente, a maioria do ativismo de esquerda. É compreensível que seja assim, porque se o desmoronamento das ditaduras burocrático-estalinistas despertou simpatia, a restauração capitalista foi um dos processos contrarrevolucionários mais importantes do final do século XX. A percepção de que foram as mobilizações populares de massas o principal fator que abriu o caminho para a restauração do capitalismo não é consistente com a pesquisa histórica, mas ainda prevalece, tão grande foi a campanha ideológica imperialista.
Neste terreno, auxiliada, valiosamente, pelo estalinismo remanescente na Europa e América Latina, que não hesitou em responsabilizar as massas por aquilo que estava sendo feito pelo chefes dos Partidos Comunista da ex-União Soviética, Gorbatchev e Ieltsin. As consequências político-ideológicas da queda do Muro de Berlim, e do que aconteceu em seguida com a dissolução da União Soviética, foram devastadoras para a luta mundial pelo socialismo. Tanto o imperialismo quanto os partidos de esquerda com maior autoridade coincidiram, por razões diferentes, em afirmar que aquilo que foi derrubado era o socialismo. A maioria da nova geração que chegou à vida adulta após estes acontecimentos deixou, portanto, de ter no socialismo uma referência.
A história foi sempre um campo de batalha das idéias. A distinção entre o que foi progressivo, historicamente, e o que foi regressivo é o cerne da investigação do passado. Compreender na seqüência aparentemente caótica dos acontecimentos, quais são aquelas mudanças que abriram caminho para um mundo menos desigual, e aquelas que preservaram injustiças, deveria ser a primeira obrigação de qualquer investigação. A honestidade intelectual mais elementar é posta à prova na hora de separar o que foi revolucionário do que foi reacionário. Mas é muito menos simples do que pode parecer.
A historiografia e a esquerda de educação marxista foram incapazes de analisar o que estava acontecendo na China, no Leste europeu e na União Soviética durante os anos oitenta. Nem sequer aqueles que eram mais críticos aos rumos destes Estados, como os que se educaram na tradição trotskista, estiveram à altura do desafio histórico. A explicação é simples, embora o problema seja complexo: tudo o que acontece pela primeira vez na história é mais difícil de compreender. Compreender e valorizar o que significavam as estratégias de Deng Xiao Ping e Gorbatchev no calor dos acontecimentos demonstrou-se muito difícil.
As massas de trabalhadores e jovens em luta que se lançaram sobre o Muro de Berlim moviam-se reativamente às sequelas das medidas dos governos que estavam destruindo suas já precárias condições de existência anteriores. Não fizeram nada muito diferente do que os seus irmão de classe em todas as revoluções da história contemporânea. Revoluções políticas iniciaram-se sempre como processos destrutivos. Quando milhões de pessoas se levantam, revolucionariamente, para derrubar regimes odiados não saem às ruas com um plano pré-estabelecido de como gostariam de reorganizar a vida social. Esses projetos político-sociais mais complexos, ou seja, estes programas, estão nas mãos de grupos, movimentos, partidos ou lideranças que aspiram, lutando impiedosamente uns contra os outros, à representação da vontade popular e á luta pelo poder. A oposição anti-burocrática no Leste europeu e na ex-União Soviética teve referência no marxismo somente até 1968. Depois da invasão da Tchecoslováquia, o marxismo passou a ser, infelizmente, uma corrente literária marginal. Que o estalinismo tenha usurpado para a defesa das ditaduras a autoridade do marxismo durante décadas ajuda a compreender esta catástrofe.
Nos prazos mais curtos da história, a restauração capitalista no Leste Europeu e na ex-União Soviética definiu a abertura de uma nova etapa histórico-política que começou, na década dos anos 1990, com uma situação reacionária. Favoreceu uma contra-ofensiva capitalista muito poderosa que se manifestou em dinâmicas de recolonização na periferia dos países dependentes, e a destruição maior ou menor dos direitos sociais nos países centrais.
As mobilizações anti-burocráticas de milhões de trabalhadores e jovens partiram de graus de inexperiência política tão grandes que, mesmo um quarto de século depois, a capacidade de organização independente é muito pequena. Se há uma região do mundo em que o marxismo é pouco influente neste século XXI é na Rússia e no Leste Europeu. Infelizmente, o mesmo quadro desolador persiste na China, ainda que, como sugerem as greves dos últimos anos, com maior capacidade de recuperação do proletariado.
A queda do muro de Berlim em 1989 não foi uma tragédia histórica.[3] Foi o acontecimento gatilho da última das ondas revolucionárias internacionais do século XX. E a mais incompreendida de toda a história. No calor dos acontecimentos, a sua grandeza escapou à compreensão da maioria da esquerda e dos estudiosos brasileiros que foram educados em décadas de influência das teorias campistas que subverteram a interpretação marxista.
O campismo foi, na segunda metade do século XX, ao lado do gradualismo democrático-reformista, a mais influente teoria na esquerda mundial. Os campistas apoiavam seus argumentos com uma demonstração simples de sua estratégia. O mundo estava dividido em dois campos, o capitalista e o socialista. Seria uma questão de tempo para que a superioridade do socialismo fosse arrasadora. Revoluções sociais tinham sido enterradas pela história, porque o arsenal nuclear do imperialismo ameaçava a própria existência da civilização. Logo, toda a tática consistia em ganhar tempo para que a transição ao socialismo por via pacífica, respeitando as formas democráticas das Repúblicas burguesas, fosse conquistada. A coexistência pacífica favorecia, presumia-se, a passagem ao socialismo. A luta de classes deveria estar subordinada aos interesses diplomáticos da União Soviética nas relações com os Estados Unidos: a situação mundial se resumia a uma luta entre Estados. Influenciou gerações, afirmando que o mundo estava dividido em dois campos: o capitalista e o socialista, irreconciliáveis, sendo este último, presumidamente, a retaguarda estratégica das lutas de classes contra o imperialismo, apesar das oscilações da coexistência pacífica. Algumas poucas vozes marxistas alertaram para as perigosas consequências dos critérios campistas. [4]
A decadência indisfarçável dos regimes ditatoriais depois da revolução operária polonesa de 1980/81 liderada pelo Solidariedade a partir da greves de Gdansk já não permitia os entusiasmos dos anos cinqüenta, mas a influência tardia do estalinismo levou muitos dirigentes da esquerda – tanto no PCB e PCdB, quanto até no PT – a um olhar de suspeita sobre as mobilizações de massas na Alemanha, a greve geral na Tchecolosváquia e a insurreição na Romênia Não obstante, as revoluções anti-burocráticas foram das mais massivas, justas, corajosas, portanto, legítimas da história, sejam quais forem os critérios de comparação com outras revoluções democráticas.
Já a decisão da maioria do Comitê Central do Partido Comunista da China de apoiar o plano das Quatro Modernizações defendido por Deng Xao Ping em 1978, e o XXVII Congreso do Partido Comunista da União Soviética em fevereiro de 1986, quando Gorbatchev conquistou o apoio para a perestroika estão entre os segundos e, ao contrário do que pensou na ocasião a maioria da intelectualidade de esquerda, não foram decisões que abriam o caminho para uma renovação do socialismo, mas para a restauração do capitalismo. Aqueles que reduzem explicações históricas de processos complexos ao balanço dos seus resultados, acabam atribuindo o que foi obra da contra-revolução à revolução.
Dois processos de natureza diversa e de signos históricos opostos, estão associados, portanto, a 1989: a restauração capitalista foi um processo contrarrevolucionário essencialmente nacional, conduzido de cima para baixo pelos Estados e pelas burocracias dos partidos comunistas de cada país em ritmos diferentes; e a queda do muro de Berlim foi a expressão mais espetacular de uma onda de revolução democrática internacional, uma rebelião de baixo para cima de amplíssimo apoio popular, que iniciou na Praça Tian An Men em Pequim e foi derrotada no 4 de junho de 1989 com uma carnificina, mas obteve no 9 de novembro na Alemanha a primeira de uma série de vitórias que derrubaram, na seqüência, os regimes ditatoriais na Polônia, na Hungria e, antes do fim de dezembro, na Romênia.
A restauração capitalista foi uma transformação econômico-social que estava colocando abaixo a propriedade estatal, o monopólio do comércio exterior e o planejamento estatal e reintroduzindo a propriedade privada, a relação direta das empresas com o mercado mundial e a regulação mercantil.
A revolução política-democrática de 1989 foi uma vaga de lutas populares que uniu na rua a maioria da classe trabalhadora e da juventude em marchas, ocupações e greves que derrubaram os regimes monolíticos de partido único estalinistas que estavam conduzindo a restauração capitalista, e que agonizavam em função das seqüelas econômico-sociais que estavam provocando.
Embora a última crise econômica mundial tenha demonstrado que os limites históricos do capitalismo são cada vez mais estreitos, do ponto de vista subjetivo estamos em condições tão adversas que são até piores que aquelas que viveram os internacionalistas da II Internacional, em minoria, antes da vitória da revolução de Outubro em 1917. A maioria da classe trabalhadora, mesmo nos países em que a industrialização já permitiu a configuração de uma classe operária importante, não abraça mais a esperança do socialismo.
Mas a luta de classes abrirá o caminho. Excessos de pessimismo histórico, mesmo se compreensíveis, não são racionalização realista. As próximas crises do capitalismo colocarão em movimento, inevitavelmente, os batalhões mais concentrados dos que vivem do trabalho. O proletariado do século XXI é mais poderoso que o do século passado: é mais instruído, está mais concentrado, e tem melhores condições político-sociais de arrastar atrás de si a maioria oprimida. Será nos calores destes embates que virão que se acelerará a reorganização da esquerda marxista.
NOtas:
[1] TROTSKY, Leon. El pensamiento vivo de Marx. Buenos Aires, Losada, 1984, p.43.
[2] TROTSKY, Leon. Programa de transição: a agonia mortal do capitalismo e as tarefas da Quarta Internacional. São Paulo: Proposta, 1981.
[3] SADER, Emir, A Esquerda depois do Muro. Carta Maior, 7 nov. 2009. Dispon;ivel em: http://bit.ly/1suou03. Consulta feita 9 nov. 2009.
[4] A tradição associada à elaboração de Leon Trotsky se destacou na reivindicação da centralidade do internacionalismo socialista: o antagonismo entre capital e trabalho permanecia a contradição ordenadora para um projeto socialista. Os internacionalistas reconheciam a existência de inúmeras outras contradições. Admitiram que seria justo se posicionar em defesa dos Estados pós-capitalistas contra os capitalistas, em defesa das nações oprimidas contra as opressoras, em defesa de regimes democráticos quando ameaçados pelo perigo de quarteladas ditatoriais, etc. Mas sustentaram que os antagonismos de classe continuavam sendo a contradição fundamental do capitalismo. Um projeto anticapitalista dependeria, estrategicamente, da reconstrução de um movimento operário internacional. Uma análise lúcida das distintas interpretações campistas – pró Moscou, ou pró Pequim – foi feita por Perry Anderson no seu clássico Considerações sobre o marxismo ocidental. Lisboa, Afrontamento, 1976.