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Miguel Urbano Rodrigues

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A Subliteratura Anti-Soviética

Miguel Urbano Rodrigues - Publicado: Domingo, 09 Novembro 2014 18:01

O anticomunismo e o antisovietismo permanecem peças centrais do arsenal ideológico reaccionário. A burguesia não cessa de agitar os espantalhos que criou, mesmo que já tenham passado décadas sobre a queda da União Soviética. Não admira que, tal como no tempo da guerra-fria, a ficção literária mercantil continue a alimentar-se de tal filão.


Após o fim da União Soviética começaram a ser editados na Inglaterra e nos EUA romances anticomunistas cuja ação tinha por cenário a Rússia transformada num país capitalista.
 
Alguns deles foram best-sellers, o que contribuiu para que obras semelhantes surgissem noutros países.
 
Com raríssimas exceções, esses livros carecem de qualidade mínima. Os autores escreveram para ganhar dinheiro e fama, explorando o filão do sentimento anticomunista, latente no Ocidente desde a Revolução Russa de Outubro, e aprofundado por uma campanha mediática permanente após o famoso discurso de Churchill em Fulton. O pavor inspirado pela fantasmática Cortina de Ferro favoreceu o êxito dessa subliteratura.
 
Escritores importantes como o francês Alexandre Dumas, o escocês Walter Scott e o português Alexandre Herculano deturparam conscientemente a História na sua ficção. Mas, ao deturpá-la com sentido de responsabilidade, contribuíram para que sucessivas gerações se interessassem pela história dos seus povos.
 
Tomo como exemplo da subliteratura antissoviética dois romances que alcançaram êxito mundial: Vodka, de Boris Starling [1], e Archangel, de Robert Harris.[2]
 
Ambos foram publicados em Portugal pela Bertrand, com elogios na contracapa e citações de influentes media britânicos.
 
Starling foi redator do Daily Telegraph e do The Sun e trabalhou numa empresa especializada em raptos. Um dos seus romances foi tema de uma série televisiva da BBC.
 
Robert Harris foi editor do Observer e colunista do Sunday Times. Segundo The Times, o seu romance Fatherland (Pátria), «eleva o autor a uma nova e superior classe».
 
Os dois livros merecem ser qualificados de lixo literário venenoso.

«VODKA»
 
A estória principia em agosto de 1991 e termina em Maio de 1992. Na época, portanto, do capitalismo selvagem que surgiu na Rússia onde durante a presidência de Ieltsin foram destruídas aceleradamente as estruturas económicas, sociais e administrativas daquilo que fora a União Soviética.
 
Uma banqueira americana, Alice Liddel, chega a Moscovo com o marido. Ele é um cirurgião contratado por um grande hospital. A tarefa dela é programar a privatização de grandes empresas. O primeiro desafio consiste em privatizar a maior destilaria de vodka do país.
 
Missão difícil porque o diretor, Lev, que se opõe ao projeto, é um dos principais chefes da mafia. Tudo se complica porque Alice é alcoólatra e torna-se amante de Lev.
 
O argumento lembra o de folhetins antigos e telenovelas de baixo nível. O autor escreve como jornalista que cultiva o sensacionalismo.
 
O presidente da Rússia, Borzov (caricatura de Ieltsin e como ele em estado de embriaguez quase permanente), é personagem importante na trama. O primeiro-ministro, Arkin, também desempenha um papel.
Na Moscovo do romance não há uma pessoa que tenha um comportamento normal.
 
São muitas as páginas dedicadas ao amor de Alicia e Lev. É um amor, profundo, mágico como o dos romances cor-de-rosa. Pensam abandonar tudo e ir viver próximo do Baikal.
 
Cito: “teriam uma pequena cabana, anexos, uma horta a um canto, algum gado, um poço, seriam totalmente autossuficientes como autênticos camponeses».
 
Alice e Lev são protagonistas de uma conspiração que incluiria o assassínio simulado do presidente pelo mafioso.
 
Mas o plano falha e o primeiro-ministro Arkin assassina Borzov.
 
Lev é torturado e morto por um antigo colaborador. Alice chora-o, mas resiste à dor e decide permanecer na Rússia.
 
A maioria das personagens russas foram membros do PCUS e o romance é todo ele uma sementeira de anticomunismo.
 
No prólogo, Boris Starling declara a sua «paixão pela Rússia».
 
«Para mim, escreve, é o país mais fascinante e mais inspirador do mundo e espero ter feito, com Vodka, alguma justiça a uma nação extraordinária e a um povo único».
 
«ARCHANGEL»
 
O currículo de Robert Harris, como jornalista, é melhor que o de Starling. Foi redator da BBC e editor de política do prestigiado semanário Observer.
 
Como respeitado «especialista» em temas soviéticos captou um público mais vasto. No romance Archangel atingiu um nível de perversidade superior.
 
Nos primeiros capítulos a estória é banal.
 
Um inglês, Fluke Kelso, ex- professor de História de Oxford, autor de um livro sobre Stalin, participa em Moscovo com tédio num Seminário internacional sobre os Arquivos Soviéticos, recentemente abertos.
 
Uma noite aparece-lhe no quarto do hotel um homem idoso que elogia Stalin e principia a desfiar recordações Apresenta-se como antigo motorista e homem de confiança de Lavrenti Beria.
 
Kelso fica fascinado quando o visitante, Papu Rapava, recorda a madrugada em que o seu patrão é chamado por Malenkov que lhe pede para comparecer urgentemente na residência de Stalin, fora de Moscovo.
 
Ao chegar, Rapava assistiu à agonia de Stalin.
 
Kelso sente que aquilo pode inspirar-lhe o livro da sua vida. Embebeda o ancião que durante horas recorre à memória para evocar a morte de Stalin e a atitude de Beria nessa noite de pesadelo.
 
O romance assume, a partir desse capítulo, facetas delirantes.
 
Rapava acompanha Beria no jornadear pela noite em busca de um caderno secreto de capa preta, de Stalin. Beriab encontra-o num cofre do ex-secretário geral do PCUS e enterra o achado numa cova aberta no jardim da sua casa.
 
Poupo o leitor aos pormenores da inconcebível estória que fez do romance de Harris um best-seller mundial.
 
Os capítulos sobre o Seminário e as conversas com os académicos ocidentais que nele participam alternam com as aventuras e desventuras de Kelso, empenhado em descobrir o paradeiro do famoso caderno.
 
O anticomunismo é destilado em doses maciças. De Stalin é esboçado o retrato de um monstro lubrico, sanguinário, mais repugnante e violento do que aquele que os seus biógrafos anglo-americanos fabricaram.
 
A Rússia neocapitalista surge no romance como uma terra de pesadelo, habitada por gente violenta, porca, faminta, na qual as polícias secretas são mais perigosas do que o antigo KGB, um país onde qualquer cidadão se vende por um punhado de rublos.
 
Kelso acaba por encontrar num cabaret a filha de Rapava, uma estudante que é prostituta. O pai é assassinado e o ex-professor de Oxford consegue, finalmente, entrar na posse do caderno de capa preta. Com espanto descobre que as páginas que não foram arrancadas são parte do diário de uma jovem que foi primeiro criada e, depois, amante de Stalin. Dele teve, pasme-se, um filho.
 
Kelso, apos aventuras rocambolescas, viaja com um jornalista da TV americana para Archangel. E numa floresta do árctico russo atinge o objetivo: localiza o filho da criada e de Stalin.
 
Vive numa cabana miserável quase como um animal. Fisicamente é o retrato do pai. Lê e relê discursos de Stalin. Tenta imitar o pai. Próximo da cabana enterrou algumas pessoas por ele assassinadas quando lhe perturbaram a solidão.
 
Perseguidos por forças das polícias secretas, Kelso e o americano fogem num bote pelo rio Dvina para Archangel com o herdeiro de Stalin.
 
O americano divulgou pela televisão, via satélite, imagens do filho de Stalin.
 
O desfecho surpreende mais uma vez o leitor. Na viagem de comboio de Archangel para Moscovo, o animalesco herdeiro do ex-secretário geral é reconhecido e aclamado apoteoticamente.
 
A crítica afirma que Robert Harris como ficcionista «controla o suspense como um Hitchcock literário».
 
Seria mais exato definir o seu romance como produto de uma mente perturbada.
 
Não consegui perceber o êxito avassalador dos seus livros. Foram traduzidos em trinta línguas e deles foram vendidos mais de seis milhões de exemplares.
 
É chocante que uma grande editora portuguesa tenha publicado os romances de Starling e Harris.
 
Notas:
 
[1] Boris Starling, Vodka,674 páginas, Bertrand Editora, Lisboa 2004.
 
[2] Robert Harris, Archangel,336 páginas, Bertrand Editora, Lisboa, 1999.
 
Vila Nova de Gaia, 31 de Outubro de 2014.

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