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Pedro Monterroso

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O diabo revisitado

Armando Rodrigues de Sá e eu

Pedro Monterroso - Publicado: Sábado, 27 Setembro 2014 06:45

Sentado entre os transeuntes num dia ensolarado em Kreuzberg, Berlim, junto a um dos canais da cidade, olho o tempo pela passagem da água, e distraio-me com o passar de uma banheira convertida num pequeno barco, ou outras embarcações de pequenas ou iguais imaginações, frequentemente cheias de jovens com música fazendo a festa sob os engenhos.


trabalhadorestrangEnquanto sentado sob a relva, escuto as mais variadas línguas, que por trás de mim insonorizam o barulho da água, sendo elas, ordenando pela ordem dos décibeis emitidos, o espanhol, o italiano e outras línguas do sul da europa, como o português. Neste ambiente polifónico, encontro-me absorto na ociosidade de um domingo à tarde e, também eu, incluído entre os expatriados que saem diariamente dos países sul europeus para o centro-norte da Europa, que aqui desfrutam tudo do pouco sol que há. Nem ao domingo deixo de pensar que, este aleatório ajuntamento de pessoas, é um conjunto de repelidos da periferia da União Europeia, atraídos para o centro do império, entre os quais se contam alguns dos 700 000[1] que na década entre 1998 e 2008, com tendência a aumentar a cada ano, abandonaram o barco, que hoje naufraga – Portugal. E, se são bem-vindos a esta praia berlinense, isso tem sido apenas fruto da sorte e do acaso, numa das cidades que entre as grandes cidades alemãs é das que tem das mais altas taxas de desemprego (11,1%[2]).

Longe de um passado milagroso, evocado por um artigo de jornal que me veio parar às mãos por intermédio de uma amiga, não fosse o dito  impresso e não teria marinado na minha mochila durante semanas, acabando por nunca lhe passar as vistas em cima. Este é sobre o português Armando Rodrigues de Sá, humilde carpinteiro nortenho de Vale de Madeiros, que em 1964 chegou a Colónia, num comboio junto com 1200 trabalhadores vindos da Península Ibérica, a uma terra onde a necessidade da mão de obra era urgente e bem-vinda. Recém-chegado, quis a sorte que fosse simbolicamente assinalado como o imigrante número 1.000.000, pela associação industrial do burgo, tendo recebido como presente uma motorizada Zundapp, além de um ostentivo bouquet de flores nos braços e uma chuva de frenéticos flashes nos olhos, de máquinas fotográficas que registavam um singular momento de uma das épocas mais entusiásticas da história económica alemã.

Mudam-se os tempos, ficam-se as vontadesm e o que é certo, é que Berlim atualmente é um mosaico de jovens de Portugal, Grécia, Espanha, Itália, desenhado pelas recentes crises europeias. Não mais se estranha o facto de ouvir qualquer  uma dessas línguas pelas ruas e artérias da cidade, tanto que, há dias, à saída de um evento no qual Rui Zink apresentava o seu livro “Instalação do Medo”, enquadrado numa série de palestras e discussões sobre a crise dos países do sul, me deparei com um casal de meia idade, de visita à cidade, que ao se depararem comigo a falar português, à saída do tal cineteatro me queriam surpreender também falando a língua de Camões: perguntavam-me sorridentemente onde é que, ali perto, se poderia beber uma cerveja, aos quais eu na minha expressa prontidão lhes respondi num jeito de naturalidade quotidiana, que não vivia naquele quarteirão e que não sabia, ali pelas redondezas, onde se poderia ir, mas talvez ali, na rua à direita, vai em frente, vira à esquerda, apanha o metro... Bom, não lhes interessava mais o que eu dizia. Afinal o que eles queriam não era mais que suscitar a minha admiração de encontrar outros portugueses por cá, o que há muito tempo se esvaiu – se me admirasse hoje por cada português que via na cidade, provavelmente não fecharia mais a boca de espanto.

O mais interessante no episódio acima descrito, refleti mais tarde pela análise da cara de desapontamento deles, é que eles, os tais turistas, não me fizeram esta pergunta pela necessidade de resposta em si, mas porque procuravam surpreender-me com algo singular, falar português nesta cidade. Enfim, não sabiam os ingénuos que, seja em frente a um qualquer cineteatro berlinense ou supermercado, não irá despertar a mínima exclamação do género “Ah, portugueses!” a qualquer pessoa que cá viva há mais de um mês. E, se às vezes, na mais curriqueira pergunta, nós, os “Südländer”, procuramos mais uma forma de nos relacionar do que a resposta em si, é porque não vivemos para os fins, vivemos para os meios. Numa sessão sobre interculturalidade entre os povos do sul e os alemães, o orador frisava, baseado em estatísticas, que os povos sul-europeus são mesmo assim nas questões relacionais quotidianas, isto é, dão mais importância aos afetos, do que ao resultado das conversas, isso significa que aproveitamos o nosso “latim” mais para nos relacionarmos emocionalmente. Esta situação de rua veio precisamente confirmar o que me fora dito, a julgar pelos poucos traços de pasmo desenhados nos rostos destes turistas.

Não é por acaso que quando os décibeis das gargalhadas chegam a certos níveis de audibilidade, quando estamos entre os nossos patrícios de crise europeus, os patrões alemães não gostam disso, como também não nos vão oferecer um ramalhete de flores à chegada. A Alemanha não desfruta hoje da economia de outrora, aquando dos folclóricos festejos da chegada de Armando e, pelo contrário, a sua estrutura socio-económica torna-se pouco permeável às novas migrações europeias. Não raro, entre esses que estão junto ao canal sentados, falam, comem e partilham histórias, muitas delas, histórias de desemprego, de falta de condições de habitação e de oportunidades. Juntam as pequenas somas de dinheiro que trazem, investem-no na procura de uma vida melhor do que aquela que deixaram no sul e apesar de não quererem voltar, essa ameaça é uma constante que os faz aceitar a exploração e péssimas condições de trabalho face a um estado incapacitado pelo domínio de interesses do capital e imperialistas, servidos localmente por burguesias locais num sul da Europa dominado e subjugado.

Se ontem Armando, que em 1970 voltaria a Portugal, com o aperto das saudade e da doença, figurava perante as ilustrações de revistas e livros escolares nos capítulos sobre a emigração, hoje essas páginas serão evitada, não vão elas incentivar as migrações numa Europa sem rumo, como os barcos domingueiros que passam perante os meus olhos.

Notas:

[1]Álvaro Santos Pereira, http://theportugueseeconomy.blogspot.de/2010/06/700000-new-emigrants.html.


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