Curiosamente, Altman coloca a questão em debate justamente no momento em que o PT busca apoderar-se de um discurso mais ideológico contra sua principal adversária nessas eleições, Marina Silva, evocando uma contundente crítica aos bancos e defendendo - ainda que timidamente - o controle público sobre o Banco Central. Não considero que Altman, conhecido por estimular debates fundamentais para a esquerda brasileira, esteja apenas servindo como anteparo a uma estratégia que busca proteger o flanco petista junto aos eleitores assumidamente de esquerda. Ainda assim, seu artigo sugere questões que não poderiam deixar de ser respondidas.
Começo com o título do artigo, que apresenta uma premissa no mínimo questionável: seriam os partidos por ele citados membros de uma mesma "ultra-esquerda", digna de ser assim definida? O PCO, por exemplo, desde o início da campanha eleitoral deixou claro que seu objetivo é estritamente propagandístico. O PCB, por sua vez, embora não diga com essas palavras, vai mais ou menos pelo mesmo caminho, quando afirma que a prioridade nas eleições é a denúncia do capitalismo. Já o PSTU relativiza esse discurso, uma vez que admite que a eleição de parlamentares socialistas cumpre um importante papel na luta anticapitalista. O PSOL, por sua vez, nega peremptoriamente essas perspectivas e não esconde de ninguém que vê na disputa das instituições um elemento essencial na construção de uma alternativa de poder dos trabalhadores. Assim, além do fato de acreditarem que o socialismo é um objetivo a ser alcançado, pouco há em comum entre um partido minúsculo como o PCO e uma agremiação como o PSOL, que governa uma capital e elegeu parlamentares em todos os níveis desde que foi criado. Portanto, rotular pontos de vista tão distintos simplesmente como parte de uma "ultra-esquerda" não passa de um recurso de desqualificação que não pega bem para quem quer discutir a sério os dilemas da esquerda brasileira.
Mas não é aí que reside a diferença fundamental entre a análise de Altman e aquela que fazem os partidos – e falo apenas em nome do PSOL – que optaram por manter-se fora da grande concertação liderada pelo PT. Na verdade, a questão de fundo é a validade do pacto conservador – no dizer de um intelectual petista de boa-fé – como forma de superação dos limites historicamente impostos pela dinâmica capitalista brasileira. Particularmente, não estou entre aqueles que imputam à uma suposta "traição" do PT o abandono de sua vocação anticapitalista. Acredito que, convencido de que a sociedade brasileira não suportava mais que um "reformismo fraco", o PT abandonou a perspectiva de superação política e econômica do modelo das elites em favor de uma adaptação às regras do jogo, um aggiornamento, no dizer de Lincoln Secco.
Mas é compreensível que Altman busque forjar uma caricatura de nossas posições. Só assim pode simplificar a realidade para colocá-la a favor de seu discurso conformista. Quem conhece o mínimo da dinâmica econômica do capitalismo brasileiro, sabe que não é possível manter uma política macroeconômica que privilegie igualmente todos os ramos da economia. E ao fazer determinadas opções em favor deste ou daquele setor, o PT acaba forjando suas alianças. Por exemplo, enquanto o agronegócio lucra como nunca com a atual política cambial – herdada dos neoliberais e mantida pelo PT – a indústria definha ano a ano. Assim se constrói o pacto de classes que permite que um poderoso partido com raízes profundas no movimento de massas possa servir como elemento estabilizador da hegemonia de determinas frações da burguesia. Isso é o mesmo que dizer que "o PT e os demais partidos burgueses seriam farinha do mesmo saco"? Evidente que não. Essa seria uma leitura pobre (ou, pelo menos, propagandística) da realidade. Tão pobre quanto a que coloca PSOL e PCO “no mesmo saco”...
Afora os preconceitos e caricaturas que não merecem comentários (como a da "origem de classe" dos partidos que não compõem o governo petista), Altman agarra-se a duas teses principais: a) o PT tem grande base social e enraizamento popular – coisa que falta a muitos partidos da tal "ultra-esquerda" – porque representa verdadeiramente os interesses de classe dos trabalhadores; b) ao não apoiar o governo petista, a "ultra-esquerda" alia-se indiretamente à burguesia.
As premissas de Altman poderiam ser corretas, não fossem os ensinamentos da história. Os elementos destacados por ele como prova do compromisso do PT com os trabalhadores – expansão dos gastos públicos, políticas distributivistas, aumento do emprego e da renda dos trabalhadores – são, objetivamente, ganhos reais, mas que não comprovam qualquer compromisso em si. Por exemplo, o PMDB, partido que melhor representa os interesses do agronegócio, antagônicos ao desenvolvimento e aos trabalhadores, está alinhadíssimo com o governo. E por que seria? Porque, objetivamente, os ganhos listados por Altman não foram obstáculos ao projeto desta parte das elites. Pelo contrário. Aumentar a renda e expandir os gastos públicos, por exemplo, são instrumentos utilizados pela burguesia sempre que as condições conjunturais permitirem. Ou a Ditadura Militar também não aumentou o emprego e a renda, angariando ampla simpatia popular, no período do chamado “milagre econômico”? Não representava o regime militar um tipo de nacionalismo conservador, útil a determinadas frações da burguesia? Evidentemente, o aumento do emprego, da renda, das políticas redistributivas, é resultado de determinadas opções que podem ser consideradas corretas. Mas o fato de que a maioria da população não tenha se convencido dos limites do lulismo – tal como não estava convencida das propostas radicais do PT em 1989, optando por Collor – não colocam a "narrativa" de Altman mais próxima da realidade.
Por isso o petismo precisa lançar mão de outro argumento central: o de que não apoiar o governo é fazer, objetivamente, o jogo da direita. O problema, aqui, é que Altman considera a "direita" um bloco homogêneo, cujo "núcleo central" está em oposição ao governo. Nada mais falso. O núcleo da burguesia que assumiu protagonismo com o crescimento da economia mundial e a explosão das commodities em meados da década passada é aquele que hoje está ao lado do governo e não contra ele: o agronegócio, as empreiteiras e setores do capital financeiro. Ficaram no prejuízo a indústria e outra parte dos financistas. A CNA, de Kátia Abreu, não está com o governo? As empreiteiras, não estão com o governo? Os partidos que representam esses setores não estão com o governo?
A narrativa que coloca a direita como um bloco homogêneo é pobre, mas funcional. Através dela, todos os que estiverem contra o governo, estão com a direita. A retomada das privatizações (ou "concessões", como prefere o governo), a regressão da legislação ambiental e indígena, o crescimento do fundamentalismo no Congresso Nacional, as altas taxas de juros que inviabilizam o investimento produtivo e garantem o lucro dos bancos, tudo isso, não pode ser imputado exclusivamente a uma direita abstrata, que só existe em oposição ao governo. A direita também está no governo. E não através de um golpe, mas convidada pelos anfitriões do baile. Com isso, este também é um governo da direita, ou ao menos de parte dela. Da mesma forma, há milhares de trabalhadores que consideram, por ausência de uma alternativa, que este também é seu governo. Como achava a maioria dos trabalhadores que viviam sob o fascismo na Itália dos anos 20. Com isso, quero dizer que legitimidade não é suficiente para determinar o caráter de um projeto.
Por fim, afora todo o conformismo de Altman, para o qual o governo está no limite do possível, encontro em seu artigo uma afirmação verdadeira: há espaço à esquerda do PT. Não para cumprir o papel sugerido por Altman – a saber, a de uma "consciência crítica" do PT – mas para apresentar uma alternativa de poder que considere a hipótese de enfrentamento com os senhores que, há quinhentos anos, determinam os rumos do país. Esse é o bloco histórico do qual o Brasil precisa, e espero sinceramente que nele estejam muitos pós-petistas, que não tendo abandonado a crença de que os trabalhadores podem determinar seu destino, não aceitaram os limites do conformismo que a realpolitik impôs ao PT.