Há dias observava uma profana e deliciosa imagem de Buda com um telemóvel ao ouvido, sentado na vitrine de uma loja de música, de sorriso aberto, obeso e bem disposto. Falava ao telemóvel, no conforto de maléficas capas de CD’s de heavy metal. Induzido em divagações, lembrei-me de alguém que me contara que, dentro dos avanços científicos previstos na literatura, o telemóvel em particular não fora contemplado, pelo menos com as repercussões sociais que veio a provocar e provoca.
Nikola Tesla, inventor, engenheiro elétrico e um futurista, num dos seus artigos artigos em 1915 para o New York Times[1], previra as ligações sem fios a um nível global. Com o devido crédito a este feito no campo da imaginação relativa à evolução da tecnologia, interessam-me sempre mais aqueles que, usando a ficção científica, se orientam para questões das repercussões sociais desse “admirável mundo ”[2]. Na verdade, Tesla, previu algo como o aparelho em si, mas de todo lhe pareciam interessar os efeitos sociais de controlo que essa evolução tecnológica poderia despoletar.
No entanto, nem em Orwell[3], nem em Huxley, se encontra de uma forma evidente um instrumento tão capaz e tão permeável no dia-a-dia dos indivíduos em sociedade, com capacidades de afetar, num espaço temporal tão curto, a forma como nos comunicamos.
O telefone móvel veio a ser um dos mais revolucionários aparelhos da década de 90 e dos anos 2000, que além de nos tornar presentes em qualquer hora e em qualquer local, nos deixou sem desculpas para dar desculpas quando os nossos contactos nos solicitam. Além disso, este encurtou de tal forma as distâncias entre nós, que hoje com a sua sucessão – o Smartphone, somos laureados com o dom da omnipresença, capacidade esta auferida no passado restritamente a seres supra-humanos, como é por ventura o caso de Buda.
O facto de hoje, uns em relação aos outros, sabermos com a maior exatidão o local onde estamos, com quem, com que cara e com que roupa fez reduzir de uma forma estonteante a nossa noção espaço-tempo. Tanto que, tanto nas nossas vidas privadas quanto profissionais, por via Skype estamos em mais em contacto com os nossos amigos, familiares ou empresas do que quando vivíamos perto deles e na realidade (ou na virtualidade), estamos com mais ou menos intensidade perto deles – dá-se o caso de nos comunicarmos menos quando estamos presencialmente com eles do que quando comunicamos quando estamos a milhares de quilómetros de casa, na China ou nas Honduras. Ou quarto ao lado!
Os exemplos do maravilhoso mundo tecnológico, provocam entusiasmo e deslumbramento, até aos mais céticos, e têm capacidades repercussivas na transformação do dia-a-dia em sociedade.
Perante uma revolução tecnológica tão acelerada, célere será também a alteração da forma como nos relacionamos. É compreensível que nós cidadãos comuns não a entendamos pelo facto de não termos distanciamento histórico que nos permita vislumbrá-la à distância mas, essencialmente, pela falta de investimento na observação crítica deste fenómeno nas sociedades contemporânea. Para que nos servirá dar respostas às velhas perguntas se não criarmos novas perguntas para as velhas respostas. Felizmente, muitos de nós aprendemos a duvidar das velhas respostas e, neste caso, das respostas tecnológicas às nossas necessidades, de maneira que lhes colocamos novas perguntas. Queremos saber donde elas vêm, porque apareceram, e quem as proporcionou. E principalmente, quem as controla.
Na análise, de que hoje dispomos, percebemos que estamos muito longe do tão aclamado “fim da história” onde as democracias liberais e o capitalismo de livre mercado, seriam o último estágio na evolução socio-cultural do homem, onde os E.U.A. seriam o modelo de governo a nível global a seguir.
As tecnologias, num mundo onde todos conetados, teríamos acesso a toda a informação e onde o conhecimento seria democratizado, como nos vendem copiosamente os media, reproduzindo propaganda política, são hoje concentradas nas mãos de meia dúzia de corporações de um sistema que convém manter forte. Sinceramente estas não estão a contribuir tanto como se pensa para a mudança do modelo social. Como se sabe “não há almoços grátis”, nem nunca houve na génese deste sistema.
Através dos monitores do Smartphone, do Laptop, do Tablet, onde estamos todos ligados, somos tristemente mantidos sob a janela da propaganda que Orwell foi capaz de imaginar – lembremo-nos do seu 1984, onde o “Big Brother” (Grande Irmão) pelas telas localizadas em todos os espaços possíveis privados e públicos, observavam o indivíduo constantemente, tanto nas ruas, como no carro, como na sala de estar e até enquanto os indivíduos dormiam. Estas telas móveis que usamos hoje, embora mais ao jeito da narrativa de Huxley, na medida em que as aceitamos docilmente no nosso dia-a-dia, também pelas novas necessidades que temos de sermos rápidos e estarmos em todo o lado ao mesmo tempo são guardas constantes dos nossos movimentos. Por meio dos nossos instintos mais básicos somos explorados e mantidos conetados: um exemplo crasso será o modo de como os media nos atraem a atenção para nos tornarem consumidores contínuos pelo erotismo básico ou pela pornografia – lembremo-nos a título de exemplo, nos anos 90, quando a Internet se massificava, era ainda difícil encontrar pornografia, hoje em dia é precisamente o contrário, e o difícil é evitá-la mesmo na barra lateral das nossas caixas de correio eletrónico.
A dependência que temos no quotidiano destas ferramentas, pela capacidade que elas têm de tornar o nosso mundo mais rápido, mais intuitivo, e aparentemente menos cansativo, faz-nos questionar a necessidade do, outrora desejado e imaginado na ficção científica, teleporte físico (esse avanço tecnológico torna-se hoje desnecessário para nos transportarmos, na medida em que o corpo já não é necessário, numa época de realidade virtual, tudo o que precisamos é de fazer o “upload” da nossa identidade para os perfis das redes sociais virtuais – o sistema trata de nos fazer as atualizações, muitas vezes sem que nos demos conta – as redes sociais dizem onde estamos, quando estamos e com quem estamos, não é assim Sr. Zuckerberg?).
Paulatinamente, esta transferência dos espaços físicos para os ciberespaços, é feita através das vivências do mundo real para lá, mas logo-logo se aproxima o tempo, se é que já não chegamos lá, em que as nossas vidas são mais importantes lá do que cá. Plim! Somos até mais reais daquele lado do que do lado dos corpos físicos, senão vejamos de qual lado nos expressamos mais, com opiniões, gostos, emoções e relações profissionais.
O número de pessoas abrangidos pela nossa expressão cresceu de um modo exponencial – hoje não mandamos um postal a cada um dos nossos amigos, mas colocamos uma “selfie” que partilhamos com mil e tal. Como não podemos falar na rua para todos ao mesmo tempo, sob pena de nos mandarem para um hospital psiquiátrico, e como raramente encontramos quem nos ouça, o mundo real fica mais aborrecido e apetecível que nunca. Vai daí, que o corpo passa por ser um empecilho que se desloca a uma velocidade vagarosa e até com necessidades anacrónicas, convém apenas mantê-lo saudável e belo porquanto ele seja necessário para usar na imagem do nosso perfil virtual – o nosso Avatar. Como seres iminentemente sexuais que somos, revestidos de uma pele que é o nosso maior orgão e nos transmite continuamente sinais sexuais e sendo que a satisfação desses prazeres ainda se faz através dos corpos, convém manter uma imagem ideal para encontrar parceiros. Livrem-nos disso! A breve prazo nem de parceiros precisaremos mais e seremos seres completamente individualizados, sem necessidade de troca de fluídos com outros. Os nossos bastar-nos-ão, aliás será que a masturbação foi algum dia tão usada como hoje, que tantos corpos vimos por toda a rede, verdadeiros emuladores das relações sexuais no mundo real? Haverá uma enormidade estudos sobre isso, certo?
Mas impõe-se perguntarmos: quem está do lado de lá a entreter-nos? Sabemos que o monopólio da rede está nas mãos do Google, Facebook, Amazon, E-bay... A quem pertencem os espaços onde nos movemos? Eles não são públicos como as nossas ruas e se vivemos num mundo de espaço privado no lado físico, porque iríamos pensar de que do lado de lá seria diferente? Não serão os mesmos que nos dominam do lado de cá que nos dominarão do lado de lá? E que nos prescrevem um agrilhoamento não do corpo, mas da também da consciência. A polícia do pensamento do 1984 não dispunha de métodos tão sofisticados como estes mas, claro, isso também era uma previsão dos anos anos 40 paro o ano 1984! Entretanto passaram 20 anos...
Por precaução, há que duvidar da falta de ideologia que está por detrás da tecnologia, pois ao continuarmos a crer no avanço “natural” da tecnologia, expomo-nos ao risco de uma ingenuidade que nos custará a liberdade e nos condenará à distopias já esboçadas. Se hoje soa a anacrónico não usar as novas tecnologias, não podemos ignorar que o mercado responde às necessidades das massas, mas impõe-se sabê-las usar: como e de que modo, refletindo sobre a sua evolução no nosso quotidiano e nas capacidades destas, enquanto ferramentas de domínio e manipulação das nossas vidas.
O avanço da tecnologia sem a formação para a questionar, dá livre arbítrio aos engenheiros e técnicos do sistema global. Sem saber para onde vamos ou como vamos, sem uma reflexão social e política neste campo, só nos bastam os pequenos “bugs” do sistema para nos fazer pensar. Ainda bem que há os que preferem profanar as verdades sabgradas.
Notas:
[1] Tesla, NIKOLA, "Nikola Tesla sees a wireless vision", url: http://www.tfcbooks.com/tesla/1915-10-03.htm
[2] Referência à obra de Aldous Huxley, "Admirável Mundo Novo", na qual a sociedade futura viria a ser subordinada, através do avanço tecnológico, pelas classes sociais superiores.
[3] Referência à obra de George Orwell, "1984", marcada por uma perseguição constante da ação e do pensamento todos os indivíduos, por parte do estado.