Há que desconfiar do mais trivial e examinar sobretudo o que parece habitual. No dia 9 de Agosto foi assassinado um jovem afro-americano em Ferguson, Missouri, nos EUA. Não, não é déjà-vu: já aqui escrevi sobre esta notícia, pelo que irão os leitores perdoar-me tão incómoda iteração. Só o nome era diferente. Os meios de comunicação social da classe dominante não cometeram o mesmo erro que eu: perceberam que a história era a mesmíssima de sempre e já não interessava. O guião é sempre igual: Um jovem desarmado a caminho de casa. É interceptado pela polícia por razão nenhuma. Acaba trespassado de balas. Por ser negro. Ao contrário de Trayvon Martin, o nome de Mike Brown não mereceu manchetes nem parangonas, o público já estava habituado à história e, muito sinceramente, farto de a ouvir. Não há, com efeito, pior hábito do que nos habituarmos.
Esta crónica não é sobre estatísticas
Mas estranho seria se, à semelhança dos passavantes do deus-dinheiro, também nós comunistas aceitássemos não repetir as palavras de sempre, quando é sempre tão chocante a repetição dos velhos crimes. Michael Brown está morto. E continuará a morrer com outros nomes ainda mais anónimos enquanto não os soubermos a todos de cor. É por isso que o podem matar. Só desde Janeiro, mais de 400 homens negros foram mortos a tiro pela polícia norte-americana, uma estatística considerada normal no paradigma capitalista de democracia e liberdade. Mas Michael Brown não era uma estatística e esta crónica é sobre ele. Mike tinha 18 anos e na próxima semana entraria pela primeira vez na faculdade, um feito que a mãe, lavada em lágrimas, gritava aos polícias «Sabem como me foi difícil mantê-lo na escola até ao fim? Sabem quantos rapazes negros conseguem entrar na faculdade?». A terrível resposta é menos de 15%, mas não vamos falar sobre isso porque Michael Brown não era uma estatística. Nesse dia, Mike ia a caminho da casa da avó num subúrbio operário da cidade quando um carro de patrulha estacionou ao seu lado e o mandou parar, uma rotina em Ferguson, onde 87,5% de todas as pessoas que a polícia manda parar são negros. Mas como esta crónica não é sobre estatísticas, vamos seguir adiante. Agora sabemos que Michael não era suspeito de qualquer crime, mas mesmo assim os polícias quiseram revistá-lo: mais um número para os 92.3% de negros entre as pessoas revistadas pela polícia em Ferguson. Afinal se calhar há uma pequena parte de estatística sobre esta crónica. Segundo várias testemunhas, Michael recusou-se a ser interrogado e revistado. Nessa altura, um polícia tentou empurrá-lo para dentro do carro. Michael conseguiu libertar-se e correu. Então, o polícia disparou um tiro certeiro, que atingiu o jovem pelas costas. Tudo isto aconteceu pelas duas da tarde e as várias testemunhas são unânimes sobre o que se seguiu: quando recebeu o disparo, Michael levantou os braços para se render mas o polícia saiu do carro e, a uma distância de menos de dez metros, alvejou novamente Michael Brown. Mais sete vezes. Sobre a identidade do polícia assassino conhecemos apenas a cor da pele: era branco como 94% dos polícias de uma cidade 67% negra. Esta crónica não é sobre estatísticas, é sobre o Michael Brown, mas foram as estatísticas que o mataram.
À flor da pele
À hora do fecho desta edição, os comentadores dos grandes noticiários norte-americanos perguntavam em indignado coro porque é que os negros do Missouri estão a pegar fogo às ruas. Como até aqui ainda só pudemos repetir estatísticas que toda a gente já conhece, faremos o obséquio de lhes responder à pergunta. Ferguson arde porque o corpo de Michael ficou horas descoberto no meio da estrada e porque, quando uma vigília se juntou com fotografias e velas nas mãos, chegaram mais de duzentos polícias de choque, com cassetetes e caçadeiras nas mãos. St. Louis arde porque em 2014 crianças e adolescentes negros são assassinados pela polícia que lhes despreza a vida. O Missouri arde porque sempre que mais um jovem afro-americano é assassinado por este sistema desumano e estruturalmente racista, os media encarregam-se de criminalizar a imagem da vítima. Os EUA ardem porque, escreveu-o Martin Luther King Jr. semanas antes de ser ele próprio assassinado, «a revolta é a linguagem dos que não têm voz». Está embargada de lágrimas, de tanta injustiça e tão velha opressão.