Não sou economista. Fiz mestrado na área de Economia, o que me permitiu entender alguns fundamentos bem básicos do assunto. Dito isso, me sinto a vontade para não falar “economês”, língua na qual me considero apenas parcialmente alfabetizada. Tentarei identificar um problema no discurso vago que às vezes a esquerda adota sobre a inflação no Brasil hoje.
Entre 1944 e 1979, vigorou no sistema capitalista mundial o Acordo de Breton-Woods, que estabeleceu uma ordem monetária pactuada no lastro ouro-dólar e criou instituições econômicas que padronizavam os meios de reconstrução das nações destruídas pela Guerra. Keynes entrou na moda: por toda parte, ampliavam-se os gastos dos governos com argumentos desenvolvimentistas em defesa do fortalecimento de mercados internos e das indústrias nacionais. Para isso, os Estados recebiam empréstimos do FMI e do BM. Em suma, Breton-Woods era um acordo que refletia os traumas da crise de 1929 e, ao mesmo tempo, garantia a hegemonia do dólar na reconstrução econômica do pós-Guerra.
Em 1971, John Connally, secretário do Tesouro de Richard Nixon, anunciou uma ruptura com a ordem de Breton-Woods: “a moeda é nossa, o problema é de vocês”, disse - frase que se tornaria uma das mais repetidas por professores de economia de toda parte. Com isso, anunciava uma quebra da estabilidade monetária mundial, acelerada pelo chamado choque Volcker. Em 1979, Paul Volcker, presidente do Fed, iniciou um aumento recorde das taxas de juros, desvinculando os valores monetários do lastro do ouro. Seu objetivo foi plenamente atingido: transformar o dólar na moeda-lastro de todas as moedas do mundo, sem que dependesse de uma força material limitadora (o ouro). Eureca! Depois que os Estados ao redor do mundo ampliaram seus gastos obtendo empréstimos em dólar, endividando-se, portanto, em dólar, este se valorizava de modo sem precedentes, tornando-se uma poderosa arma de submissão das nações. Com a quebra do lastro, os Estados Unidos converteram o Fed em uma espécie de Banco Central do mundo, pois ao contrair ou expandir a quantidade de dólares, arrastavam consigo a valorização e desvalorização de todas as outras moedas, à revelia dos Estados nacionais.
Nesse meio tempo, em 1976, Milton Friedman, economista da Universidade de Chicago, ganhou o prêmio Nobel. Nesta mesma Universidade, trabalhavam sob seu comando os chamados Chicago Boys, formuladores do programa econômico aplicado pioneiramente pelo regime militar de Pinochet no Chile. Friedman ressuscitou e atualizou, na teoria econômica, os princípios do liberalismo radical. O que hoje chamamos de tripé neoliberal (superávit primário, câmbio flutuante e meta de inflação gerenciada pela taxa de juros) foi o centro da doutrina que o tornou canônico. Mas Friedman foi particularmente obsessivo com o tema da inflação: defendia uma “inflação zero”, alegando que esta seria o maior inimigo da saúde dos mercados. Essa obsessão se tornou uma verdadeira apologia do desemprego. Para alcançar sua “inflação zero”, o desemprego era uma necessidade macroeconômica. Como justificativa, o Nobel de economia fundou a perversa ideia de “taxa natural de desemprego”.
Com a ruptura de Breton-Woods, o dólar atravessou simultaneamente uma valorização cambial e uma alavancagem financeira gerada pela alta dos juros. Junto com os choques do petróleo, isso explica os principais problemas econômicos do Brasil nos anos 1980. A valorização do dólar fez colapsar o poder de mercado das moedas brasileiras, gerando depreciações astronômicas do dia para a noite (hiperinflação). A desvalorização da moeda dificultava muito o pagamento da dívida dolarizada do Estado brasileiro (crise da dívida). Literalmente, a crise da dívida e a hiperinflação eram duas faces da mesma moeda!
Mas os grandes credores do capitalismo e seus teóricos já tinham formulado a receita para “sanar” a crise dos países endividados. Em 1989, o Consenso de Washington formalizou dez regras de política econômica defendidas pelas instituições financeiras mais poderosas do mundo, com base na doutrina de Friedman. Seriam elas: disciplina fiscal; redução dos gastos públicos; reforma tributária; juros de mercado; câmbio de mercado; abertura comercial; investimento estrangeiro direto, com eliminação de restrições; privatização das estatais; desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas); e direito à propriedade intelectual.
No Brasil, com a transição democrática conservadora em curso, foram dados passos nessa direção a partir da abertura comercial desastrada de Collor. Quando FHC assumiu a presidência, aplicou disciplinadamente o Consenso. O câmbio tornou-se flutuante em 1999, depois que o Plano Real já parecia ter conquistado razoável estabilidade e a alta taxa de juros, contido a hiperinflação.
Toda essa retrospectiva foi feita para chegarmos aqui: os regimes de meta de inflação nasceram da doutrina Friedman e constituem parte importante do pacote neoliberal, perpetuado pelos governos do PT. Por isso, quando a esquerda engrossa o coro dos comentaristas econômicos da grande imprensa sobre a “inflação alta” no governo Dilma, está confusamente se unindo a pressupostos conservadores. Além disso, a inflação de 6,5% em 2013 não é historicamente alta, mas é alta para os padrões neoliberais (ver gráficos abaixo). Criticar a incapacidade do governo para atingir a meta de inflação tem sido uma retórica fácil, tipicamente direitista e eleitoreira - pauta chave dos tucanos para a disputa. À esquerda não convém repeti-la de maneira irrefletida. A teoria oculta desse discurso é a “inflação zero” e a “taxa natural de desemprego” de Friedman. A política correspondente é um ajuste neoliberal: enrijecer o regime de metas de inflação e elevar novamente os juros.
Para evitar essa pequena confusão, é importante diferenciar inflação e de alavancagem financeira. A primeira reflete mais diretamente a realidade material da economia. Entre os motivos de alta da inflação, podem estar dados positivos ou negativos: por exemplo, o aumento real do salário mínimo, a queda do desemprego (também desejados pela esquerda) ou a pressão exercida pelo consumo de luxo das elites sobre os preços em geral (decorrente da segregação social). Já a alavancagem financeira, mais conhecida como “bolha”, reflete o jogo de apostas da bolsa de valores, essa grande mesa de pôquer que absorve a liquidez do mundo. A especulação em nada se relaciona com melhorias na vida da população. É a expressão mais bruta da natureza do sistema capitalista, reflete somente a ganância das classes rentistas por mais concentração de riqueza e poder. Ainda que inflação e alavancagem financeira possam gerar consequências similares, como o aumento dos custos de vida da classe trabalhadora, estes processos representam diferentes dados da realidade, às vezes com causas opostas.
Não por acaso, a mesma direita obsessiva com a meta de inflação, nunca critica a especulação, que costuma chamar carinhosamente de “crescimento do mercado”. Pode parecer contraditório, mas o regime de meta de inflação (que pretende reduzi-la ao máximo) garante, precisamente, as condições confortáveis para a alavancagem financeira devido aos altos patamares de juros. Essa aparente contradição pode levar a esquerda a mirar um problema e atingir o outro, que representa processos sociais mais complexos.
Nesse sentido, considero fundamental que a esquerda não critique genericamente a “inflação alta”, pois isso engrossa um conjunto de pressupostos neoliberais que a própria esquerda pretende combater. É preciso ter em vista que a busca por uma sociedade igualitária é também um potencial gerador de inflação. Ao invés disso, é interessante centrar fogo em todos os componentes da especulação financeira: a curva ascendente da taxa Selic, o crescimento dos gastos da União com os juros da dívida pública, o aumento dos lucros dos bancos, a especulação imobiliária, a ganância rentista da burguesia brasileira. Do contrário, estaremos criticando um sintoma (a inflação) sem qualificar quais são as suas múltiplas causas, dentre as quais podem estar incremento do padrão de consumo da população. (Basta lembrar que a inflação na Venezuela tem atingido patamares superiores a 60%). E assim, evita-se um coro com os mais nefastos dogmas econômicos do nosso tempo, colocando-os na sua devida posição: de vidraça.