Energia Nuclear? Não, obrigado!
Recentemente, James Hansen, cientista líder nas pesquisas sobre mudança no clima e ativista climático que inspirou a frase que dá nome a este blog fez, lamentavelmente, uma movimentação de defesa da "energia nuclear segura", como via para salvar o clima global da desestabilização que inevitavelmente emergerá como resultado da continuidade da queima de combustíveis fósseis como principal fonte energética. Com isso, ele se une a outras vozes proeminentes, como James Lovelock que, partindo da premissa correta de que "a mudança climática é o maior perigo que a humanidade já vivenciou", conclui erroneamente que ela "tem de usar a energia nuclear", na sua opinião a "única fonte de energia segura disponível". Ora, ainda que a estratégia de saída da crise climática possa criar dificuldades para a rápida abolição do uso da fissão nuclear, é evidente que a expansão desse setor é algo simplesmente inaceitável. Infelizmente, porém, o falso "verde criptonita" da energia nuclear está longe de ser a única falsa alternativa tecnológica com poder de sedução sobre a comunidade científica, incluindo alguns de seus mais proeminentes representantes.
Sim, a mudança climática é a maior ameaça global à civilização humana. Se não for detida, ela se imporá, de forma profundamente deletéria, privando ainda mais pessoas de água, comida e moradia. Ela já se manifesta, e se manifestará de forma muito mais forte, na forma de eventos severos como ondas de calor mortais, furacões inauditamente intensos, tempestades extremamente intensas, cheias e inundações, secas prolongadas e devastadoras, quanto mais a atmosfera do planeta contiver gases de efeito estufa em excesso. Trata-se não de um discurso catastrofista, mas de uma consequência direta das leis da Física (Lei de Stefan-Boltzmann, equação de Clausius-Clapeyron, etc.). Mas como se trata de um problema global, sistêmico, não pode encontrar solução na base de remendos.
Sabe-se que a energia nuclear está longe de ser uma fonte "segura". O recente acidente de Fukushima é uma prova de que não é possível eliminar os seríssimos riscos ao ambiente e à saúde humana e que o número de acidentes só tenderia a aumentar caso mais usinas nucleares sejam construídas mundo afora. É a lei das probabilidades... Além disso, os recursos necessários não são renováveis e a mineração envolve uso significativo de água e apresenta sérios problemas ambientais em sua extração (vide os acontecimentos recentes aqui mesmo no Brasil, na mina de Caetité e que deveriam servir de alerta para outras iniciativas dessa natureza, como Itataia, no Ceará). A energia nuclear não é uma tecnologia "neutra", que possa simplesmente ser colocada a serviço da maioria da população, livrando-a dos riscos e dos rejeitos, do caráter centralizado, da tentação belicista, etc.
O Canto de Sereia dos Transgênicos
Da mesma forma, é tenebrosa a perspectiva de alimentar a humanidade com base numa produção agrícola em moldes "industriais", com organismos geneticamente modificados cujo genoma e sementes são monopólio de empresas como a Monsanto. Primeiro, porque tecnicamente esse "agrofordismo" apenas enxerga a adaptação, isto é, visa gerar variantes de culturas que possam ser mais resistentes ao aumento de temperatura e mudanças no regime de precipitação e finge ignorar o fato de que essa forma de produção agrícola demanda uso intensivo de fertilizantes nitrogenados (principal fonte de emissão de óxido nitroso, ou N2O, terceiro gás de efeito estufa de origem antrópica em importância) e outros químicos e que a monocultura e o latifúndio, juntamente com os monopólios da genética não cansam de esmagar as populações trabalhadoras do campo, os povos tradicionais e indígenas.
Por exemplo, lamentamos que Marcos Buckeridge, professor do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP) e um dos autores do capítulo 27 do relatório do IPCC sobre Impactos, Adaptação e Vulnerabilidade tenha declarado, recentemente, à Agência FAPESP, abordando a questão da ameaça à segurança hídrica e alimentar na América do Sul: "Não terá como aumentar a produção da maioria das espécies de vegetais por meio da genética clássica", disse Buckeridge. "Será preciso utilizar a biotecnologia para transformar as plantas de modo que produzam mais alimentos e sejam mais bem adaptadas às mudanças climáticas".
A lógica parece simples, pois com temperaturas mais elevadas e mudanças nos padrões de precipitação, que podem implicar em mais chuva ou menos chuva, determinadas culturas agrícolas podem vir a se tornarem impraticáveis nas atuais condições de plantio. A fisiologia vegetal pode simplesmente não ser adaptada a temperaturas mais altas nem a períodos mais longos de estiagem ou mesmo a condições mais úmidas, fungos e outras pragas que não proliferam nas atuais condições podem vir a encontrar um ambiente mais favorável em condições mais quentes e úmidas, por exemplo, ou mesmo a tendência a mais eventos extremos, com chuvas mais concentradas, alternadas com períodos de estiagem mais longos, pode trazer impactos negativos sobre as culturas, ainda que as condições médias de temperatura e precipitação continuassem dentro de um intervalo que, a princípio não as comprometeria. No entanto, como veremos, assim como a opção nuclear no terreno da energia, essa perspectiva para a agricultura também traz diversos problemas, desde curto até longo prazo. Ainda que o consumo fosse inteiramente seguro do ponto de vista da saúde humana, o nomopólio privado sobre o patrimônio genético e a estreita ligação entre transgenia, monocultura, latifúndio, devastação ambiental e conflito social já seria suficiente para evidenciar que os organismos geneticamente modificados não são nem de perto "solução" aceitável.
A Terra no Torno Mecânico?
No entanto, o que considero ainda mais grave são os flertes com soluções pretensamente milagrosas de "conserto do clima" genericamente denominadas "geoengenharia". Para os que não são familiares com o termo, trata-se de alterações planejadas, intencionais, em grande escala, no sistema-Terra, capazes de alterar substancialmente seu balanço de energia de modo, supostamente, a compensar efeitos deletérios de alterações inadvertidas, não intencionais, nesse mesmo sistema.
O problema, aí, é que o sistema climático é fortemente não-linear e sua resposta frequentemente está longe de ser diretamente proporcional ao "cutucão". Se retroalimentações positivas dominam (o que é o caso precisamente do aumento da concentração de CO2 na atmosfera, cujo efeito direto é amplificado pelos feedbacks do vapor d'água, do gelo-albedo, do permafrost, etc.), o efeito é, traduzindo de maneira simplificada, desproporcionalmente grande em relação à causa. É como uma pedra, no topo de uma montanha, que ao mais leve empurrão rola ladeira abaixo. Em contrapartida, se retroalimentações negativas forem mais importantes, mesmo uma ação muito intensa pode resultar em um resultado pequeno. É o caso oposto, em que se tente remover a pedra de um vale. A não ser que o empurrão seja realmente muito forte, a fim de vencer a elevação ao redor dela, a tendência é a de a pedra simplesmente rolar de volta à posição original (em Física, são as condições conhecidas, respectivamente como "equilíbrio instável" e "equilíbrio estável").
Muitas vezes, a prática da medicina é criticada quando a administração de um determinado medicamento para curar uma enfermidade termina, por conta de efeitos colaterais (especialmente em casos de uso continuado), levando a outros problemas de saúde. Mas qualquer analogia com a geoengenharia é injusta para com a medicina. Mesmo com o controle exercido pela indústria farmacêutica (cujo objetivo último é o lucro e certamente é favorecida A geoengenharia, sim, pode vir a ser uma prática absolutamente irresponsável e inconsequente.
Para que façam algum sentido na tentativa de deter o aquecimento global, os projetos de geoengenharia precisam mexer no balanço energético planetário, isto é, na forçante radiativa. Em tese, há dois caminhos possíveis aí: o primeiro, remover CO2e/ou outros gases de efeito estufa, a fim de reduzir, para patamares anteriores, o aprisionamento de radiação infravermelho no sistema-Terra; o segundo, reduzir a quantidade de radiação solar que chega à superfície.
Na primeira linha (remoção de CO2), há proposições bizarras, para dizer o mínimo, como a "fertilização" dos oceanos (utilizando compostos de ferro, como sulfato ferroso) em regiões em que o fitoplâncton não se desenvolve, ainda que haja nutrientes em abundância, por carência desse mineral. Além de experimentos terem apontado para uma baixa eficiência desse processo, efeitos potencialmente negativos da fertilização por ferro incluem o aumento da produção de metano e óxido nitroso (que são gases de efeito estufa mais potentes do que o CO2), a redução do conteúdo de oxigênio em águas intermediárias e um desequilíbrio no ecossistema marinho por conta do crescimento desordenado do fitoplâncton, podendo levar a condições tóxicas para outros organismos, com reflexos em cadeia por toda a teia alimentar. Efeitos virtualmente imprevisíveis sobre as nuvens também são esperados, com emissões de DMS (deimetilsulfureto) e isopreno (que funciona como precursor do ozônio) interferindo no campo de aerossóis.
A outra via chega a ter malabarismos ainda mais exóticos e igualmente potencialmente desastrados. Para diminuir a quantidade de radiação solar absorvida pela superfície, as propostas vão desde aumentar o albedo (isto é, a relação entre a quantidade de radiação refletida e incidente, seja da superfície ou acima) até impedir mesmo que parte da radiação solar chegue à atmosfera terrestre.
Alguns propõem aumentar a refletividade das nuvens, mas via de regra isso só é obtido aumentando a quantidade de aerossóis em sua formação e, portanto, de gotículas nelas contidas. Acontece que isso não apenas muda a refletividade das nuvens (com mais gotículas, elas refletem mais luz e se tornam mais "brilhantes"), mas também o seu tempo de vida e a sua eficiência na produção de precipitação (diga-se de passagem, os "efeitos indiretos dos aerossóis", isto é, as mudanças inadvertidas que já ocorrem nas propriedades das nuvens devido ao aumento da quantidade de partículas em suspensão produzidas pelas atividades humanas, são ainda a principal fonte de incerteza na estimativa da forçante radiativa, conforme documentado nos relatórios do IPCC).
Outros advogam a ideia de nanopartículas refletoras ou espelhos em órbita, ou mesmo poeira espacial, produzida - veja só - através de um bombardeio nuclear à lua!
Estudos de modelagem climática mostram, porém que a redução da radiação solar nunca poderá ser encarada como um antídoto ao aumento do efeito estufa, pois ainda que as mudanças de temperatura média global sejam compensadas, alterações regionais podem persistir e modificações nos padrões das chuvas podem aparecer.
De fato, a velocidade do ciclo hidrológico global pode ser afetada pela redução da radiação solar incidente, levando a uma diminuição da precipitação. O trabalho de Bala et al., publicado no PNAS (Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA) mostra que a sensibilidade do ciclo hidrológico à radiação solar e ao CO2 é diferente e que ao se reduzir a radiação solar, a fim de contrabalançar o efeito de aquecimento de uma duplicação da concentração deste gás, a precipitação global se reduziria em 2%, com diminuições mais significativas em regiões de monção.
Para completar, as pretensas alternativas de geoengenharia escondem uma realidade perversa: a de que, uma vez que essas medidas sejam iniciadas, a sua interrupção poderia levar a mudanças climáticas ainda mais velozes (na verdade, muito mais velozes e, portanto, danosas) do que as que assistimos. Alterações abruptas podem simplesmente atropelar qualquer política de adaptação que tenha sido implementada, naturalmente com impactos bem mais fortes onde a vulnerabilidade é maior, isto é, sobre as populações pobres dos países pobres. O artigo de McCusker et al. mostra que o aquecimento associado a emissões elevadas até poderia ser compensado por um "gerenciamento da radiação solar" (SRM, da sigla em inglês "solar radiation management"), mas a partir do momento em que este fosse suspenso, o sistema climático tenderia a ajustar bruscamente sua temperatura ao enorme desequilíbrio energético. Ou seja, a geoengenharia, com todos os seus efeitos colaterais e custos, teria de ser mantida indefinidamente, para evitar efeitos absolutamente catastróficos. O clima seria tratado como um paciente ligado a aparelhos.
Tanto na primeira quanto na segunda linha, portanto, as propostas de geoengenharia se baseiam em uma linha de raciocínio que ignora efeitos pouco previsíveis e consequências de mais longo prazo. Chega a ser espantoso que, com as grandes incertezas associadas aos possíveis impactos de aplicação de medidas de geoengenharia climática, ainda haja alguns que se lhe tornem entusiastas. O contraste é evidente com a inação quanto à necessária redução drástica das emissões, abandono das fontes fósseis de energia e diminuição geral da demanda energética e do ritmo de produção e consumo de mercadorias. Quem precisa entrar no torno mecânico (ou melhor, ser revolucionado em suas estruturas) não é o ecossistema global e o sistema climático planetário, e sim a sociedade humana.
Pensar Para Além do Capital
É por esses motivos que a comunidade científica do clima, que tem feito um trabalho muito importante no esclarecimento dos riscos associados às alterações climáticas e, portanto, deixado evidente a necessidade de mudanças profundas na produção de bens materiais e na organização da sociedade humana (a começar, mas evidentemente não se limitando a isso, pela fonte principal de energia, que hoje são os combustíveis fósseis). Nesse contexto, as várias formas de concessão ou rendição, seja à energia nuclear, ou à transgenia ou à geoengenharia têm um traço comum: a incapacidade de se enxergar além da sociedade do capital, dominada pela lógica da produção perdulária, do crescimento sem limites e do consumo desenfreado. E, claro, o grande capital agradece.
Há segmentos capitalistas que, para além da fraude do "mercado de carbono", veem a brutalidade do risco climático como oportunidade para maximizar seus lucros. Um novo ciclo de crescimento da energia nuclear, falsamente apresentada como alternativa aos combustíveis fósseis; a farsa dos transgênicos como alternativa para "alimentar o mundo", num contexto de tendência de queda da produtividade agrícola e, sobretudo, as propostas tresloucadas de espremer a Terra numa chave de rosca não interessam às maiorias, nem a curto nem a longo prazo. São a tentativa de um sistema, que já é parasitário (de trabalhadoras e trabalhadores e da natureza), passar a necrófago e se alimentar de uma sociedade mais desigual e mais violenta se debatendo contra um clima hostil e um ambiente global degradado. O movimento ambientalista, a comunidade científica e a ampla maioria das pessoas (os pobres das cidades, os habitantes dos países-ilha, as camponesas e camponeses, indígenas, trabalhadores e trabalhadoras, etc.) precisam rechaçar essa lógica e propor uma outra: o fim dessa sanha de consumismo, acumulação e crescimento indefinidos.
A crise climática é a maior, mais perigosa e mais clara manifestação do rompimento do metabolismo entre a sociedade humana e o restante da natureza no contexto da produção de bens materiais/mercadorias, que, dentre outros rejeitos (lixo, água contaminada, fuligem e outros aerossóis, resíduos da fissão nuclear, etc.), produz gases de efeito estufa de vida longa, principalmente CO2, que se acumulam na atmosfera. E é por isso que a resolução dessa crise precisa ser global e sistêmica.
Não há como resolver de maneira duradoura a crise ecológica global (e a crise climática em particular) sem tratá-la de forma sistêmica e ignorando que ela está imbricada por inteiro na lógica combinada de acumulação, hiperprodução, criação de falsas necessidades, obsolescência programada, etc. Chega a ser estranho que alguns falem do "crescimento populacional" como um grave problema ecológico e "esqueçam" de que a demanda energética cresce muito mais aceleradamente (impulsionando o crescimento, claro, das emissões de gases de efeito estufa) do que a população e, ao contrário desta, não dá indícios da possibilidade de estabilização. É evidente que a biosfera terrestre é incapaz de sustentar uma população humana que cresça indefinidamente, mas é muito mais óbvio que ela é incapaz de sustentar um modo de vida baseado em consumismo, uso de recursos não renováveis e com transporte de pessoas e mercadorias e geração de energia elétrica baseada em combustíveis fósseis. E é essa organização social que precisa perecer.