No dia 25 de Abril de 1974, um golpe levado a cabo pelo Movimento das Forças Armadas (MFA), em discórdia com a guerra colonial que durava há treze anos, em Moçambique, Guiné e Angola, põe fim à ditadura portuguesa. Tinham sido 48 anos de ditadura, primeiro sob a direcção de António Salazar e — depois de 1968 — sob a chefia de Marcelo Caetano. De imediato, e contra o apelo dos militares que dirigiram o golpe — que insistiam pela rádio para as pessoas ficarem em casa —, milhares de pessoas saíram de suas casas, sobretudo em Lisboa e Porto, e foi com as pessoas à porta, a gritar «morte ao fascismo», que no Quartel do Carmo, em Lisboa, o Governo foi cercado; as portas das prisões de Caxias e Peniche abriram-se para saírem todos os presos políticos; a PIDE/DGS, a polícia política, foi desmantelada; atacada a sede do jornal do regime A Época e a censura abolida.
No dia 28 de Abril, três dias depois do golpe, os moradores do bairro social (pobre) da Boavista ocupam casas vagas e recusam-se a sair, apesar de intimados pelos militares e pela polícia; os bancários começam a controlar a saída de capitais dos bancos a partir do dia 29 de Abril e montam piquetes às portas destes; no mesmo dia, os empregados de escritório ocupam o sindicato (os sindicatos estavam limitados na sua liberdade durante a ditadura e as suas direcções eram pró-regime) e expulsam a direcção; no dia seguinte, vários sindicatos ocupam o Ministério das Corporações e Segurança Social, que passa a chamar-se Ministério do Trabalho; nesse dia, 10 000 estudantes reúnem-se em plenário no Instituto Superior Técnico, a escola superior de engenharia mais importante do país, e os trabalhadores da construção civil demitem a direcção do sindicato e ocupam a sede. Começa a greve na Transul, empresa de transportes, e é formado o Movimento de Libertação da Mulher (MLM).
Uma semana depois, a manifestação do 1.º de Maio — que passa ser o Dia do Trabalhador — reúne cerca de meio milhão de pessoas em Lisboa. Participaram na manifestação um milhão de portugueses para ouvirem 200 oradores em todo o País. As ocupações de casas sucedem-se. Nos primeiros quinze dias de Maio há greves, paralisações e nalguns casos ocupações em dezenas de fábricas e empresas. Várias manifestações, dirigidas sobretudo pela esquerda radical, condenam a guerra colonial. Tinha começado a revolução portuguesa, uma revolução num país da Europa ocidental, a meio da década de 1970, no espaço geo-estratégico da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte). Foi para todos, no país e no estrangeiro, uma surpresa.
O império português ruiu tarde, em 1974, depois de ter mobilizado quase dois milhões de trabalhadores forçados (nas minas de África do Sul, plantações de algodão de Angola, entre outras culturas) e uma guerra de treze anos — 1961-1974 — para impedir a Independência dos países africanos Angola, Cabo-verde, Moçambique, Guiné Bissau.
Erguida para construir os monopólios, disciplinando a força de trabalho, a ditadura portuguesa caiu nas mãos dos trabalhadores em Abril de 1974 e, em Março de 1975, uma parte importante dos donos desse grupos teve que fugir do país depois de uma expropriação estatal que visava pôr fim ao controlo operário, que se tinha generalizado a partir de Fevereiro de 1975, sobretudo na banca, grandes empresas metalomecânicas, entre outras. A estrutura anquilosada do império — e do seu regime bonapartista — levou à ruptura social mais importante da Europa do pós-guerra: foi tão grande a queda quão longeva fora a sua duração, de tal forma que nenhum historiador até hoje conseguiu determinar quantas reuniões de trabalhadores houve só na primeira semana que se seguiu ao golpe do MFA, porque foram centenas, talvez milhares[1], em todo o País.
Império anacrónico, brutal nas colónias, congelara a mobilidade social da metrópole e pouco oferecia aos seus jovens — um milhão e meio de pessoas emigraram do País, sobretudo para a Europa central entre 1960 e 1974— até conduzir o Estado Português à beira do colapso, militar e financeiro. Para pôr fim à guerra um movimento de capitães deu um golpe militar no dia 25 de Abril de 1974. O golpe militar deu-se com escassa resistência, contabilizando-se, no total, quatro mortos, alvos dos disparos da polícia política sitiada. Contudo, os escassos mortos na metrópole só se compreendem à luz de um exército dividido pelo horror da guerra colonial: seria como que a prenda que os povos africanos, nas revoluções anti-coloniais, deram a Portugal. Os africanos pagaram com sangue durante 13 anos a crise do exército, que assim se viu incapaz de reprimir as populações em Lisboa, em 1974 e 1975. Hipótese histórica colocada pela III Internacional – chegaremos a Londres via Deli! – foi exemplarmente realizada em Portugal. E chegou-se longe, partindo de África. Em 1975, o assunto principal que se discutia em todas as chancelarias ocidentais era, depois do Vietname, a revolução portuguesa, cuja possibilidade de alastar à Espanha franquista e à Grécia dos coronéis levou a administração norte-americana a temer um “mediterrâneo vermelho”, para usar as palavras de Gerald Ford.
A queda do regime deixava para trás um país colonialista europeu, com uma estrutura social que combinava uma indústria pujante, uma burguesia que dava os primeiros passos na internacionalização, e um povo mantido a baixos salários, ignorância e atraso. Lembraram que Portugal era então uma espécie de “Albânia atlântica” onde: “O divórcio é reprimido, onde há (muitos) livros, filmes e canções proibidas, onde todas as artes são censuradas, onde a comunicação social é amordaçada, onde muitas crianças andam descalças, onde a maior parte da população não dispõe de frigorífico, telefone, televisor ou casa de banho, onde não se pode dizer piadas sobre as autoridades ou criticar o poder, onde não há direito de manifestação ou greve, ou é preciso licença para ter isqueiro ou transístor a pilhas, onde a agricultura se faz com charruas medievais e tracção animal, onde o movimento rodoviário se encontra pejado de carroças e carros de bois, onde o pronto-a-vestir é quase inexistente, onde a Coca-Cola é de contrabando, onde a polícia política exerce a tortura nas prisões, onde não há autoestradas nem… eleições”.
A revolução portuguesa tem quatro características determinantes que podem ajudar a explicar o alcance da disrupção social, com uma dimensão de controlo operário e disrupção do processo de acumulação inusitados nesta região, neste período:
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É um processo que nasce de uma derrota militar de um Exército regular por movimentos revolucionários guerrilheiros apoiados nos camponeses da Guiné-Bissau, Angola e Moçambique;
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Essa derrota combinou-se com a mais grave crise económica do capitalismo do pós-guerra, iniciada em 1973. As medidas contra-cíclicas de encerramento de fábricas e empresas levam a despedimentos; a reacção a isso, em 1974-1975, vai ser a generalização da ocupação de fábricas e empresas (em 1977 estavam registadas mas de 300 empresas em auto-gestão e mais de 600 cooperativas).
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É marcada pelo protagonismo do movimento operário;
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É marcada pelas especificidades desse mesmo movimento operário português, caracterizado pela sua juventude (grande massa de jovens camponeses recém-qualificados que vão do campo para a cidade na década de 1960), pela desorganização política e sindical e a sua concentração na cintura industrial de Lisboa, capital do país. A não existência de organizações livres e democráticas de trabalhadores, um calcanhar de Aquiles do movimento operário português durante o Estado Novo, foi concomitantemente parte da radicalização da revolução — a ausência destas organizações na maioria das fábricas e empresas do País determinou a abertura espontânea de um espaço onde surgiram as comissões de trabalhadores.
Assim, aquilo que começou a 25 de Abril como um golpe de Estado, encetado como uma revolução política democrática (que muda o regime político), foi efectivamente a semente de uma revolução social (que imprime mudanças nas relações de produção). O sujeito social — os trabalhadores — em marcha pela liberdade política preparou e deu esse salto, de uma revolução democrática para uma revolução social num único processo, tal como Trotsky havia analisado na teoria da revolução permanente. Esta revolução democrática não esperou sequer pelas eleições para a Constituinte, que seriam realizadas 1 ano depois do golpe, a 25 de Abril de 1975. Em poucos dias ou semanas, em Abril e Maio de 1974, foi quase totalmente desmantelado o regime político da ditadura e substituído por um regime democrático. Esta foi a última revolução europeia a colocar em causa a propriedade privada dos meios de produção. Isso resultou na transferência, segundo dados oficiais, de 18% do rendimento do capital para o trabalho, o que permitiu o direito ao trabalho, salários acima da reprodução biológica (acima do “trabalhar para sobreviver”), acesso igualitário e universal à educação, saúde e segurança social. Foi também a última revolução europeia onde se desenvolveu o controlo operário de forma extensa. Existiu mesmo uma ampla discussão e confronto mesmo entre a autogestão (os trabalhadores serem “donos” da fábrica) e o controlo operário (o questionamento total da produção e a recusa em “gerirem a anarquia capitalista e serem patrões deles próprios”, para citar documentos da época). A autogestão dominou nas pequenas empresas descapitalizadas; o controlo operário, nas grandes empresa e fábricas.
A extensão da divisão da sociedade em classes sociais e a consciência dessa divisão, em 1974 e 1975, tem uma dimensão histórica. Os trabalhadores viam-se como tal, tinham orgulho nisso. Banalizou-se a palavra socialismo, generalizou-se a crença na possibilidade de mudança.«García Márquez aterrou no aeroporto da Portela no primeiro dia de junho de 1975, proveniente de Roma. “Tive a sensação de estar a viver de novo a experiência juvenil de uma primeira chegada. Não só pelo verão prematuro em Portugal e pelo odor a marisco, mas também pelos ventos e pelos ares de uma liberdade nova que se respiravam por toda a parte (…).” Garcia Márquez descreve uma Lisboa — a quem chama «a maior aldeia do mundo», pela intensa vida social e socializante que nela se vivia — cidade militante, cidade que não dorme: «Toda a gente fala e ninguém dorme, às quatro da manhã de uma quinta-feira qualquer não havia um único táxi desocupado. A maioria das pessoas trabalha sem horários e sem pausas, apesar de os portugueses terem os salários mais baixos da Europa. Marcam-se reuniões para altas horas da noite, os escritórios ficam de luzes acesas até de madrugada. Se alguma coisa vai dar cabo desta revolução é a conta da luz.»[2]
Quem estava em Lisboa logo quando se dá o golpe, era Manuel Vazquez Montalban. Futuro escritor de renome mundial, escrevia então crónicas para o TeleExpress, de Barcelona, quando ainda em Espanha durava a noite franquista:«Paco Ibañez, Patxi Andion e a nova canção catalã estão presentes na rádio e na televisão e o mesmo se pode dizer dos políticos e intelectuais democratas espanhóis que afluem a Portugal movidos por um slogan: «Esta é primeira revolução a que podemos ir de carro.» Se o turismo de lazer era uma da primeiras fontes de divisas no Portugal fascista, o turismo político vai substituí-lo no Portugal democrático (…) os hotéis enchem-se de voyeurs da liberdade»[3].
É provavelmente um dos raros momentos na história deste país (também aconteceu com sectores do movimento operário durante uma parte da I República), em que os trabalhadores, em largas camadas, tiveram orgulho em sê-lo. Ou seja, existia força social para impor uma cultura que questionasse a ideologia hegemónica do trabalhador como alguém que trabalha porque há outros — muito inteligentes — que gerem por eles a produção: a ideologia das “empresas criam empregos”. Isto foi totalmente invertido na revolução: o trabalhador ganhou a centralidade cultural que corresponde ao seu papel económico.
Pela extensão da dualidade de poderes (comissões de trabalhadores, moradores, soldados, o equivalente aos conselhos, eleitos na base, em plenário e com representantes a qualquer momento revogáveis), a revolução dos cravos é uma das revoluções mais importantes de todo o século XX. Deste ponto de vista, da extensão deste poder paralelo ao Estado, trata-se de um processo histórico que tem muitas semelhanças com a revolução italiana de 1919-1920 (conhecida como bienio rosso), com a revolução húngara de 1956 e com a revolução chilena. A democracia de base que vigorou, e que tinha assento nos locais de trabalho e na habitação, colocou qualquer coisa como 3 milhões de pessoas a decidir, não por delegação de poderes de quatro em quatro anos, mas dia a dia, decidia-se o que a sociedade devia produzir, como devia ser gerida. Nunca tanta gente decidiu tanto em Portugal como entre 1974 e 1975.
A derrota da revolução começa a partir do golpe de Estado de 25 de Novembro de 1975, golpe realizado pela social-democracia em aliança com a Igreja e a direita, e sem a resistência do Partido Comunista (que considerava Portugal sob influência ocidental no quadro de Yalta e Potsdam). Começa com a imposição da ‘disciplina’, isto é, da hierarquia, nos quartéis, mas consolida-se através de um regime democrático-representativo. Portugal é um balão de ensaio da chamada “contra-revolução democrática” (ou teoria da transição democrática, segundo a politologia de inspiração liberal) que vai ser aplicada na Espanha franquista e depois em toda a América Latina nos anos 80, a doutrina Carter, ou seja, a ideia de que, pelo menos por um período largo, para derrotar processos revolucionários, as eleições e a democracia liberal eram preferíveis aos regimes ditatoriais. Portugal é o primeiro exemplo, do ponto de vista da burguesia, de sucesso de uma revolução derrotada com a instauração de um regime de democracia representativa que, para se impor, teve de pôr fim à democracia de base, nomeadamente nos quartéis, fábricas, empresas, escolas e bairros.
O Estado não foi conquistado pelos trabalhadores. Há uma enorme crise do Estado, mas este não colapsa, nomeadamente porque os poderes paralelos que se criam durante a revolução nunca chegam a desenvolver-se e coordenar-se nacionalmente para serem uma alternativa viável de poder — essa é uma das explicações para a facilidade com que a direita faz o golpe de 25 de Novembro de 1975.
Mas, hoje, em plena execução das medidas contra-cíclicas pós-2008, esse passado revolucionário — quando os mais pobres, mais frágeis, quantas vezes analfabetos, ousaram agarrar a vida nas mãos — é uma espécie de pesadelo histórico das actuais classes dirigentes portuguesas. Tanto é assim que mantém-se a insistência de, nos 40 anos da revolução, celebrar-se apenas o dia 25 de Abril, esquecendo que esse dia foi o primeiro dos 19 meses historicamente mais surpreendentes da história de Portugal, e que Portugal foi, ao lado do Vietname, o país mais acompanhado pela imprensa internacional de então: as imagens de pessoas dos bairros de barracas, sorrindo, de braços abertos ao lado de jovens militares barbudos e alegres, encheu de esperança os povos de Espanha, Grécia, Brasil... e encheu de júbilo a maioria dos que aqui viviam. Uma das características das fotos da revolução portuguesa é que nelas as pessoas estão quase sempre a sorrir. Não por acaso, Chico Buarque, o mais famoso músico brasileiro, cantou em plena ditadura lá no Brasil, quando soube da revolução: «Sei que estás em festa, pá.»
[1] .
[2] Diário de Notícias, 3 de maio de 2013.
[3] Vasquez Montalbán, Manuel, «A la revolutión en coche», In Tele eXpress, 13 de maio de 1974, p. 5.