“À sombra de uma azinheira, que já não sabia a idade,
jurei ter por companheira, Grândola, tua vontade.”
( Zeca Afonso, cantor popular.)
A burguesia passou, seriamente, a temer o pior, também, na metrópole. Reorientou-se, apressadamente, para o projeto europeu. A reconstrução da autoridade do Estado, a começar pelas Forças Armadas, ainda permanecia a prioridade. O mais complexo, contudo, continuava sem solução: tinha que improvisar uma representação política, atrair a maioria das classes médias, e derrotar os trabalhadores.
Não tendo mais Spínola como carta na manga – e debilitados o PPD e CDS pela ligação com Spínola – não tinha instrumentos diretos – a não ser parte da imprensa e o peso sobre a alta hierarquia das FFAA – e precisava recorrer à pressão da burguesia européia, e dos EUA, sobre a socialdemocracia e sobre a URSS, para que enquadrassem o PS e, sobretudo, o PCP.
Depois do 11 de março veio a segunda primavera das utopias. Lisboa era a capital mais livre do mundo. A grande massa do povo urbano, tanto em Lisboa – incluído o grande cinturão metropolitano que a rodeia – e no Porto como na maioria das cidades médias do centro e sul o país, os trabalhadores e a juventude, mas também as novas classes médias assalariadas no comércio e nos serviços exigiam a independência das colônias, o retorno dos soldados, as liberdades nas empresas, salários, trabalho, terra, educação, saúde, previdência. A experiência histórica colocava em movimento milhões de pessoas, até então, politicamente, inativas. Aprendiam quase instintivamente, no calor da luta, que eram a maioria e podiam vencer. Ainda existia, também, um outro Portugal, idoso, rural, atrasado, desconfiado da revolução, manipulado pela Igreja, e com base social nos minifúndios do norte. Mas eram muito minoritários. Nas cidades, sobretudo as industrializadas, o povo simpatizava com as nacionalizações. Concordava que sem limitações ao direito de propriedade – isto é, expropriações dos que tinham sustentado a ditadura – não poderiam conquistar as suas reivindicações. Começa a etapa do que foi denunciado pela ultradireita como “assembleísmo”, ou seja, a dualidade de poderes. As hierarquias seculares de autoridade política e social que se apoiavam em tradições culturais de medo e respeito desabaram. As massas invadiram os espaços sociais de suas vidas e estavam atrevidas. Queriam participar. Queriam decidir.
Em vagas de lutas sucessivas, surgiram comissões de trabalhadores em todas as grandes e médias empresas, como a CUF (Companhia União Fabril) – só ela, 186 fábricas – a maioria concentrada no Barreiro, cidade industrial do outro lado do Tejo. Champalimaud, um dos líderes mais influentes da burguesia reage declarando “os operários são atualmente demasiado livres”.[1]
O muralismo político – painéis à mexicana, grafites à americana, dazibaos à chinesa, e simples pichações – fazia das ruas de Lisboa uma expressão estético-cultural desse “universo diverso’ da revolução. Havia de tudo, do mais solene ao mais irreverente. À porta do cemitério o impagávelAbaixo os mortos, a terra para quem nela trabalha. Nas grandes avenidas, o dramático, Nem mais um só soldado para as colônias. Na região das avenidas novas, “Os ricos que paguem a crise”, assinado pela UDP e, ao lado,“A UDP que pague a crise”, assinado “Os ricos”. Nas paredes da entrada da Faculdade de Letras, onde os trotskistas eram mais influentes, o cético: “Os índios também eram vermelhos e se foderam.”
A revolução à deriva
A Igreja não escapou à fúria do processo revolucionário. Em Lisboa as Igrejas ficaram desertas de jovens. Associada durante décadas ao salazarismo – quando o Cardeal Cerejeira foi o braço direito do regime – estava desmoralizada no Sul do País, e desautorizada diante de amplos setores sociais. As ocupações se estendiam aos meios de comunicação. No dia 27 de maio os trabalhadores da Rádio Renascença ocupam os estúdios e o centro transmissor. É abandonada a designação de “Emissora Católica”. A emissora passa a transmitir uma programação de apoio ás lutas dos trabalhadores.
Os operários da Lisnave, então um dos grandes estaleiros do mundo, deram o exemplo organizando piquetes para ocupar o seu sindicato. Na Amadora, a Sorefame, uma das maiores indústrias metalúrgicas do país entra em greve, assim como a Toyota, a Firestone, a Renault, a Carris (motoristas de ônibus), a TAP e a CP (ferroviários), mas também pelo interior, como entre os têxteis da Covilhã, ou nas minas da Panasqueira. A onda de auto-organização – formação nas empresas de comissões de trabalhadores – que aprofunda a dinâmica revolucionária da situação, produz reações: “Os sindicalistas do PCP queixam-se amargurados: ‘Os grevistas fazem tábua rasa das formas tradicionais de luta, nem tentam negociar e por vezes decidem parar mesmo antes de redigirem o caderno reivindicativo. Em muitos casos, os trabalhadores não se limitam a exigir mais dinheiro, passam á ação direta, tentam tomar o poder de decisão e instituir a co-gestão sem estarem preparados para isso”. (Canais Rocha ao Diário de Lisboa, em 24/6/74). [2]
Ainda quando PCP apostava toda a sua imensa autoridade para frear as greves, as invasões de latifúndios no Alentejo se generalizavam, ao mesmo tempo em que as ocupações de casas desabitadas em Lisboa e Porto se alastravam; saneamentos – o eufemismo para expulsão dos fascistas – realizavam depurações na maior parte das empresas, a começar pelo serviço público, e a pressão estudantil nas Universidades impunha assembléias deliberativas. Toda a antiga ordem parecia desabar:
A criação do salário-mínimo nacional abrange mais de 50% dos assalariados não agrícolas. São os trabalhadores menos qualificados, as mulheres, os mais oprimidos, que constituem a vanguarda da conquista do poder de compra e dos direitos sociais. O poder de compra dos assalariados aumenta 25,4% em 1974 e 75; os salários que, em 1974, já são 48% do rendimento nacional, passam a 56,9% em 1975. A estrutura da propriedade modifica-se: 117 empresas são nacionalizadas, 219 outras têm mais de 50% de participação do Estado, 206 são intervencionadas, abrangendo 55.000 operários; 700 empresas entram em auto-gestão, com 30.000 operário. [3]
Cada revolução tem o seu vocabulário. Como o pêndulo da política se inclinou para a extrema-esquerda, o discurso da direita girou para o centro, e o do centro para a esquerda. O travestismo político – o descompasso entre as palavras e os atos – faz o discurso dos partidos irreconhecível. Mas, em Portugal, as forças burguesas superaram o inimaginável. Desde o PPD de Sá Carneiro, hoje o PSD de Durão Barroso, até o PPM (Partido Popular Monárquico), todos reivindicavam alguma forma de socialismo, o que explica a linguagem socializante da Constituição que até hoje produz espanto.
A situação aberta pela queda de Spínola trazia maiores desafios, e mais perigosos. A burguesia exigia ordem e, sobretudo, respeito à propriedade privada. Diante das pressões, o PS e o PCP, as forças políticas de longe majoritárias, e as únicas com autoridade na direção dos Governos Provisórios – além do MFA – dividiram-se e provocaram uma cisão irremediável entre os trabalhadores. Um ano depois do 25 de abril, as eleições para a Constituinte surpreenderam. O PS foi o grande vencedor com espetaculares 37,87%. O PCP decepcionou com somente 12,53%. Revelou-se um abismo entre sua força de mobilização social e a eleitoral. O PPD (Partido Popular Democrático) de Sá Carneiro, um líder liberal dentro das estruturas do regime salazarista, fica em segundo lugar com 26,38%. O CDS (na extrema-direita, dirigido por Freitas do Amaral) o MDP (Movimento Democrático Português), uma colateral do PCP que vinha do tempo das eleições sob Caetano, e a UDP (União Democrático Popular), maoístas de inspiração “albanesa”, conseguiram, também, representação parlamentar.
A revolução derrotada
A presença de um partido comunista em governos europeus foi um tabu dos anos de guerra fria. Foi uma surpresa mundial quando Cunhal foi apresentado como ministro sem pasta no primeiro governo provisório liderado por Palma Carlos e Spínola. A estupefação foi ainda maior quando o PCP não somente permaneceu nos governos provisórios seguintes, como aumentou significativamente sua influência até a queda de Vasco Gonçalves em agosto de 1975.
A repercussão do papel do PCP continuou crescendo porque, a partir do V governo provisório, no verão quente de 1975, Cunhal foi acusado pelo Partido Socialista, dirigido por Mário Soares, de estar tramando um “golpe de Praga”, ou seja, uma insurreição para tomar o poder. Soares desafiou a hegemonia da mobilização de ruas que, até então, o PCP detinha, levando centenas de milhares às ruas contra Vasco Gonçalves e, apoiado pela hierarquia da Igreja, pela embaixada americana, e pelos governos europeus, estimulando a divisão do MFA que se expressou através do “grupo dos nove”.
Meses depois, quando o movimento militar dirigido por Ramalho Eanes, na madrugada de 25 de novembro de 1975, de fato, tomou pela força o poder – fazendo aquilo que denunciava que o PCP estaria preparando – Melo Antunes defendeu, inusitadamente, a participação do PCP na “estabilização democrática”, sublinhando, dramaticamente, que a democracia portuguesa seria impensável sem o PCP na legalidade, para deixar claro que o golpe não seria uma pinochetada, e que foi feito para evitar aquilo que, no calor daqueles dias, se interpretava como o perigo de uma guerra civil, e não para provocá-la. Admitiu, portanto, que o VI governo provisório e o Conselho da revolução estavam fazendo uma intervenção armada nos quartéis (um clássico autogolpe), mas alegou que era em legítima defesa, para manter a legalidade, não para subvertê-la.
A contra-revolução ensaiou o golpe bonapartista duas vezes com a direção de Spínola e fracassou. Recorreu, depois, a outros dirigentes e a outros métodos. Uma combinação de espada e concessões. Usou a espada, cuidadosa e seletivamente, no 25 de novembro. Usou os métodos da reação democrática com as eleições presidenciais de 1976, a negociação dos empréstimos de emergência que os Estados da NATO liberaram, e recorreu até à formação de um governo em vôo solo do Partido Socialista liderado por Mário Soares.
Depois de novembro de 1975, com a destruição da dualidade de poderes nas Forças Armadas o processo assumiu uma dinâmica lenta, contudo, irreversível, de estabilização de um regime democrático liberal. A derrota da revolução portuguesa não exigiu derramamento de sangue, mas consumiu muitos bilhões de marcos alemães e de francos franceses. A integração posterior na Comunidade Econômica com o acesso aos fundos estruturais, gigantescas transferências de capitais para modernizar a infra-estrutura, e construir um pacto social capaz de absorver as tensões sociais pós-salazaristas, permitiu a estabilização do capitalismo e do regime democrático nos anos 80 e 90.
Notas:
[1] Champalimaud em declaração ao matutino Diário de Notícias, Lisboa, 25/6/74, citado em Francisco Louçã, 25 de abril, dez anos de lições, Ensaio para uma revolução, Lisboa, Cadernos Marxistas, 1984, p.36.