“A falsa abolição fez vários estragos
Fez acreditarem em racismo ao contrário
Num cenário de estações rumo ao calvário
Heróis brancos, destruidores de quilombos
Usurpadores de sonhos, seguem reinando”
E acho que identificar essa questão é fundamental. A movimentação gerou bastante discussão pelas redes sociais, e com algumas reflexões interessantes sobre o que seria um processo de ressignificação do termo “Macaco”.
Pois bem, estamos às vésperas da “Marcha das Vadias” e esse foi um exemplo bem concreto que vi colocarem neste debate sobre #SomosTodosMacacos. A “Marcha das Vadias” é um movimento contestatório muito importante e se utiliza da ressignificação do termo “Vadia” para pautar que todas as mulheres (negras, brancas, índigenas, mulçumanas e afins) são vítimas de violência sexual, independente do lugar, da roupa e da profissão. Ou seja, o termo “Vadia” universaliza a justificativa para a violência contra todas as mulheres que saem do “padrão” colocado em uma sociedade patriarcal.
Marchamos contra o racismo porque durante séculos nós, mulheres negras, fomos estupradas e, hoje, empregadas domésticas são violentadas, assim como eram as mucamas. Marchamos pelas crianças negras que são hostilizadas pela cor de sua pele, por seus cabelos crespos e são levadas a negar suas identidades negras desde a infância, impelidas a aderir ao padrão de beleza racista vigente. Marchamos porque nossa sociedade racista prega que as mulheres negras são “putas” por serem negras, tratando-nos como mulas, mulatas e objetos de diversão, desprovidas de dor e pudor. Marchamos porque nós negras vivenciamos desprezo e desafeto reduzindo nossas possibilidades afetivas; “Vadia” enquanto estigma recai especialmente sobre nós negras, por isto marchamos em repúdio a esta classificação preconceituosa e discriminatória de nosso pertencimento étnico-racial. (Carta Manifesto da Marcha das Vadias/DF 2012)
Acho que esta é uma primeira dimensão necessária para entendermos o debate colocado desde domingo. Ontem quando publiquei o post “Macaco não é elogio” era justamente para conseguirmos ter a dimensão do que significou a diferenciação biologista entre europeus e outros povos massacrados por eles. E essa questão é importante, por que se em qualquer lugar do mundo termos parecidos com “Vadia” são usados para justificar toda uma cultura do estupro globalmente e a resignificação foi cunhada pelo próprio sujeito da opressão patriarcal, o mesmo não acontece com o termo “Macaco”.
Não acontece com “Macaco” pelo fato de que este termo na verdade subjulga toda uma gama de pessoas negras, índigenas, mulçumanos, latinas afins aos europeus, porém quem cunha a tentativa de ressignificação não são os sujeitos dessa opressão. Negros, indígenas, mulçumanos e afins não reivindicação deste setor social para problematizar uma relação de opressão real existente no Brasil e no mundo.
E pra mim isso é algo fundamental. Esse termo foi usado ao longo dos séculos para justificar massacres e genocídio de populações diversas que eram reconhecidas como selvagens pelos europeus e hoje é apresentado como uma outra roupagem pelos mesmos que estiveram nos caçando nas florestas e açoitando no pelourinho.
E aí é importante localizar uma coisa: Essa pretensa campanha se utiliza de forma oportunista de uma resposta importante dada por Daniel Alves no domingo.
Quando uma grande parcela de pessoas brancas se identifica como “macacos”, infelizmente o sentido racista ressoa na expressão, e é como se essas pessoas estivessem dizendo que, num gesto de solidariedade, estão se identificando como negros (e não genericamente como seres humanos). Ou seja, por mais bem-intencionada que seja, a pessoa que diz “sou macaco”, nesse contexto em que se discute o racismo, está sem querer dizendo que negro e macaco se equivalem e que macaco não abrange semanticamente o branco. (LEITE, Thiago. Macacos)
A problematização sobre quem é sujeito e tem capacidade para ressignificações levando em conta o peso social e político que esse processo tem são os sujeitos da opressão. Isso é outro ponto fundamental, a desconstrução deve ser feita por seus sujeitos e não por seus opressores.
Não somos todas travecos. Não somos todos macacos. Não somos todos boiolas. Não somos todas vadias. Não posso pretender subverter o uso de um termo que nunca foi usado de forma violenta contra mim. Mas posso estar aberta a participar na luta contra cada um desses preconceitos sem tentar ocultar as vozes dos verdadeiros protagonistas. (MAGALHÃES, Camilla. Postado no Facebook)
É preciso também compreender a profundidade política da discussão. O processo de apropriação e cooptação de pautas por parte do capital e de suas bases estruturantes não é algo novo. Na verdade vai se reinventando para conseguir estabelecer um limiar de que temas realmente nefrálgicos para a classe trabalhadora e os setores mais marginalizados dessa classe trabalhadora tem alguma relevância. O outro caso que ocorreu no domingo também demonstra bem isso. A homenagem acéptica feita no programa “Esquenta” a mais uma vítima da violência militarizada do estado.
Eram os nossos que deveriam estar ali. Onde estão os intelectuais e ativistas negros para falar sobre o genocídio de seus jovens?? Onde estão as referências que inspiraram o menino Douglas para começar a dançar?? Onde está o espaço privilegiado para o desabafo da mãe, a presença dos amigos e a vida do jovem antes e fora do Esquenta?!?!? Nada disso estava ali, nós não estamos, nem nunca estivemos ali. Não se enganem!!!! (ASSIS, Mariana. Não se enganem!!)
Essa localização de qual foi o legado que nos trouxe até aqui. Em um processo que acirra a xenofobia/racismo na Europa. Que tenta invisibilizar a morte de negrxs e índigenas em um processo de reorganização social no Brasil que passa pela garantia da expropriação de terras índigenas e quilombolas para garantir o desenvolvimnto do agronegócio, onde a justificativa para intervenção militar nas favelas cariocas é uma pretensa guerra às drogas que, inclusive, tem sido alvo de críticas nos EUA, país onde a política foi originada.
É neste caldo político, nesse moedor de carne negra e índigena que este debate sobre ressignificação está inserido. Não é algo fora da realidade, não é algo alijado do debate de conjuntura que vivemos hoje no Brasil e no mundo. E também não é uma posição defensiva, pois há uma ofensiva real da população a questionar as ações racistas contundentes do estado brasileiro. A resposta ao combate ao racismo, machismo e homolesbotransfobiaserá dada pelas ruas, de forma contundente reivindicando que nossa vida seja garantida e não apenas uma ação de marketing para encher os bolsos daqueles que ajudam a manter a nossa opressão.
Nota do Diário Liberdade:
[1] Artigo postado em BiDê Brasil no dia 29/04/14.