Já se disse que as revoluções tardias são as mais radicais. No 25 de Abril de 1974 ruiu a ditadura mais antiga do continente europeu. A rebelião militar organizada pelo MFA, uma conspiração dirigida pela oficialidade média das Forças Armadas que evoluiu, em poucos meses, de uma articulação corporativa para a insurreição, foi fulminante. Abatida militarmente por uma guerra sem fim, exausta politicamente pela ausência de base social interna, esgotada economicamente por uma pobreza que contrastava com o padrão europeu, e cansada culturalmente pelo atraso obscurantista que impôs durante décadas, poucas horas foram suficientes para uma rendição incondicional. Foi nesse momento que o processo revolucionário que comoveu Portugal se iniciou. A insurreição militar precipitou a revolução, e não o contrário.
Compreender o passado exige um esforço de reflexão do campo de possibilidades que estava desafiando os sujeitos sociais e políticos que atuavam projetando um futuro incerto. Em 1974, uma revolução socialista em Portugal poderia parecer improvável, difícil, arriscada, ou duvidosa, mas era uma das perspectivas, entre outras, que estava inserida no horizonte do processo. Já foi dito que revoluções são extraordinárias porque transformam o que parecia impossível em plausível, ou até provável.
Ao longo de seus dezenove meses de surpresas, a revolução impossível, aquela que faz aceitável o que era inadmissível, provocou todas as cautelas, contrariou todas as certezas, surpreendeu todas as suspeitas. Esse mesmo povo português que suportou durante quase meio século a mais longa ditadura do continente – abatido, prostrado, até resignado – aprendeu em meses, encontrou em semanas e, em alguns momentos, descobriu em dias, aquilo que décadas de salazarismo não lhe tinham permitido sequer desconfiar: a dimensão de sua força. Mas, estavam sozinhos. Naquela estreita faixa de terra da Península Ibérica, o destino da revolução foi cruel. Ela veio seis anos depois do Maio de 1968 francês. Os povos do Estado Espanhol só se colocaram em movimento na luta final contra o franquismo quando, em Lisboa, já era tarde demais. A portuguesa foi uma revolução solitária.
O atual regime semipresidencialista em Portugal não deve ser confundido como herdeiro direto das liberdades e direitos sociais conquistados pela revolução nos seus intensos dezoito meses. O regime que mantém Portugal como o mais pobre país europeu é o resultado de um longo processo de reação das classes proprietárias e seus aliados nas classes médias proprietárias. A insurreição militar agigantou-se como uma revolução democrática, quando as massas populares saíram às ruas, que enterrou o salazarismo e foi vitoriosa. Mas a revolução social que nasceu do ventre da revolução política foi derrotada. Talvez surpreenda a caracterização de revolução social, mas toda revolução é uma luta em processo, uma disputa, uma aposta em que reina a incerteza. Na história não se pode explicar o que aconteceu considerando somente o desfecho. Isso é anacrônico. É uma ilusão de ótica do relógio da história. O fim de um processo não o explica. Na verdade, o contrário é mais verdadeiro. O futuro não decifra o passado. Revoluções não podem ser analisadas somente pelo desenlace final. Ou pelos seus resultados. Estes explicam, facilmente, mais sobre a contra-revolução, do que sobre a revolução.
As liberdades democráticas nasceram do ventre da revolução, quando tudo parecia possível. Mas o regime democrático semipresidencialista hoje existente em Portugal não surgiu do processo de lutas aberto no 25 de abril de 1974. Ele veio à luz depois de um auto-golpe da cúpula das Forças Armadas organizado pelo Grupo dos Nove em 25 de novembro de 1975. A reação triunfou depois das eleições presidenciais de 1976. Foi necessário recorrer aos métodos da contra-revolução em novembro de 1975 para restabelecer a ordem hierárquica nos quartéis e dissolver o MFA que fez o 25 de abril. É verdade que a reação com táticas democráticas dispensou uma quartelada com métodos genocidas, como tinha acontecido em Santiago do Chile em 1973. Não foi acidental, contudo, que o primeiro presidente eleito fosse Ramalho Eanes, o general do 25 de novembro.
A revolução portuguesa foi, portanto, muito mais do que o fim atrasado de uma ditadura obsoleta. Hoje sabemos que o capitalismo lusitano escapou à tempestade revolucionária. Sabemos que Portugal logrou construir um regime democrático razoavelmente estável, que a Lisboa dirigida pelos banqueiros e industriais sobreviveu à independência de suas colônias e, finalmente, se integrou na União Européia. Poderia, todavia, ter sido outro o resultado daqueles combates, com imensas conseqüências para a transição espanhola do final do franquismo.
O que a revolução conquistou em dezoito meses, a reação consumiu dezoito anos para destruir e, ainda assim, não conseguiu anular todas as conquistas sociais alcançadas pelos trabalhadores. Depois de ter incendiado durante um ano e meio as esperanças de uma geração de operários e jovens, a revolução portuguesa colidiu em obstáculos intransponíveis. A revolução portuguesa, a tardia, a democrática, teve o seu momento à deriva, descobriu-se perdida e terminou derrotada. Mas foi, desde o início, filha da revolução colonial africana e merece ser chamada pelo seu nome mais temido: revolução social.
A vertigem do processo desafiou a solução bonapartista-presidencial de Spínola em três meses. Spínola foi derrotado com a queda de Palma Carlos da posição de primeiro-ministro e a nomeação de Vasco Gonçalves e, na seqüência, a convocação de eleições para a Constituinte antes das eleições presidenciais. Um ano depois do 25 de abril de 1974, a carta do golpe militar já tinha sido tentada por duas vezes, e por duas vezes esmagada. A contra-revolução precisou mudar a sua estratégia depois da segunda derrota de Spínola. Três legitimidades disputaram forças depois do 11 de março de 1975: a do Governo provisório sustentado pelo MFA, com o apoio do PC; a do resultado das urnas para a Constituinte eleita em 25 de abril de 1975, em que o PS se afirmou como a maior minoria, mas que poderia ser defendida como uma maioria, quando considerado o apoio dos partidos de centro-direita (PPD) e direita (CDS); e aquela que surgia da experiência de mobilização nas empresas, nas fábricas, nas universidades, nas ruas, a democracia direta da auto-organização.
Três legitimidades políticas, três blocos de classe e alianças sociais, três projetos estratégicos, enfim, uma sucessão de governos provisórios em uma situação revolucionária, com uma sociedade dividida em três campos: o do apoio ao governo do MFA, e duas oposições, uma de direita (com um pé no governo e outro fora, mas com importantes relações internacionais) e outra de esquerda (com um pé no MFA e outro fora, e uma devastadora dispersão de forças). Nenhum dos blocos políticos conseguia se afirmar por si só durante o verão quente de 1975. Foi então que a contra-revolução recorreu à mobilização de sua base social agrária no Norte, e algumas partes do centro do país. Mas, a reação clerical reacionária era ainda insuficiente. Portugal já não era o país agrário que Salazar tinha governado. Apelou, então, à divisão da classe trabalhadora, e para isso o PS de Mário Soares era indispensável. Recorreu à estratégia do alarme, do medo, do pânico para assustar e insuflar os setores da classe média proprietária contra a classe operária. Mas, acima de tudo, a questão prioritária para a burguesia, entre março e novembro de 1975, foi a recuperação do controle sobre as Forças Armadas.
A revolução tardia
Apesar de seus longos 48 anos, a queda do regime encabeçado por Marcelo Caetano foi, paradoxalmente, uma surpresa. Os governos de Londres, Paris ou Berlim sabiam que o pequeno país ibérico vivia há décadas uma situação anacrônica: ultimo Estado enterrado em uma guerra colonial em três frentes sem perspectiva de solução, um "Vietnam africano", condenada até por resolução da ONU. A ditadura, já senil de tão decadente, ainda impunha um regime implacável na metrópole. Mantinha uma polícia de facínoras – a PIDE – que garantia as prisões repletas, e a oposição no exílio. Controlava através da censura qualquer opinião crítica ao governo, proibia as atividades sindicais, reprimia o direito de greve. No entanto, nem mesmo Washington, tinha previsto o perigo de uma revolução. A explicação histórica mais estrutural da estabilidade do regime salazarista remete à sobrevivência tardia de um imenso Império, formado no alvorecer da época moderna.
Em 28 de Maio de 1926 um golpe de Estado protofascista derruba a primeira república portuguesa, instalando uma ditadura militar liderada pelo general Gomes da Costa, sucedido pelo general Carmona. Os chefes militares convidam Antonio de Oliveira Salazar, até então um professor de economia em Coimbra, para ser ministro das Finanças, cargo que só assumirá em 1928, quando tinha 39 anos. Assumirá a posição de primeiro-ministro em 1932. Conhecido como Estado Novo, o regime não parecia excepcional nos anos trinta, quando o capitalismo europeu inclinou-se por um discurso nacionalista exaltado, e recorria em larga escala, mesmo em sociedades mais urbanizadas e, economicamente, mais desenvolvidas, aos métodos da contra-revolução para evitar revoluções sociais como o Outubro russo. A ditadura em Portugal espantaria, no entanto, pela sua longevidade.
O fascismo "defensivo" deste Império desproporcional e semi-autárquico sobreviverá a Salazar, permanecendo incríveis 48 anos no poder. A burguesia deste pequeno país resistirá à vaga de descolonização dos anos cinquenta por um quarto de século. Encontrará forças para enfrentar, a partir dos anos sessenta, uma guerra de guerrilhas em África, na Guiné-Bissau, Angola e Moçambique, mesmo se, na maior parte desses longos anos, mais uma guerra de movimentos, que uma guerra de posições, ainda assim, sem solução militar possível. Mas a guerra sem fim acabou destruindo a unidade das Forças Armadas. Quis a ironia da história que tenha sido o mesmo exército que deu origem à ditadura que destruiu a I República, que tenha derrubado o salazarismo para garantir o fim da guerra.
A reforma pelo alto, por deslocamentos internos do próprio salazarismo, a transição negociada, a democratização pactuada, tantas vezes esperada, não veio. Os deslocamentos da oficialidade média expressavam o desespero das classes médias com a obtusidade da ditadura. O obscurantismo sufocava a nação. Depois da insurreição militar abriu-se uma janela de oportunidade histórica, e o que as classes proprietárias evitaram fazer por reformas, as massas populares se lançaram à conquista pela revolução. O salazarismo obsoleto de Caetano acabou acendendo a faísca do mais profundo processo revolucionário na Europa Ocidental, depois da Guerra Civil Espanhola em 1939.
Parte II
“O êxito fácil demais do 25 de novembro, que é sua principal originalidade, obriga a examinar com mais atenção a política seguida pelo PCP, pela ala esquerda do MFA e pelos grupos da esquerda revolucionária.” (Francisco Martins Rodrigues, alias, Chico Martins.) [1]
Em 1972, o general Antônio Spínola publicou o livro Portugal e o Futuro. O Governo de Marcelo Caetano autorizou a publicação do livro. O parecer favorável foi feito por ninguém menos que o general Costa Gomes.[2] A guerra nas colônias mergulhou Portugal em uma crise crônica.
Um país de dez milhões habitantes, acentuadamente defasado da prosperidade européia dos anos sessenta, sangrando pela emigração da juventude que fugia do serviço militar e da pobreza, não podia continuar mantendo um exército de ocupação de dezenas de milhares de homens, indefinidamente, em uma guerra africana. O que não se sabia, então, era que o livro de Spínola era somente a ponta de um iceberg e que, clandestinamente, na oficialidade média, já estava se articulando o Movimento das Forças Armadas, o MFA. A fraqueza do governo Marcelo Caetano era tão grande que cairia como uma fruta podre, em horas. A nação estava exaurida pela guerra. Pela porta aberta pela revolução antiimperialista nas colônias, iria entrar a revolução política e social na metrópole.
A revolução colonial
O serviço militar obrigatório era de assombrosos quatro anos, dos quais pelo menos dois eram cumpridos no ultramar. Mais de dez mil mortos, sem contar os feridos e mutilados, na escala de dezenas de milhares. Foi do interior desse exército de alistamento obrigatório que surgiu um dos sujeitos políticos decisivos do processo revolucionário, o MFA. Respondendo à radicalização das classes médias da metrópole e, também, à pressão da classe trabalhadora na qual uma parcela dessa oficialidade média tinha sua origem de classe, cansados da guerra, e ansiosos por liberdades, rompiam com o regime.
Estas pressões sociais explicam, também, os limites políticos do próprio MFA, e ajudam a compreender porque, depois de derrubar Caetano, entregaram o poder a Spínola. O próprio Otelo, defensor, a partir do 11 de Março, do projeto de transformar o MFA em movimento de libertação nacional, à maneira de movimentos militares em países da periferia, como no Peru do início dos anos setenta, fez o balanço com uma franqueza desconcertante: “Este sentimento arraigado de subordinação à hierarquia, da necessidade de um chefe que, por cima de nós, nos orientasse no “bom” caminho, nos perseguiria até o final”. [3]
Esta confissão permanece uma das chaves de interpretação do que ficou conhecido como o PREC (processo revolucionário em curso), ou seja, os doze meses em que Vasco Gonçalves esteve à frente do II, III, IV e V governos provisórios. Ironicamente, assim como muitos capitães se inclinavam a depositar excessiva confiança nos generais, uma parcela da esquerda entregava aos capitães, ou à fórmula unidade do povo com o MFA, defendida pelo PCP, a liderança do processo.
Diz-se que, em situações revolucionárias, os seres humanos excedem-se ou se elevam, entregando-se na melhor medida de si próprios. Aparece, então, o que têm de melhor e pior. Spínola, enérgico e perspicaz, era um reacionário pomposo, com poses de general germanófilo, com seu incrível monóculo do século XIX. Costa Gomes, sutil e astuto, era, como um camaleão, um homem da oportunidade. Do MFA surgiram as lideranças de Salgueiro Maia ou Dinis de Almeida, valentes e honrados, mas sem educação política; de Otelo, o chefe do COPCON, uma personalidade entre um Chávez e um Capitão Lamarca, ou seja, entre o heroísmo da organização do levante, e o disparatado das posteriores relações com a Líbia e as FP-25 de abril; de Vasco Lourenço, de origem social popular, como Otelo, atrevido e arrogante, mas tortuoso; de Melo Antunes, instruído e sinuoso, o homem chave do grupo dos nove, o feiticeiro que termina prisioneiro de suas manipulações; de Varela Gomes, o homem da esquerda militar, discreto e digno; de Vasco Gonçalves, menos trágico que Allende, mas, também, menos bufão que Daniel Ortega. Foi da tropa, também, que surgiu o “Bonaparte”, Ramalho Eanes, sinistro, que enterrou o MFA.
A revolução democrática
A economia portuguesa, pouco internacionalizada, mas já razoavelmente industrializada, se estruturava na divisão internacional do trabalho em dois “nichos”, os dois pilares empresariais do regime, a exploração colonial e a atividade exportadora. Sete grandes grupos controlavam quase tudo. Ramificavam-se em 300 empresas que tinham 80% dos serviços bancários, 50% dos seguros, 8 das 10 maiores indústrias, 5 das 7 maiores exportadoras. Os monopólios comandavam, mas a dinâmica de crescimento era oscilante. O país permaneceu, comparativamente, estagnado, enquanto a economia européia vivia o boom do pós-guerra. Em Portugal, não houve alívio social. A superexploração do trabalho manual se manteve, agravada pelas seqüelas sociais da guerra colonial. A ordem salazarista se manteve depois da morte do ditador, com um implacável braço armado – a PIDE – 20.000 informantes, mais de dois mil agentes.
Não há, é certo, um sismógrafo de situações revolucionárias. Ainda na manhã dia 25 de Abril, ao ouvir pelo rádio a comunicação do levante militar do MFA, uma multidão de milhares de pessoas saiu ás ruas e se dirigiu à baixa de Lisboa, cercando o Quartel da GNR (Guarda Nacional Republicana) no Largo do Carmo, onde Marcelo Caetano se refugiara, e negociava com Salgueiro Maia os termos da rendição, exigindo a presença de Spínola. Algumas centenas de pides – Polícia Internacional de Defesa do Estado – entrincheirados na sede, disparam sobre a massa popular. No Porto, milhares de pessoas cercaram os policiais no edifício da Câmara, e estes responderam atirando sobre a população. E foi só isso a força da resistência. Deixaram quatro mortos.
Toda revolução tem o seu pitoresco. Nunca saberemos ao certo da veracidade maior ou menor dos pequenos episódios. Ma si non é vero, é bene trovato. Nas primeiras horas da manhã, quando uma coluna de carros militares descia a Avenida da Liberdade em direção ao Terreiro do Paço, as floristas do Parque Mayer lhes perguntam o que estava acontecendo, e os soldados respondem que vieram derrubar a ditadura. Elas, na sua simplicidade, de tão felizes, lhes oferecem cravos vermelhos e assim, sem o saber, batizaram a revolução com o nome de uma flor.
Recordemos que uma revolução não deve se confundir com o triunfo de um levante militar, mesmo quando se trata de uma insurreição com apoio popular. Não é incomum que golpes militares ou rebeliões de quartel funcionem, historicamente, como um sinal de que uma tormenta muito maior se aproxima. As operações palacianas podem “abrir uma janela” por onde irá entrar o vento da revolução que estava contido. Em Portugal, o processo da revolução política transbordou, como na Rússia de 1917, porque o exército tinha sido dilacerado pela guerra. Quando no primeiro de Maio de 1974 centenas de milhares de pessoas desfilaram durante horas até o estádio de Alvalade, carregando milhares de bandeiras vermelhas para recepcionar os que voltavam do exílio, e abraçar os que saíram das prisões, estavam marchando em direção aos seus sonhos de uma sociedade mais justa. Descobriam, surpresas, a força social de sua mobilização. É dessa experiência prática compartilhada por milhões que são feitas as revoluções sociais.
A última revolução
A revolução portuguesa foi a última revolução social na Europa Ocidental do final do século XX. Ainda que interrompida, a dinâmica de revolução social anticapitalista foi um dos seus traços chave. O conteúdo social do processo que veio no ano e meio que sucedeu o 25 de abril foi determinado em um contexto complexo: a revolução tinha tarefas pendentes – fim da guerra colonial, independência das colônias, reforma agrária, trabalho para todos, elevação dos salários, acesso à moradia, direito ao ensino público – que não se resumiam à derrubada da ditadura. O que determinou o seu vigor foi uma combinação de fatores sociais e políticos, mas o mais importante foi a entrada em cena da mobilização das classes populares com uma disposição de luta revolucionária que não podia ser contida pela repressão, e não a presença de um dos Partidos Comunistas mais poderosos da Europa. Ao contrário, a presença de um forte PCP foi um elemento de contenção da luta social.[4]
A queda do regime foi o ato inaugural de uma etapa política de radicalização popular incomparavelmente mais profunda – uma situação revolucionária – em que foram sendo construídas as experiências de auto-organização. No 1 de maio, uma semana depois da queda de Caetano, uma manifestação gigantesca em Lisboa, demonstra que uma irrupção de massas já começou. Comemora-se a libertação dos presos políticos, soltos em Caxias e Peniche, assim como no famigerado Tarrafal, em Cabo Verde. Álvaro Cunhal e Mário Soares chegam do exílio e, pela primeira vez, discursam. Soares faz exigência pública ao MFA e a Spínola, indicado presidente, defendendo que o PS e o PCP, nas suas palavras, os dois partidos mais representativos da classe operária, deveriam ser o núcleo do governo.
Já no 28 de abril, os moradores de barracas da Boavista em Lisboa ocuparam casas vazias de um bairro social – construções feitas pelo Estado – e se recusaram a sair, mesmo quando cercados pela polícia e por tropas, sob o comando do MFA, realizando a primeira ocupação. No dia 30 de abril, a primeira assembléia universitária de Lisboa reúne mais de 10.000 estudantes no Técnico, a faculdade de engenharia. No dia 2 de Maio é autorizado o regresso de todos os exilados. Desertores e refratários do Exército são anistiados. No dia 3 de Maio generaliza-se uma onda de ocupações de casas desocupadas na periferia de Lisboa, com forte iniciativa de militantes de várias organizações de extrema-esquerda. O embarque de uma unidade militar para África é impedido. Em 5 de Maio, trabalhadores dos TLP (telefônicos), Caixa de previdência de Faro, Hospital do Porto, reúnem-se para exigir a demissão das chefias. Em Évora, os trabalhadores transformam as Casas do Povo em sindicatos agrícolas. Uma vaga de greves começa, encabeçada pelas grandes concentrações operárias, como na Lisnave e na Siderúrgica Nacional, exigindo a reintegração dos demitidos, desde o início do ano, e salários. Trabalhadores do Diário de Notícias, o principal matutino, ocupam o Jornal, e impedem a entrada dos administradores, que são depois demitidos. Meia dúzia de exemplos que são apenas uma ilustração de que ainda antes de completar um mês do fim da ditadura, a revolução invadia todas as esferas da vida social e ocupava, além das ruas, as empresas, escolas, universidades, hospitais, oficinas, sindicatos, jornais, rádios, e até as casas.
Podemos periodizar o processo em três conjunturas: (a) de abril de 1974 até o 11 de março de 1975, abre-se uma situação revolucionária semelhante à do Fevereiro russo[5]: uma ampla frente social que une pequenas frações dissidentes da burguesia, exasperada com a inércia da ditadura, com a ampla maioria das classes médias urbanas, cansadas com o arcaísmo e obtusidade do regime, e as massas trabalhadoras, desesperadas pela guerra e pela pobreza. Nesses meses se garantiram as amplíssimas liberdades democráticas, inclusive nos locais de trabalho e o cessar-fogo em África, derrotando duas tentativas de quarteladas e o projeto de consolidação de um regime presidencialista forte. Predomina um forte sentimento de unidade entre os trabalhadores e a maioria dos setores médios, um apoio esmagador ao MFA, um sentimento a favor da unidade do PS e do PCP e contra Spínola. A sociedade gira vertiginosamente à esquerda; (b) entre o 11 de Março e Julho de 1975, uma situação revolucionária semelhante à que precedeu o Outubro russo: os de cima já não podem e os debaixo já não querem mais ser governados como antes. A fuga do país de uma parte considerável da burguesia, a nacionalização de parte das grandes empresas, o reconhecimento das independências – menos Angola – e a generalização de um processo de auto-organização de massas nos locais de trabalho, estudo e, sobretudo, nas Forças Armadas, mas sem que a dualidade de poder encontrasse uma via de centralização; (c) finalmente, a crise revolucionária, entre julho e novembro de 1975, com a cisão do MFA, a independência de Angola, a radicalização anticapitalista com rupturas de setores de massas da influência do PS e do PCP, a formação dos SUV (auto-organização de soldados e marinheiros) e manifestações armadas, ou seja, a ante-sala ou de um deslocamento revolucionário do Estado, ou um golpe contra-revolucionário. Um destes dois desenlaces se tornava inadiável.[6]
A contra-revolução
A primeira tentativa de golpe fracassa estrepitosamente em 28 de setembro, na forma de um chamado público de Spínola à “maioria silenciosa”, recurso retórico de um apelo à contra-ofensiva dos grotões mais reacionários de um Portugal rural profundo.
No dia 26 de Setembro, Spínola compareceu a uma tourada no Campo Pequeno e foi ovacionado por uma parte do público, mas confrontos ocorreram entre militantes de esquerda e direitistas. Lisboa acordou coberta de cartazes convocando a passeata. No dia seguinte, ativistas do PCP e das variadas organizações da esquerda mais radical levantaram barricadas para impedir a passagem dos manifestantes de direita que, se esperava, viriam de fora. Soldados se uniram, espontaneamente, às barricadas. As sedes do Bandarra, do Partido Liberal e do Partido do Progresso foram invadidas – propaganda fascista encontrada – e saqueadas. No dia 28 de setembro, as barricadas ganharam mais participação, e carros foram parados e revistados, prendendo-se os ocupantes quando traziam armas. Otelo afirmou ter estado detido no Palácio de Belém por ordem de Spínola. Não houve adesão de massas ao chamado de Spínola. Cento e cinqüenta conspiradores foram presos durante o dia.
Obrigado a renunciar, mas ileso, Spínola entregou a presidência ao general Costa Gomes. Assume, então, o III Governo provisório, permanecendo Vasco Gonçalves como primeiro-ministro. As energias do projeto de neocolonialismo à “inglesa’ não tinham, todavia, se esgotado. Tentarão o putsch “korniloviano” de novo no 11 de março. Mais uma vez, as barricadas levaram muitos milhares às ruas. O segundo golpe foi a última e desesperada tentativa da fração burguesa que se opunha à independência imediata das colônias e contou com a participação da GNR (Guarda Nacional republicana). O RAL-1 (Regimento de Artilharia Ligeira) de Lisboa foi bombardeado e cercado por unidades de pára-quedistas, mas o golpe é desbaratado. Um episódio de negociação acontece, publicamente, diante das câmaras de televisão da RTP (!!!) e sintetiza toda a turbulência de uma quartelada improvisada e sem base sociais significativas.
Desde o 25 de abril, esta foi a terceira vez em que militares se enfrentaram. A primeira foi a crise que opôs a Coordenadora do MFA e Spínola, em busca de reforço da autoridade presidencial, e levou à queda de Palma Carlos e do I governo provisório. A segunda foi o no 28 de setembro quando Spínola ordenou a ocupação das estações de rádio. Nas duas primeiras nenhum tiro foi disparado. No 11 de março, o principal quartel de Lisboa foi bombardeado e cercado, e um soldado morre. Ninguém tem mais ilusões que grandes enfrentamentos estão no horizonte. A memória recente do golpe de Pinochet no Chile exerce uma forte pressão sobre a esquerda e sobre a oficialidade do MFA. Seguem-se dezenas de prisões, articuladas pelo COPCON: os comandantes operacionais da força que atacou o RAL-1, e várias lideranças burguesas tradicionais: vários Espírito Santo, um Champalimaud, e um Ribeiro da Cunha
Spínola e outros oficiais comprometidos fogem para Espanha, onde Franco os recebe, e depois, muitos foram se refugiar no Brasil. Na seqüência, os trabalhadores bancários entram em greve política, e assumem o controle do sistema financeiro. O MFA cria o Conselho da Revolução, e decreta a nacionalização dos sete grupos bancários portugueses mais importantes. Muitas empresas são ocupadas pelos trabalhadores. A burguesia entra em pânico e começa a abandonar o país. Mansões desabitadas são ocupadas, e nelas serão instaladas creches.
Notas:
[1] RODRIGUES, Francisco Martins. Abril Traído. Lisboa, Edições Dinossauro, 1999, p.12.
[2] Marcelo Caetano, Depoimento, Rio de Janeiro, Record, 1974, p.194.
[3] CARVALHO, Otelo Saraiva de, Memórias de Abril, Los preparativos y el estallido de la revolución portuguesa vistos por su principal protagonista, Barcelona, Iniciativas Editoriales El Viejo Topo, s/data, p.163.
[4] VARELA, Raquel. A história do PCP na revolução dos cravos. Bertrand Editora, Lisboa 2011.
[5] A discussão dos tempos da revolução e dos critérios para aferição das relações sociais de força pode ser encontrada no meu livro As Esquinas Perigosas da História, São Paulo, Xamã, 2004.
[6] Lincoln Secco, A Revolução dos Cravos, São Paulo, Alameda, 2004, p.153.