Não é possível compreender a influência poderosa da partidofobia entre os jovens sem denunciar a partidocracia. Não nos deve surpreender se depois de trinta anos de alternância no poder de Sarney, Collor, FHC, Lula e Dilma, todos eles apoiados pelo PMDB e outros partidos de aluguel do grande empresariado, tenha surgido uma partidofobia tão poderosa. O PT nasceu combatendo a política burguesa e seus métodos, e depois se ajoelhou diante deles. Por isso, a forma-partido parece repulsiva para os mais combativos entre os ativistas da juventude. Perguntam-se, com razão: se aconteceu com o PT, porque deveremos acreditar que não acontecerá outra vez, mesmo com aqueles que se apresentam como revolucionários?
A resposta a esta questão exige dos marxistas humildade e paciência. Os jovens militantes têm o direito de desconfiar. A credulidade é uma forma de infantilismo político, e deve ser considerado não só legítimo, mas sinal de maturidade suspeitar da forma-partido, ainda mais quando ela é confundida com a forma partido eleitoral. A pressão do eleitoralismo partidocrático é tão violenta que não pode ser subestimada.
Nos últimos trinta anos, o capitalismo brasileiro se protege através de um Estado que assume, pela primeira vez na sua história por um intervalo histórico tão longo, a forma de um regime democrático-eleitoral. Este regime tem imposto a necessidade de uma partidocracia corrupta. Partidocracia porque o atual sistema de representação política perpetua uma tirania.
A partidocracia é uma tirania porque, apesar de ocorrerem eleições a cada dois anos, o monopólio do poder está nas mãos dos partidos que construíram relações orgânicas com a classe dos capitalistas para garantir o financiamento milionário necessário para vencer eleições. Campanhas de vereadores e deputados, para não falar de senadores, prefeitos governadores e presidentes, demandam muitos milhões, e estão entre as mais caras do mundo. O maior partido político do país, o PT, que nasceu como uma ferramenta de luta contra o capitalismo se adaptou de tal forma ao regime, que se transformou em um dos principais instrumentos da defesa da paz social e da ordem.
Em face desta partidocracia a esquerda se divide, grosso modo, em três posições: (a) os que acreditam que é possível reformar a democracia-eleitoral, e lutar para que o Estado regule o capitalismo eliminando as formas mais selvagens de exploração, e priorizam a participação institucional; (b) os que defendem a necessidade dos trabalhadores e da juventude de se auto-organizarem em movimentos sociais por suas reivindicações para a ação direta, mas são radicalmente contra a forma partido e definem-se como horizontalistas; (c) os que defendem uma revolução política e social para derrotar o regime e o capitalismo, e querem construir um partido revolucionário internacional. O argumento deste artigo é a defesa desta terceira posição e, portanto, a crítica tanto da partidocracia, quanto da partidofobia.
A mais dramática expressão da partidocracia foi o Lula lá, a esperança de uma geração inteira de que a saída para o Brasil seria a eleição da direção do PT/CUT. A partidocracia requer máquinas monstruosas. O financiamento destas campanhas é impossível sem a lealdade dos partidos aos seus financiadores, mais ou menos, ocultos: banqueiros, industriais, empreiteiros, latifundiários, usineiros, pecuaristas, enfim, as grandes empresas. A forma do regime democrático-liberal tem sido um presidencialismo de coalizão. Ou seja, uma divisão de poderes em que o executivo é de longe a instituição mais poderosa. Mas depende de uma maioria no Congresso Nacional, ou nas Assembleias Legislativas, ou nas Câmaras de Vereadores. O que exige uma aliança que alimenta um mercado político. Lula, o PT e a CUT, além de seus satélites como o PCdB, se renderam a estas pressões sociais e institucionais.
As diferentes frações burguesas garantem a defesa dos seus interesses através de representantes que são eleitos em distintos partidos. Por isso temos no Congresso Nacional a bancada dos chamados ruralistas, das telecomunicações, das empresas de distribuição de energia, dos banqueiros, das grandes construtoras, do ensino privado, dos planos de saúde, etc.
É verdade que qualquer organização humana corre o perigo de desenvolver interesses próprios. Não obstante, não há luta que se possa sustentar sem organização. A defesa de uma reivindicação, das mais simples, como a luta contra o aumento de passagens, até as mais complexas, como a luta pela suspensão do pagamento da dívida pública para garantir verbas para a educação e saúde pública, é a luta por um programa. A cada programa corresponde uma forma de organização. As redes sociais são facilitadoras de organização presencial, mas não podem substituir a necessidade de compromisso. Qualquer luta séria exige um acordo sobre o programa que não pode dispensar a construção de relações de confiança impossíveis entre aqueles que só se conhecem como amigos virtuais. Sindicatos, movimentos, redes, lutam por reivindicações parciais. Um partido, mesmo que não se denomine como partido, é uma organização que tem um programa para a sociedade. No Brasil há movimentos que são partidos, e incontáveis legendas eleitorais de aluguel que não o são.
As formas de organização, por suposto, devem ser adequadas aos objetivos das lutas. Lutas econômicas se expressam através de sindicatos. Lutas populares através de movimentos populares. Os sindicatos foram, tradicionalmente, as maiores e mais importantes organizações de frente única no Brasil. Ainda o são. Mas já existiam alguns, e surgiram inúmeros novos movimentos que não se delimitam em função da defesa dos interesses de um setor dos trabalhadores. Os movimentos populares por moradia e pela reforma agrária, ou os movimentos de mulheres, os antirracistas e os anti-homofóbicos são os mais representativos das formas de organização que têm suas raízes na reorganização do final dos anos setenta. O movimento pelo passe livre é significativo da reorganização mais recente.
Lutas pelo poder só podem ser eficazes através de partidos. A luta de partidos entre si é a forma mais complexa do conflito político. Pode parecer somente uma luta entre líderes, mas é uma luta entre os interesses sociais que cada partido representa. A luta de partidos é uma parte fundamental da luta de classes. No mundo contemporâneo nenhuma classe é tão homogênea que possa se expressar através de um só partido. Acontece que, para os que vivem do trabalho assalariado, a busca de representantes é muito mais difícil do que para aqueles que vivem da renda do capital. Não é incomum que um chefe sindical operário se venda para os seus patrões, mas é raríssimo que um filho de capitalistas se comprometa com os interesses dos trabalhadores.
As pressões da burguesia sobre as organizações operárias e populares são, portanto, muito mais poderosas que o inverso. Portanto, resumindo e como em qualquer resumo, simplificando, a questão do partido revolucionário socialista repousa em duas condicionantes: (a) como garantir que todos os militantes possam expressar suas opiniões sem medo e em igualdade de condições; (b) como garantir o controle, vigilância, ou domínio do coletivo sobre os dirigentes. Isso é possível? Sim, é difícil, mas é possível. Os trabalhadores e a juventude podem construir ferramentas e aprender a controlá-las.
A superioridade da forma-partido se explica porque os sujeitos coletivos são mais eficientes para lutar e vencer. A solução encontrada pelo marxismo revolucionário, inspirado por Lênin, foi o regime do centralismo democrático. O centralismo garante a capacidade de resposta unificada. A democracia, ou seja,m se discute e se vota, é mais funcional que qualquer outro regime de funcionamento político, porque permite corrigir os erros. As minorias podem tornar-se maiorias, sem o perigo da fragmentação constante.
Esta questão é decisiva porque estamos vivendo um processo de reorganização da esquerda no Brasil. Uma reorganização em várias dimensões. Esta reorganização é um processo muito difícil e, até agora, lento, incompleto, um pouco confuso, mas, extraordinariamente, progressivo e dinâmico. Encerra muitas oportunidades e perigos. O ciclo histórico de influência amplamente majoritária do PT e do lulismo começou a se fechar na década passada. Está em disputa para onde vai, qual é sua dinâmica, que forças irão emergir como as mais sérias, sólidas, e promissoras. Processos desta importância são raríssimos. Abrem-se no intervalo de uma geração, depois de algumas décadas de experiências.
Esse processo tem conhecido ritmos e formas diferentes no interior dos movimentos organizados e na dimensão política, ideológica e, sobretudo, eleitoral. Tem sido mais acelerado no movimento estudantil do que no sindical, por exemplo. Os jovens que não viveram a fase final da luta contra a ditadura, portanto, menos crédulos no papel de Lula, Zé Dirceu, Mercadante, ou Tarso Genro, desembaraçam-se com muito mais facilidade dos representantes do governo Dilma nas universidades.
Tem acontecido, também, com maior frequência os trabalhadores elegerem revolucionários para os sindicatos do que para o Congresso Nacional. A ruptura com os velhos líderes, e até com os aparelhos da velha direção (CUT, UNE, Central de Movimentos) ocorre com maior velocidade do que a ruptura com as ilusões reformistas de regulação do capitalismo.
Há uma importante polêmica na esquerda brasileira sobre como deverão funcionar as organizações de frente única, aquelas em que nos unimos todos para lutar por um programa parcial. O conflito de ideias e opiniões sendo incontornável, a questão de como tratar as divergências é um dos aspectos centrais de qualquer coletivo humano. Não é possível e, tampouco seria correto, impedir os que participam de partidos de atuar em organizações unitárias. Seria burocrático: você é do partido y ou z, maoista, anarco-sindicalista, trotskista, ou outro, e não pode. Só pode quem não tem adesão, identidade ou compromisso com um projeto estratégico.
A questão em debate remete à interpretação de qual seriam as formas mais eficazes e mais democráticas de funcionamento. Existem duas posições. Aqueles que defendem o método do consenso, e aqueles que defendem o método da democracia. Evidentemente, é possível usar os dois e são, de fato, utilizados todos os dias. Mas isso não resolve o problema. Porque pequenas diferenças permitem a arbitragem através de sucessivos consensos. Mas quando as diferenças são mais importantes não. Porque neste caso o consenso só é possível com a construção do meio termo. E o meio termo é sempre a posição de denominador comum, ou seja, aquela, politicamente, mais recuada.
Que a democracia seja superior não é o mesmo que dizer que o consenso não pode ser também útil, em certas circunstâncias. O consenso é a paixão pela unanimidade. O consenso é o direito de veto de um só. A procura do consenso é legítima em qualquer organização humana, mas responde ao critério da procura do mínimo acordo possível. Em política marxista, o denominador comum é, invariavelmente, a posição mais moderada dentro de um coletivo. O direito de voto é o direito de decisão da maioria. O direito de voto demonstrou-se, não só mais democrático, mas, também, mais funcional que o direito de veto. Porque é necessário ousar lutar, mas lutar para vencer.
Notas:
[1] MORENO, Nahuel. Problemas de Organização, 1984.
https://www.marxists.org/portugues/moreno/1984/07/16.htm. Consulta 19/03/2014.