Não sendo apto a criticar a forma estranhada pela qual prioritariamente se opera a produção material em nosso tempo, o pretenso cientista naufraga na destituição arbitrária de sua importância fundamental no processo de auto-constituição do humano por meio de sua necessária apropriação cooperativa da natureza. E uma vez tendo promovido essa distorção dos fatos mais elementares, com a qual o problema real é apenas varrido por ele para debaixo do tapete, dedica-se à desqualificação covarde daqueles que se opõem ao seu dogma delirante em uma discussão supostamente pública sobre o tema, da qual fui excluído aos palavrões por discordar ao invés de assentir.
Somente purgando fantasiosamente do trabalho os elementos subjetivos que lhe são inerentes em todas as suas formas, e deste modo desnaturando a própria subjetividade humana (que se vê desconectada das instâncias materiais que necessariamente impulsionam sua constituição e propiciam suas mais diversas manifestações concretas), podem-se conceber âmbitos e dimensões da vida propriamente humana que não tenham na produção consciente e voluntária de riqueza material sua condição última de possibilidade e seu estímulo mais remoto. Somente descaracterizando fantasiosamente todas as formas de atuação especificamente humanas, apartando-as imaginativamente do processo de adequação voluntária das circunstâncias objetivas por meio da atividade concreta (isto é, da atividade laborativa), pode-se ver nelas o livre exercício de faculdades puramente espirituais, o qual transcorreria paralelamente a uma atividade laboral puramente acessória. Somente descaracterizando desse modo o trabalho e as demais dimensões do homem podem-se conceber essas últimas como autônomas e aquele como indiferente.
Parecendo equilibrar-se sobre tal fantasia idealista tardia, rescendente a Hannah Arendt e segundo a qual o trabalho não passa de um expediente brutal destinado à garantia de subsistência, Castro nega que a atividade laboral seja a essência do humano. Mas não o faz, como seria recomendável, para negar a idéia metafísica de essência, por meio da afirmação de sua historicidade. Ele o faz justamente em nome de uma metafísica do simbólico desencarnado, de uma essência humana subjetiva! Arroja o trabalho para um canto, nos fundos, e põe em seu lugar uma pretensa atividade não laboral, puramente espiritual, existente apenas nos devaneios dos mais pueris idealistas.
Incorrendo em uma façanha ainda mais surpreendente, o lastimável antropólogo nega que a apropriação cooperativa da natureza por grupamentos humanos, somente em meio à qual os indivíduos interativos se apropriam de si mesmos e uns dos outros enquanto humanos, possa assumir formas não alienadas – não obstantes os vários exemplos contrários que se pode elencar a partir de registros etnográficos seculares. Afirma que, independentemente da forma social específica sob a qual se vive em dado grupo, o trabalho ali realizado será sempre alienado.
Assim, além de apartar arbitrariamente os âmbitos material e ideal da produção humana, atribuindo a este último um desenvolvimento absolutamente autônomo, o antropólogo nega ao primeiro qualquer desenvolvimento, ancorando-o em uma de suas formas históricas!
Em consonância com esse seu surto intelectual, as formas sociais assumidas por grupamentos humanos diversos ao longo dos milênios podem ter sido as mais diversas, mas a essa diversidade espiritual não correspondeu senão uma forma estática, trans-histórica, de produção concreta de riqueza. Por mais que os diversos âmbitos de interação humana pudessem assumir formas as mais inusitadas e combinações igualmente inéditas entre si, tudo sempre foi suprido materialmente por meio das mesmas relações de trabalho assalariado que caracterizam hegemonicamente nossos dias, restringindo as modificações ao âmbito puramente tecnológico. Tudo é de fato como se representa nos desenhos animados: dos Flintstones aos Jetsons, só vigeram as relações de produção capitalistas, mudando os equipamentos com que são postas para operar tais relações.
A aparente plenipotência criadora do humano restringe-se, portanto, num ponto: a produção material, embora diversa no tocante aos produtos a que dá origem, é sempre a mesma quanto à sua forma. Os homens em sociedade podem criar arbitrariamente o que bem entenderem, de idéias a bens de consumo materiais, mas jamais poderão engendrar uma forma concreta de intercâmbio produtivo que não seja marcada pela apropriação privada da riqueza socialmente produzida. Capazes de instaurar e modificar à vontade o que quer que diga respeito à sua interação espiritual, bem como capazes de facilmente criar os produtos que sua excentricidade sugerir, os homens nada podem quando o que está em jogo é a forma mesma da produção, isto é, quando o que se questiona são as relações de propriedade em meio às quais se dá a adequação cooperativa do natural ao humano. Não o podem em absoluto, não obstante jazer nesse âmbito a raiz de seus infortúnios mais traumáticos!
Então, para Castro, trabalho é trabalho alienado, incondicionalmente. E ele o afirma baseando-se no simples fato de que é alienada a forma atualmente hegemônica do trabalho, tal qual operavam os economistas políticos dos séculos XVIII e XIX criticados há mais de cem anos por Marx!
Interpelado por tudo isso, o aspirante a sacerdote simplesmente dá birra. Dá um chilique por ser lembrado, diante de seus fiéis, de que o humano só pode produzir-se enquanto tal por meio da manipulação efetiva e conjunta de seu ambiente, seja motivado por qualquer propósito ou tipo de propósito, sendo as demais instâncias de sua humanidade condicionadas (por processos muitíssimo diversos dos mecanismos unilaterais propostos por marxistas de manual) pelo modo como se promove essa mesma manipulação cooperativa. Xinga e esbraveja quando alertado de que esse mesmo modo radica em relações sociais de produção bem concretas e se desdobra em inúmeras outras instituições que lhes são subsidiárias, que podem ou não ser marcadas pela subordinação de uns por outros, como ocorre em sociedades de castas ou classes, por exemplo.
Embriagado pela prece pós-moderna de que o humano se constitui pelo simbólico, nosso dublê de Marshall Sahlins perde de vista que até mesmo o atendimento às nossas necessidades mais distantes da materialidade depende da manipulação conjunta da natureza para a sua satisfação. Essa dependência se ilustra, por exemplo, pela devastação de todas as florestas da Europa como condição incontornável para a edificação das “etéreas” catedrais diante de cujas fotos suspiram, em êxtase espiritual, fiéis e estudantes de arte de todo o mundo. Exemplifica-se também pela abertura de pelo menos uma clareira na floresta como condição para que se pudesse dar início à propagação forçada dos gemidos cristãos em terras hoje brasileiras, a que se complementou materialmente com a roupinha ridícula do padre e uma pesada cruz de madeira.
Antes disso ainda, ele se descuida do fato de que não só sua satisfação, mas essas necessidades mesmas se referem, em última instância, àquela manipulação objetiva do ambiente, em vários de seus aspectos. No Egito, por exemplo, as necessidades “espirituais” que estão por trás da construção das pirâmides se referem à prorrogação, em outro mundo, da vida material que neste mundo se vive, o que justifica que aqueles que se faziam enterrar nas suntuosas (embora soturnas) pirâmides exigissem que consigo fossem sepultados boa parte de seus serviçais e de seus pertences. Na versão cristã do mesmo presunçoso delírio, a vida eterna não é vista senão como uma reprodução dos prazeres mundanos propiciados pela riqueza, sem a desagradável companhia dos sofrimentos causados por uma forma alienada de trabalho. Trata-se de uma reedição daquilo que provavelmente os egípcios já haviam colhido e reformulado, também já em contexto de dominação e exploração, como fizeram os autores e acólitos da bíblia cristã.
Em uma igreja, os fiéis mais fervorosos são geralmente aqueles que mais problemas enfrentam em sua vivência profana do mundo, principalmente aqueles relacionados às condições materiais de sua auto-realização, por participarem de modo extremamente desvantajoso no processo produtivo, usualmente como trabalhador compulsório, não livre. Um ali reza por um emprego para si ou para o filho, outra reza para que o marido largue o álcool e busque uma ocupação, outros ainda rezam para esse ou aquele deixar o vício das drogas e tornar-se alguém, submetendo-se como força de trabalho alugada em troca de subsistência enquanto “recurso humano”.
Tudo isso se refere à materialidade especificamente humana de um modo geral, a qual é, sim, permeada por símbolos, mas não determinada a priori por eles – o que se prova irrefutavelmente e com simplicidade, por exemplo, por meio da precedência da necessidade de nutrição com relação àquelas próprias à arte culinária e destas com relação à alta gastronomia e por aí vai. Mas, como a materialidade humana nunca é geral, consistindo em cada caso de uma forma sócio-histórica muito específica, embora fluida, trata-se aí de sua forma social atual, em que os problemas concretos dos indivíduos podem e tendem a ser encaminhados para âmbitos em que não encontram qualquer solução, mas suscitam algum alento, ao mesmo tempo em que propiciam o fortalecimento de aproveitadores diversos, tais como gestores públicos, sacerdotes e detritos afins.
Por certo que nessa forma, como em outras que a precederam, podem apresentar-se como fundamentais as demandas mais distantes da materialidade; mas jamais poderão se apresentar e se satisfazer quaisquer carências absolutamente independentes dessa mesma materialidade. Não há necessidade puramente espiritual!
Então, um sujeito pode ser hoje ovacionado por ser o maior dos chefs de cozinha, por exemplo, e o seu propósito ao cozinhar pode perfeitamente ser o de se ver elevado a uma espécie de celebridade por isso; sua necessidade pode, portanto, ser prioritariamente subjetiva (como inúmeras o são), mas para ser capaz de senti-la e satisfazê-la ele jamais vai poder prescindir da materialidade e da trama concreta que os indivíduos estabelecem entre si para geri-la conforme sua suposta conveniência. As relações doentias características de nosso contexto específico fornecem o substrato no qual podem engendrar-se necessidades como essas, assim como outras mais ou menos fúteis, embora não devam ser entendidas como uma fonte da qual irão emanar necessariamente.
O senhor Viveiros de Castro, acompanhando muitos outros e seguido também por uma enorme cauda de bajuladores, não percebe que jamais um grupamento humano pode ou mesmo poderia estabelecer previamente uma trama complexa de significações para, aí sim, dedicar algumas horas de sua vida coletiva à busca por suas mundanas condições de efetivação. Não é do ventre das idéias espontâneas que vêm à luz o trabalho e a própria economia. A manipulação consciente e voluntária da natureza, conquista cultural primeira e condição incontornável do lazer e de práticas espirituais elevadas, é estabelecida a princípio sob a premência das mais imediatas necessidades, cuja satisfação reiterada e refletida engendra a sofisticação e a complexificação das mesmas demandas e, conseqüentemente, das capacidades necessárias para sua satisfação. É no ambiente progressivamente tocado pelos ganhos do processo interativo de auto-reprodução que se vêm criando uma após a outra as várias formas de interação humana a que autores como o senhor Castro atribuem status mais elevado. Muitas dessas formas só se desenvolvem em fortalecimento ou em combate, velado ou aberto, às relações mais fundamentais por meio das quais se dão as intervenções materialmente produtivas no ambiente. O exemplo egípcio arrolado acima é ilustrativo também aqui, dado que muitas das necessidades expressas e satisfeitas no processo de construção das pirâmides e tudo o mais relacionado aos referidos sepultamentos colossais consistem em mecanismos de reforço de relações específicas de dominação. As formas diversas de atuação propriamente humanas não são arbitrariamente definidas por seus praticantes sem quaisquer referências às condições materiais propriamente ditas, como os recursos naturais e as ferramentas para sua exploração, e às relações mais fundamentais em meio às quais se manipula materialmente o mundo, relações de propriedade muitas vezes mantidas à força física.
Não é por mera coincidência que as narrativas míticas e demais representações de si e de sua relação com o mundo que se podem encontrar em cada povo ou conjunto de povos remetem aos alimentos de que se servem seus membros, aos perigos naturais e culturais a que estão sujeitos, às relações objetivas de propriedade e disposição de recursos por meio das quais regulam sua interação efetiva, às funções diversas de cada pessoa no processo de reprodução material do grupo mesmo, inclusive na procriação, questão de suma importância em qualquer grupamento humano de que se tenha notícia. Somente uma reflexão antropológica viciada pode ver mera arbitrariedade, por exemplo, nos tabus relativos às relações sexuais; ou é capaz de enxergar nessa reprodução biológica algo absolutamente indiferente com relação às condições sócio-históricas materiais de produção do grupo.
É evidente que um grupo humano pode se formar com base em valores, princípios e representações diversas já ostentados por seus componentes, estejam eles em acordo ou não; mas igualmente factual é que isso decorre de ser esse grupo descendente de outro ou outros, dos quais derivam aqueles elementos simbólicos, certamente vinculados às suas condições reais de vida. Outro fato que não se pode questionar é que, dadas as novas condições materiais que necessariamente irá enfrentar esse novo grupo, os valores originariamente ostentados por seus componentes irão sofrer consideráveis modificações, em si mesmos e em sua trama complexa. A vida a ser levada por esse grupo terá suas condições de desenvolvimento determinadas pelas relações que os mesmos indivíduos irão estabelecer entre si no tocante à disposição e ao direcionamento da atividade produtiva material, cuja complexificação irá engendrar novas demandas e assim por diante, dando origem a novos âmbitos de atuação propriamente humana. Poderão surgir no seio desse grupo necessidades aparentemente de todo desconexas da materialidade ou apenas acidentalmente ligadas a ela, mas sua conexão real jamais poderá ser eliminada, por mais que contra isso possam vociferar os antropólogos especulativos.
Quando não se trata em abstrato das possibilidades de um grupo isolado, mas se lida analiticamente com a trama real característica do sistema capitalista global, a centralidade, o caráter fundamental do processo de produção material ressalta com força ainda maior, quando não se descura da obviedade de que o desenvolvimento científico atual não é senão uma dimensão do processo de trabalho social geral, bem como do fato inconteste de que a produção que se realiza em cada um dos múltiplos âmbitos de atuação humana não é senão uma parcela da reprodução material geral da realidade humana. Também impossível de ocultar de uma investigação legítima é o fato de que a forma atual dessa mesma produção, marcada pela submissão da produção mesma ao lucro privado dos proprietários dos meios, é restrita a esse mesmo contexto. Do mesmo modo, é evidente que sua modificação em escala planetária não só é desejável como possível, embora esteja bem longe de ser algo de fácil realização.
Mas tudo isso escapa à sensibilidade obtusa e à reflexão canhestra de nosso paradoxal revolucionário pós-moderno, assim como lhe escapa o quão patético é fazer frente ao cataclismo social característico do sistema social do trabalho alienado tipicamente capitalista lançando mão de uma afirmação dogmática de que o especificamente humano nada tem a ver com o trabalho, cujo caráter conservador não pode ser ocultado pela forma rebelde de uma pichação de muro.