Na política, distorcer as posições de um adversário é prática corrente, embora pouco honesta. Amplificar as contradições, explorar as lacunas do discurso, reduzir as posições do opositor a uma caricatura, são recursos comuns num embate de ideias. Por isso, tratar determinados temas com profundidade torna-se quase impossível quando o ambiente da polêmica está tomado por extremos. É o caso das análises sobre a situação política na Ucrânia. De um lado, setores acostumados a ver revoluções onde elas não existem. De outro, aqueles que, aterrorizados cada vez que as massas tomam as ruas, associam qualquer crise social ao prenúncio de golpe.
Alguns eventos no Oriente Médio ilustram bem essa dicotomia. Na Líbia e na Síria, por exemplo, a história acabou por dar razão aos que defendiam a tese de que os movimentos de oposição aos governos desses países nada tinham de revolucionários. Na Síria, os tais “elementos progressistas” nunca apareceram, e a oposição está cada vez mais dividida – e em guerra aberta! – entre extremistas islâmicos e aliados do imperialismo. Na Líbia, onde a oposição derrubou o “regime” com o apoio da OTAN, o que surgiu não foi um governo popular, mas um enclave imperialista. Mas até que os contornos da situação política estivessem definidos, qualquer um que questionasse a tese da revolução nesses países seria classificado como simpatizante de Kadaffi e Assad – ou simplesmente, como “neo-stalinista”.
No caso da Ucrânia, os extremos tomaram a cena mais uma vez. Entre os que anunciaram uma revolução e os que viram um golpe de estado, todos parecem ter errado. E erraram porque o que está em curso na Ucrânia não é nem golpe, nem revolução. Não é golpe porque o fator decisivo na queda do governo de Yanukovich foi a mobilização popular. O governo não foi derrubado por militares ou forças estrangeiras, mas por um potente e contraditório movimento de massas. Vale lembrar que, diante da violência disseminada pela polícia contra os manifestantes, foi o presidente que optou por renunciar. Nesse processo, a influência de bandas fascistas é só a face mais visível da hegemonia conservadora que tomou o movimento. Semelhante na forma, a Praça Maidan em nada se assemelha no conteúdo ao levante popular de sua homônima Tahrir.
Se a derrubada de Yanukovich – líder de um governo corrupto e violento – não foi obra de um golpe como muitos afirmaram, tampouco foi produto de uma revolução. Primeiro porque as características fundamentais de um processo revolucionário não estavam dadas. Nas palavras de um importante revolucionário bolchevique, “a revolução só pode acontecer quando as massas estiverem preparadas para se levantar e quando, além disso, as classes dominantes se mostrarem incapazes de sustentar a velha ordem”. Não parece ser essa a situação na Ucrânia.
Alguns dirão, seguindo seu roteiro dogmático, que essa é a etapa “democrático-burguesa” de uma revolução em disputa. Nesse esquema, estaríamos vendo o fevereiro ucraniano, em alusão à primeira fase da revolução russa de 1917, quando os mencheviques lideraram o governo provisório após a queda do Czar. Infelizmente, porém, esse script não explica os eventos em curso na Ucrânia. Primeiro, porque Yanukovich não é um monarca isolado e enfraquecido, mas um líder conservador com apoio em parte importante do território ucraniano; segundo, porque o governo composto após a renúncia do presidente em nada se parece com o governo menchevique; e terceiro, porque não há uma força revolucionária em condições de influenciar as massas que tomaram a Praça Maidan.
Mas se não estamos diante de um golpe ou de uma revolução, o que está acontecendo na Ucrânia? Temos poucos elementos para uma explicação definitiva, mas é provável que a crise social que se aprofundou nos últimos anos a partir da situação econômica da Ucrânia tenha dividido a burguesia em duas grandes frações, uma aliada à Rússia e outra à UE. Com o desgaste do governo de Yanukovich, a fração favorável à aproximação com o Ocidente se fortaleceu, liderando um campo de partidos e movimentos e encarnando a voz da Maidan. A pressão das ruas, dessa forma, serviu aos interesses de uma fração conservadora, pouco importa se melhor ou pior que aquela que estava no poder.
É preocupante que experientes militantes internacionalistas sigam insistindo na tese da “revolução popular” ucraniana, já que essa postura desarma a crítica ao novo governo e impede um olhar crítico do processo. E mais, que vejam na tomada do poder por fascistas e liberais a continuidade da obsessiva tese da “derrota da burocracia stalinista”, algo tão ultrapassado que só os ideólogos da extrema-direita brasileira teimam em sustentar.
Não se trata, porém, de reproduzir a ideia – igualmente ingênua – de que as massas foram simplesmente “manipuladas” pelo imperialismo. Na verdade, elas tomaram as ruas com um objetivo comum: derrubar Yanukovich. Esse era o “programa” da Maidan. O problema é que, ao legitimar as frações pró-imperialistas que tomaram a dianteira do processo, as massas optaram objetivamente por uma saída conservadora, assim como aconteceu com a queda da União Soviética e seus satélites, para usar o exemplo tão caro a alguns companheiros. Como chamar isso de revolução?
O tema da Criméia, do referendo que anexou o território à Rússia e as ameaças dos EUA e da UE tornou o cenário ainda mais delicado. Estes, porém, não são temas para esta reflexão. Por ora, devemos atentar para o limite das teses que afirmam que o lócus da revolução mundial são as praças, ou que traçam uma linearidade entre os eventos no Egito e na Ucrânia, tentando encaixar a realidade em esquemas pré-determinados e incapazes de explicar a complexidade de determinados fenômenos. Afinal, insistir nessa opção, além de limitar a crítica, soa sempre um pouco ridículo.