Esta semana foi anunciado um acordo em que, no fim da greve, os estivadores ganharam mais do que quando ela começou. Um sindicato serve para isto, não serve para gerir a miséria, como temos visto tantos exemplos. Exemplos lamentáveis como «conseguimos que só 1400 fossem despedidos» (na Banca); «lutamos pelo subsídio de desemprego para funcionários públicos em vez de lutar contra os despedimentos» (na Função Pública); «conseguimos que só os com menos de 5 anos de trabalho façam prova» (nos Professores). Há algum tempo que anunciam: «obtivemos a certeza de que só nos cortam um braço, caros senhores, porque a proposta era cortarem os dois!».
O Sindicato dos Estivadores saiu com os dois braços e uma camisola nova: 47 trabalhadores despedidos foram reintegrados, alguns em melhores condições do que estavam antes (eram precários há 6 anos e passam a contrato sem termo) e abre-se espaço à formação qualificada de 20 novos trabalhadores.
Os estivadores estiveram 2 anos em greve, não por si directamente, mas pelos outros. Exigiam para si nada. Mas para os outros o mínimo do aceitável — quem quer que trabalhasse no Porto de Lisboa tinha que trabalhar com os mesmos direitos dos que já lá estavam. Perceberam a tempo que a precariedade dos mais novos seria uma pressão a curto prazo sobre eles próprios. Os patrões e a tutela disseram-lhes para não se preocuparem que os direitos deles não seriam postos em causa e eles responderam «os direitos ou são de todos ou não trabalhamos». Conheço, sem qualquer exagero, centenas de greves no século XX, em Portugal e no mundo, cujo caderno reivindicativo exigia os mesmos direitos para todos os que trabalham, reintegração de trabalhadores despedidos, recusa de diferenciação salarial sem estar ancorada na formação e mesmo, em situações revolucionárias, imposição de tectos salariais, salário igual para trabalho igual (trabalho feminino, em particular). Os estivadores não são excepcionais. Excepcional e suicidário foi o padrão de sindicalismo que se viveu em Portugal nas últimas décadas e que sistematicamente negociou a conservação de direitos para os que estavam e aceitou a precarização dos que vinham.
“Queremos mais pessoas a trabalhar connosco, mas queremos que tenham os mesmos direitos”. Este lema da greve é o código genético de qualquer movimento sindical decente – não é preciso ser revolucionário ou radical, basta perceber que um sindicato ou é para ganhar direitos para quem trabalha ou não serve para nada. Este é um exemplo, aliás, de reformismo sindical. Os Estivadores não colocaram directamente em causa o poder político, nem estão associados a uma estratégia revolucionária de derrube do Estado. Não questionaram o modo de acumulação capitalista, nem pediram a nacionalização dos portos. Fizeram o mínimo para si e os seus, e esse mínimo, hoje, paradoxalmente, surge como revolucionário, tal é o padrão baixo de onde partimos ao fim de 4 décadas de pacto social, moldados pela incapacidade de lutas sociais que ganhem direitos laborais mínimos de civilização, num país onde 3 milhões de pessoas não vive sem ajudas sociais e mais de meio milhão de pessoas ganha o salário mínimo e não consegue sequer alimentar-se e chegar ao fim do mês.
A pressão que sofreram estes dois anos foi duríssima: mentiras despudoradas de pessoas com responsabilidades públicas; e Bruno Bobone, representante da ACL (Associação Comercial de Lisboa), chegou mesmo a dizer que os estivadores “tinham que desaparecer”. Os Estivadores responderam com uma greve que se resumiu a isto: trabalhamos, mas assim que entrar nesta porta um trabalhador precário paramos. De tal forma que, numa greve de vários meses, só pararam um dia!
O sindicato dos Estivadores tem algumas particularidades: tem 100% de sindicalização; mas isso não chega. De que serve ter 100% de sindicalização se tudo for negociado entre elites burocratizadas? Reúne-se, por vezes semanalmente, em plenário. Não houve qualquer negociação ou ideia que não passasse por um plenário geral de trabalhadores. Isso significa que os dirigentes e a base estão no mesmo barco e são responsabilizados colectivamente pelos erros e acertos. Significa que os desvios burocráticas são travados. Também os estivadores de Barcelona reúnem todas as semanas, estejam ou não em greve. Isso cria democracia, é a base da confiança. Os dirigentes são homens de ferro que resistiram a pressões objectivas e morais sérias. Esta luta foi, como se sabe, apoiada por uma greve europeia de duas horas, a única greve de solidariedade na Europa desde a crise de 2008. E não é porque eles têm um sindicato internacional, porque existem outros e maiores, é porque este sindicato internacional luta e os outros não!
Finalmente, esta greve não foi feita para marcar calendários eleitorais, nem como válvula de escape do descontentamento dos trabalhadores. O Sindicato dos Estivadores é independente da UGT e da CGTP e isso manteve-o longe da estratégia de rebaixar as lutas ao fortalecimento dos partidos da oposição, à ideia de uma saída eleitoral para as questões laborais. Ao fim de 40 anos de democracia-representativa, é por demais óbvio que os direitos laborais nunca foram aí conquistados mas aí, sim, perdidos. O tema é tabu, mas não podemos deixar de abordá-lo — o sindicalismo em Portugal não é sequer um sindicalismo reformista clássico, muito virado para lutas corporativas e de sector, ele é, maioritariamente, uma correia de transmissão da estratégia eleitoral dos partidos políticos e essa estratégia eleitoral, que oferece a quimera de que é nas eleições de 4 em 4 anos e não nos locais de trabalho que se muda a vida, tem sido uma estratégia suicidária. A outra, esta, foi vencedora. Sem glorificação agigantada, esta vitória tem de ser celebrada.