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Valério Arcary

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Em coluna

Do petismo ao lulismo

Valério Arcary - Publicado: Terça, 18 Fevereiro 2014 02:15

Estudar a história do PT é tema imprescindível para a esquerda brasileira. Porque o perigo de repetir, uma, duas e mais vezes os mesmos erros não é pequeno.


Não nos deve preocupar que haja polêmicas na interpretação. O que deve nos assombrar é que não haja uma discussão, até apaixonada, sobre as mutações do petismo em lulismo.

Existem dois perigos simétricos. O perigo da mimetização, ou da imitação, muito tentador para a geração mais madura de ativistas que viveram a experiência do PT nos anos oitenta, e não se deixaram abater pela desmoralização. Esta impulso consiste em imaginar que com a mesma estratégia, mas com homens e mulheres diferentes, seria possível replicar os êxitos do PT, evitando os seus erros, e obter um desenlace diferente.

E existe o perigo oposto que pode ser, também, muito atrativo, especialmente, para a geração mais jovem, que despertou para a luta de classes depois da eleição de Lula em 2002: desprezar as lições positivas da experiência do PT, como, por exemplo, a importância de um instrumento de organização dos trabalhadores para a luta política, inclusive, quando a luta política se concentra em terreno desfavorável, como nas eleições. E apostar somente no espontaneísmo, ou na militância pela defesa de reivindicações imediatas.

Quais os critérios para a avaliação de partidos políticos?

Permanecem vivas as disputas de critérios para a apreciação histórica dos partidos políticos. Partidos podem ser julgados por muitos fatores, por exemplo: (a) pela composição social de seus membros – militantes ativos ou simpatizantes filiados – ou dos seus eleitores, ou da sua direção; (b) pelas suas orientações e campanhas políticas, e de suas lutas políticas, inclusive, as internas; (c) pelo programa para a transformação da sociedade, ou até pelos valores e ideias que inspiram sua identidade; (d) pelo confronto entre suas posições quando estão na oposição, e quando, eventualmente, chegam ao poder; (e) pelo regime interno do seu funcionamento; (f) pelas formas de seu financiamento; (g) pelas suas relações internacionais; (h) por último, mas não menos significativo, pela história de como todos estes e, quiçá, ainda outros fatores foram se alterando.

Todos estes critérios são válidos, ou mesmo indispensáveis, e a construção de uma síntese a partir do peso relativo de cada um destes, e até de outros fatores exige uma apreciação da sua dinâmica de evolução. Esta análise pode ser mais ou menos equilibrada, na medida em que for mais minuciosa, mais complexa, portanto, mais rigorosa.

Só não se deve é julgar um partido por aquilo que ele pensa sobre si próprio. Para aqueles que usam o marxismo como método de análise das relações sociais e políticas, todos estes elementos são significativos, mas uma caracterização de classe é, finalmente, inescapável, para um juízo dos partidos políticos.

Isto, posto, consideremos, por exemplo, o que nos diz André Singer, um dos analistas mais instigantes do PT que valoriza, sobretudo, que o eleitorado de Lula, depois do primeiro mandato de Lula entre 2002 e 2006, passou a ser o que ele denominou o subproletariado[1], até então, indiferente, ao apelo eleitoral do PT:

“O presente artigo procura responder às questões abertas (…) Parte-se de uma dupla hipótese: a de que o realinhamento eleitoral ocorrido entre 2002 e 2006, de um lado, fez surgir um novo “partido dos pobres” (…) com características que lembram as do PTB anterior a 1964. De outro, que a história do PT, vincada por uma rara conexão entre classe e ideologia radical, constituiu uma alma que ainda o influencia. O PT, em consequência, não poderia ser entendido fora da síntese contraditória que as duas facetas compõem.” [2]

Embora seja verdade que ocorreu um cambio na composição do eleitorado do PT e, sobretudo, da votação de Lula em 2006 e de Dilma em 2010, parece pouco convincente que este fator seja o mais expressivo para compreender a mudança do PT. O argumento da conexão de classe não tem como ser demonstrado. Que o proletariado vote no PT e Lula não prova uma conexão de classe: confirma que os trabalhadores mantêm ilusões no PT e Lula. Mas não o contrário e muito mais importante, ou seja, que o PT e Lula mantenham um compromisso com a classe operária.

O proletariado também votou no passado no PTB, ou MDB, por exemplo. Uma conexão de classe é uma relação que exige reciprocidade e vínculos orgânicos, que o PT teve, porém, perdeu, porque construiu outras relações de classe, com a burguesia, e muito mais fortes. A influência de uma ideologia radical no PT não é um argumento que mereça ser considerado, seriamente, em 2014.

A transformação do petismo em lulismo

Se considerarmos cada um dos fatores anteriormente apresentados e conferirmos um por um, veremos que a conclusão de que uma mudança social na natureza do PT aconteceu é inescapável. A direção do PT entregou a sua “alma”. Tudo mudou, e para muito pior.

Houve algo de admirável, mas, também, perturbador, na verdade, desde o início, na história do PT. Para remeter ao vocabulário cunhado pela literatura, tivemos o momento epopéia, o momento tragédia e até o momento comédia na trajetória em que o petismo se transformou em lulismo.

Tudo o que existe se transforma. Existem continuidades e rupturas. Nem sempre, no entanto, predomina o que era mais progressivo. Muitas vezes, prevalece o que era mais regressivo. O que provocou mudanças sociais e políticas reacionárias nos partidos da classe trabalhadora, se considerarmos os incontáveis exemplos históricos, foi o impacto das lutas políticas e sociais, das vitórias e das derrotas, ou seja, da pressão das outras classes. Quando as pressões socialmente hostis, oponentes, contrárias aos interesses dos trabalhadores foram extremamente poderosas, abriram-se crises nos partidos de origem proletária.

Os partidos operários são muito mais vulneráveis à pressão das classes inimigas do que os partidos que representam as classes proprietárias. Porque o proletariado é uma classe ao mesmo tempo explorada, oprimida, e dominada. É completamente inusitado quando um filho da burguesia adere à causa do socialismo. Mas está longe de ser surpreendente que líderes da classe trabalhadora passem a defender os interesses dos patrões.

Mas estas condições muito mais difíceis não permitem concluir que todas as organizações de trabalhadores estão condenadas à degeneração quando atuam na legalidade, e participam de processos eleitorais. Algumas questões decisivas são: (a) se os partidos de programa socialista são ou não são socialmente proletários na sua composição, portanto, independentes da classe dos capitalistas; (b) se a educação política na teoria socialista, na história das lutas e revoluções políticas e sociais, portanto, no marxismo é uma parte central da vida da organização; (c) se o internacionalismo não é somente um discurso declamatório, mas parte da própria natureza dos partidos; (d) se os seus militantes controlam ou não a sua direção, portanto, se há democracia no seu regime interno, porque não encontraremos dirigentes infalíveis.

O PT de 2014 manteve o seu nome e a maioria de sua direção, ainda que Zé Dirceu tenha sido sacrificado, formalmente, pela crise do mensalão em 2005. Mas o PT que fez aniversário neste fevereiro de 2014 é um partido, qualitativamente distinto, portanto, diferente daquele que surgiu do impulso das greves de São Bernardo em 1980.

Que o PT não é mais o mesmo, não parece algo digno de polêmica. O que continua polêmico é como, quando e porquê este processo aconteceu e, mais importante, na avaliação do que ele é hoje.

Por que degenerou o PT?

Não há mais, há muitos anos, abnegados militantes operários nas suas fileiras. Não há mais campanhas políticas do PT junto ao proletariado, mas somente a defesa incondicional das iniciativas dos governos que dirige. O PT no poder abandonou o seu programa dos anos oitenta, e ficou irreconhecível. O regime interno transformou-se numa farsa com os processos eleitorais diretos, movidos a dinheiro e manipulação de clientela filiada de caudilhos locais, nada muito diferente dos clássicos cabos eleitorias dos partidos burgueses. Não há mais sequer sombra da vibrante luta política interna dos anos oitenta, entre a maioria moderada ou reformista e a esquerda revolucionária. O financimento do partido repousa, quase exclusivamente, no dinheiro que recebe do fundo partidário, das cotizações dos parlamentares e cargos de confiança e, muito mais grave, da arrecadação dos grandes monopólios na época das campanhas eleitorais. As relações internacionais degeneraram-se ao ponto do PT ter sido incapaz de se posicionar diante do genocídio realizado pelo Assad na Síria, com o bombardeio da população civil desarmada, um crime de guerra.

Considerando-se um ângulo histórico, podemos afirmar que o PT nasceu como um partido operário com influência minoritária de massas até 1987, e majoritária, na classe trabalhadora organizada, a partir de 1989; com uma corrente majoritária na direção, desde a fundação, liderada por um bloco político que uniu uma fração da burocracia sindical com aspirações de classe pequeno-burguesas, com um coletivo de líderes com origem na intelectualidade militante que veio da geração de 68, ou acadêmica; um núcleo dirigente que aceitava o papel de caudilho de Lula, simultaneamente, como porta-voz público, e como bonaparte interno de suas variadas agrupações; um programa democrático-radical de reformas, ou seja, de regulação social do capitalismo, que se convencionou denominar de democrático-popular; relações internacionais híbridas que uniam o apoio de uma parcela da hierarquia católica, via Holanda e Alemanha (com relações institucionais minoritárias no Vaticano), o apoio de uma parcela da socialdemocracia internacional (via PS francês e SPD alemão), o apoio de uma parcela do aparelho estalinista internacional (via Cuba e, posteriormente, da Alemanha Oriental); e, finalmente, mas não menos importante, com uma ala esquerda muito fragmentada em diversas organizações, porém, com a peculiaridade da presença de alguns milhares de trotskistas.

Quando dizemos que o PT se transformou, qualitativamente, queremos dizer que ocorreram mais do que variações na composição social do eleitorado, ou no peso regional das votações de Lula. Queremos dizer que aconteceu, também, algo maior que uma mutação nas ideias, nos projetos, e nos programas. Queremos dizer que a relação do PT com a classe trabalhadora se alterou. Para resumir, e como em qualquer resumo sendo brutal, o PT deixou de ser um partido de trabalhadores, com direção pequeno burguesa de 1980, e passou a ser um partido burguês com eleitorado proletário.

Notas:

[1] No artigo que citamos e no livro Os sentidos do Lulismo, André Singer destaca a mudança social e regional da votação de Lula e as diferenças entre o eleitorado de Lula e do PT, como quando sublinha, por exemplo, que: “Entre 2002 e 2006 a renda familiar média do simpatizante do PT havia caído de R$1. 349 para R$985; houve uma redução de 17% para 6% na proporção dos que tinham acesso à universidade entre os que simpatizavam com o PT, e a participação do Sudeste entre os identificados com o partido caiu de 58% para 42%.” SINGER, André. A segunda alma do partido dos trabalhadores. Novos estud. – CEBRAP, n. 88, p. 89-111, 2010. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-33002010000300006&script=sci_arttext.

[2] Ibidem.

Fonte: Blog Convergência.


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