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Gustavo Henrique Lopes Machado

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Alétheia

O retorno do trabalho imaterial

Gustavo Henrique Lopes Machado - Publicado: Sexta, 10 Janeiro 2014 18:07

"Riqueza em dinheiro nada mais é (...) que a riqueza em produtos que foram transformados em dinheiro." Mercier de RIVIÈRE.


Uma breve espiada na história das civilizações que em qualquer época habitaram nosso modesto planeta, não deixa dúvidas de que o trabalho imaterial é uma das categorias que há milênios habitam o imaginário dos homens que por esta terra passou. Diante dos mistérios insondáveis da natureza, das plantas que misteriosamente germinam, da imprescindível luz solar que a cada dia retorna, das misteriosas enchentes do Nilo que no Egito irrompem a cada ano sem que chuva não se veja em lugar algum, enfim, diante de tantos fenômenos tão essenciais para a sobrevivência humana, o homem viu o trabalho imaterial dos deuses. Tudo se passava como no famoso poema do Eclesiastes bíblico:

Nasce o sol, e o sol se põe, e apressa-se e volta ao seu lugar de onde nasceu.

O vento vai para o sul, e faz o seu giro para o norte;

continuamente vai girando o vento, e volta fazendo os seus circuitos.

Todos os rios vão para o mar, e contudo o mar não se enche;

ao lugar para onde os rios vão, para ali tornam eles a correr.

Todas as coisas são trabalhosas;

o homem não o pode exprimir;

os olhos não se fartam de ver,

nem os ouvidos se enchem de ouvir. (Eclesiastes 1, 5-8)

Ora, cada produto da mão humana não é obra de uma "vontade orientada a um fim"? De quem primeiro projetou em sua imaginação um dado produto e através do trabalho moldou os recursos oferecidos pela natureza segundo a finalidade pré-concebida idealmente? Porque razão estes trabalhosos eventos da natureza, estes produtos de proporção infinitamente maior que os singelos vasos de argila, armas e instrumentos de bronze ou ferro produzidos pela mão humana, não seriam obra de seres cuja capacidade seria muitas vezes maior que a do homem? Apesar do abismo temporal que nos separa destas sociedades politeístas, não nos parece difícil compreender pelo menos alguns aspectos que levaram os indivíduos de outrora a ver em todas as partes o trabalho imaterial levado a cabo pela "mão invisível" dos deuses. Tratava-se do trabalho imaterial emanado de seres cuja capacidade e força sobrepujava a humana. Eis a deusa grega Deméter, mãe da terra cultivada, cujo trabalho propicia a terra fértil e o crescimento de grãos nutritivos. Eis o deus Egípcio Hapi, cujo trabalho propícia as cíclicas cheias do rio Nilo, de onde advém a fertilidade e a fartura dos solos. E assim por diante, em uma série infindável de deuses, tão grande quanto os fenômenos da natureza indomável, sem os quais a sobrevivência das comunidades humanas não seriam possíveis nesta terra.

Neste ínterim, sobre o augúrio dos deuses, encontrava-se o homem completamente mergulhado na natureza e em absoluta dependência de suas oscilações e fases, cujos distúrbios levavam a catástrofe certa. A limitação dos instrumentos produzidos pelo trabalho material do homem o deixava refém dos desígnios da natureza.

Eis que em pleno século XXI, quando o homem molda os recursos naturais segundo seu próprios interesses, fabricando inumeráveis produtos, colocando as forças da natureza ao seu serviço e produzindo cada vez mais riqueza, emerge novamente o trabalho imaterial, esta categoria metafísica e obscura, que acreditávamos a muito enviada para o limbo. Caminhando em direções diversas e em múltiplos sentidos faz-se alarde entre liberais, conservadores e mesmo entre marxistas da preponderância do trabalho imaterial na sociedade contemporânea. Analisemos rapidamente alguns destes casos.

Em um artigo recente(1) o economista Ladislau Dowbor destaca que no século XIX o fator-chave da produção era a máquina, mas na atualidade seria o conhecimento. Estaríamos na época da "economia da criatividade", do "capital cognitivo". E para corroborar tal afirmação remete à questão da propriedade intelectual. A cisão é hilária. Todo produto da mão humana exige, obviamente, o conhecimento para produzi-lo, mas tal conhecimento não resultará em riqueza alguma se não for efetivamente utilizado para a produção de algo. No que concerne a este aspecto não há diferença alguma entre os modernos computadores e um instrumento constituído de pedra lascada. Ambos necessitam do conhecimento e do domínio da técnica para sua fabricação, todavia, somente quando o produto for objetivado, fabricado, teremos riqueza. Ora, a propriedade intelectual de um livro ou uma música não redundará em riqueza alguma se tal livro não for editado e a música gravada e ambos vendidos. E é bastante evidente que as disputas pela propriedade intelectual que nos deparamos residem não na competição pelo conhecimento, mas na disputa pela riqueza material que este pode propiciar.

Em seguida, o autor diz que o "computador que utilizamos poderá ter 5% de valor pela dimensão física do produto, e 95% pelo conhecimento incorporado". Inegável sua prudência em conjugar o verbo no futuro: "poderá ter" 95% do valor agregado pelo conhecimento incorporado. Este quadro se dará quando o mundo não for mais o que é, mas espelhar as categorias das utopias do senhor Ladislau Dowbor. Até isto ocorrer, cada parte constituinte do computador, cada circuito, cada chip, cada software pressupõe necessariamente um conhecimento que apenas se materializou em riqueza quando objetivado pela força criadora do trabalho humano.

Mas todas estas afirmações, aparentemente absurdas, são esclarecidas quando Dowbor nos diz que "cada um de nós tem grande quantidade de conhecimentos acumulados, que nos vem tanto de estudos como de experiência prática". Mas para nosso pesar, "compartilhamos apenas uma pequena parte desse conhecimento acumulado. (...) Somando o capital cognitivo acumulado em bilhões de pessoas no mundo, temos aí uma fonte impressionante de riqueza parada ou subutilizada". Como se vê, nosso autor não está preocupado com a riqueza tal como se apresenta em nossa sociedade capitalista, para daí tirar alguma conclusão. Antes de se ater a este mundo funesto, prefere ele criar o seu próprio conceito de riqueza para em seguida reclamar do mundo por não corresponder a este. Na utopia dowbortiana riqueza é o conhecimento acumulado pelo conjunto dos indivíduos do mundo, mas infelizmente este mundo capitalista funesto prefere deixar toda esta riqueza parada e subutilizada, para só levar em conta as mercadorias.

Em seguida, o economista mostra o potencial de sua "teoria" com um exemplo cotidiano: "Se peço um quilo de arroz para o meu vizinho, devolverei o mesmo pacote de arroz, ou o valor equivalente, se não o meu vizinho terá prejuízo. Mas se ele me dá uma ideia sobre como preparar um bom prato com esse arroz, eu ganhei uma boa ideia e ele não perdeu nenhuma. Ele fica feliz por ensinar, eu por aprender". No mundo de Ladislau Dowbor, este Thomas Morus contemporâneo, não precisaremos de um só tostão quando nos dirigirmos a um supermercado ou um shopping center, basta estarmos munidos de um montão de ideias para retornarmos empanturrados de mercadorias. Só não entendemos o que faz tão ilustre professor em um departamento de economia de uma universidade, quando deveria estar à enriquecer nossa literatura no ramo da letras.

Mas vejamos algo um pouco mais sério. Para alguns autores como Dominique Méda e Jeremy Rifkin o trabalho desapareceu, Habermas acredita que foi substituído pela "esfera comunicacional", ao menos como a forma preponderante da sociabilidade humana. Em verdade, a presente questão não passa por se estabelecer tal ou qual esfera da sociabilidade humana é preponderante, mas de compreender a origem da riqueza da sociedade da capitalista. Uma notícia, enquanto tal, não constitui nem riqueza, nem mercadoria, mas sua materialização em um jornal, revista ou livro destinados ao mercado. Da mesma forma, o conhecimento, enquanto tal, não constitui riqueza ou mercadoria em nenhum sentido, mas sua materialização na efetivação de um produto qualquer, evidentemente, destinado ao mercado. Como se vê, não se trata de estabelecer uma valoração dentre as diversas atividades humanas em torno de um critério qualquer, não se trata de estabelecer uma hierarquia de preponderância entre os distintos atributos da sociabilidade humana, como o conhecimento, a comunicação, o trabalho manual, a política. Quaisquer que seja a posição de um dado indivíduo sobre tais questões, nada muda no fato objetivo de que, na sociedade capitalista, riqueza é trabalho materializado em mercadorias.

Outros como Ricardo Antunes insistem na convivência entre as duas esferas do trabalho: a material e a imaterial. Mas o que seria, neste caso, este emblemático trabalho imaterial já que o presente autor parece não considerar o trabalho dos deuses do Olimpo? Ele nos diz que "é expressão do conteúdo informacional da mercadoria, exprimindo as mutações do trabalho operário no interior das grandes empresas e do setor de serviços, em que o trabalho manual direto está sendo substituído pelo trabalho dotado de maior dimensão intelectual"(2). Novamente a confusão repousa na absurda cisão entre trabalho intelectual e manual no interior de uma mesma atividade produtiva, como se o trabalho pudesse ser um sem o outro, como se existisse alguma mercadoria que não fosse produto da intervenção manual do homem, que por sua vez tivesse como pressuposto o domínio do conhecimento técnico e intelectual do seu processo de fabricação, ainda que distribuídos de forma desigual no interior da divisão social do trabalho. Neste mesmo sentido, ao tratar das maquinas ditas inteligentes da indústria moderna, Antunes diz que estas utilizam "o trabalho intelectual do operário que, ao interagir com a máquina informatizada, acaba também por transferir parte dos seus novos atributos intelectuais à nova máquina que resulta deste processo"(3). Como se algum trabalho humano, em alguma época ou lugar, fosse passível de realização sem a concomitante conjugação das aptidões físicas e intelectuais daquele que trabalha. Como se o uso das aptidões físicas não fossem ao mesmo tempo o uso das aptidões intelectivas e como se as intelectivas não fosse a um só tempo desgaste de energia e, assim, também físicas. Por fim, Antunes desemboca na autocontraditória expressão de "trabalho intelectual abstrato".

Ora, na teoria do valor de Marx, que ele diz reivindicar, o trabalho abstrato é o dispêndio de força de trabalho humano, sem nenhuma consideração pela forma como essa força foi despendida. Trata-se do trabalho humano tomado genericamente como puro dispêndio de energia, cérebro e músculos durante o processo de trabalho. Trata-se de abstrair da multiplicidade dos trabalhos concretos de todas determinações sensíveis e qualitativas, a ponto de ser medido pela sua duração, como tempo de trabalho socialmente necessário. E é justamente o trabalho abstrato, sua vigência permanente na sociedade capitalista, que permite reduzir toda atividade laborativa em um quantum de trabalho. Inclusive reduzir o trabalho complexo (que o senhor Antunes, em sua mente dualista, entende como trabalho intelectualizado) à um quantum de trabalho simples multiplicado. Neste sentido, é a própria noção de trabalho abstrato que dissolve por completo a cisão entre trabalho manual e intelectual como chave na criação de valor e na geração de riqueza sobre o modo de produção capitalista. Aquele trabalho, por assim dizer, mais intelectualizado, que necessitou de maior educação para se capacitar a uma dada atividade, se reduz a um quantum maior do trabalho simples, "que em média toda pessoa comum, sem desenvolvimento especial, possui em seu organismo físico"(4). Em suma, assumir a vigência do trabalho abstrato é assumir que no modo de produção capitalista "a indiferença frente a um gênero determinado de trabalho supõe uma totalidade muito desenvolvida de gêneros reais de trabalho, nenhum dos quais predomina sobre os demais" (5), em que toda atividade laborativa torna-se qualitativamente indiferenciada, pouco importando se o trabalho é dotado de uma maior dimensão intelectual, exceto para aferição do quantum de trabalho transferido ao produto. O trabalho intelectual abstrato é, assim, um absurdo nos termos, é a própria "imagem" do quadrado redondo.

Mas vale ressaltar, que tais imprecisões, como as de Ricardo Antunes e outros autores marxistas que se aventuram pelo tema, tem sua origem em outro lugar: na proporção quantitativamente significativa que os diversos tipos de serviços ganharam no interior das sociedades capitalistas no século XX, sobretudo serviços que empregam trabalho assalariado com a respectiva extração de mais-valia, motor da acumulação de capital. Pensamos que o embaraço no tratamento desta questão se deve, em grande medida, ao fetiche do dinheiro produzido pelas próprias formas de reprodução do capital, que grosseiramente falando, tendem a projetar a riqueza na sua forma universal de representação: o dinheiro.

Ao atuar como representação universal e autônoma da riqueza, o dinheiro encobre os aspectos mais basilares das relações sociais, aparecendo como a riqueza por excelência. Todavia, a base de seu valor é, e sempre foi, o trabalho objetivado, o trabalho corporificado na imensa coleção de mercadorias que continuamente se renova no interior da sociedade capitalista. Vale dizer, o trabalho abstrato que nega os atributos qualitativos dos diversos trabalhos específicos, inclusive aqueles intelectuais. Neste sentido, os inúmeros setores de serviços, por mais essenciais que possam ser para a própria reprodução de capital, por maior que sejam os valores culturais que possamos atribuir a eles, por maior que seja o papel social que possam cumprir, não produzem riqueza alguma. O dinheiro que por estes setores circunda, que por vezes propicia inclusive fortunas imensas, provém da redistribuição da riqueza que se opera na esfera da circulação de mercadorias, quer seja pelo "consumo" de tais serviços pelos trabalhadores assalariados, quer seja por mediação do estado para onde se dirige uma enorme parcela da riqueza produzida através dos impostos.

Na sociedade capitalista, nesta forma historicamente determinada, que sob nenhuma hipótese é passível de redução à atributos genéricos e abstratos que caracterizam o homem enquanto ser social, trabalho nada mais é do que o consumo da força de trabalho. Não importa aí se exista ou não metabolismo direto com a natureza, ou se se trata de um mero serviço que vise apropriar-se de uma parcela da riqueza produzida, como um professor ou um advogado. Todavia, o fato de existir um vultuoso número de trabalhadores que não produzem mercadorias, que se apropriam de uma parcela da riqueza produzida através de atividades várias, ainda que sofrendo extorsão da mais-valia, nada muda no fato de não produzirem riqueza.

Por fim, ressaltamos que, ao que nos parece, a polêmica em questão está, na maioria dos casos, mal colocada. Girando sempre em torno da querela da centralidade do trabalho. Mesmo alguns autores que se opõem a "categoria" do trabalho imaterial, como Sérgio Lessa, abordam a questão em termos de uma sistematização ontológica, baseada no dogma do trabalho como categoria fundante do ser social, que nada auxilia no esclarecimento da questão. Outro equívoco comum é a substancialização das noções de trabalho produtivo e improdutivo, sem se dar conta que algo apenas pode ser produtivo ou improdutivo com relação a outra coisa, e a noção de produtividade do trabalho não coincide plenamente quando pensadas com relação à extração de mais-valia e a produção de riqueza. Mas esta são questões que não pretendemos tratar neste breve comentário. Nosso objetivo foi apenas alertar aqueles que insistem em pensar a realidade atual em termos de um trabalho imaterial que não deverão encontrar resultados férteis se assentados em O Capital de Marx. Antes, deveriam retomar os épicos de Homero, os livros Bíblicos e as diversas mitologias das civilizações antigas, onde tal questão se aflora de modo muito mais coerente e transparente. Afinal, não existe melhor cenário, em nossa sociedade atual, em que o trabalho imaterial aparece de maneira mais contundente, que nas bênçãos concedidas pelo Senhor aos seus filhos!!!

 

Notas

(1) DOWBOR, Ladislau. Capital cognitivo: a economia da criatividade. Le Monde Diplomatique Bra- sil, São Paulo, ed. 47, jun. 2011.

(2) ANTUNES, Ricardo. Os Sentidos do Trabalho – Ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho. 1999, p.127.

(3) ANTUNES, Ricardo. O trabalho e seus sentidos. Revista Debate & Sociedade – Uberlândia, v. 1, n.º 1, 2011.

(4) MARX, Karl. O capital. São Paulo: Abril Cultural, 1983, p.51.

(5) ______ Elementos Fundamentales para la Crítica de la Economía Política (Grundrisse - 1857-1858). 2. ed. México: Siglo XXI, vol. 1, 1987, p.26.


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