É natural que, hoje, este seja um país triste, de gente pesarosa, apreensiva. É natural, mas superficial.
Não vale a pena celebrar vitórias que não existem. Mas daí a achar que tudo será como é, essa é uma conclusão que não nos podemos permitir. O que aconteceu tinha sido escrito por todas as penas dos intelectuais que não fraquejaram nem perante o facilitismo de achar que o mundo era bom antes da queda do Muro de Berlim, nem perante o «neoliberalismo», essa transformação do Estado numa gigante empresa privada.
Não acredito na natureza humana, nem em povos em si rebelados, como seriam os franceses, nem na lenda dos brancos costumes, na cobardia ou, o que é o mesmo, no medo atávico, que teriam os portugueses.
Portugal saiu do pacto social em 2008-2010. 40 anos de pacto social, em que os trabalhadores se organizaram em sindicatos ou nem sequer se organizaram; 40 anos de dirigentes educados nesse pacto; 40 anos de democracia representativa em que os eleitores votam de 4 em 4 anos, regressando depois a casa para assistir à política pela televisão. Como a política deixou de ser exercida pelas pessoas, passou a ser um espectáculo de politiquice lamentável.
Na greve de há sensivelmente 2 meses, numa escola de Lisboa, uma professora reuniu um fundo de greve dos professores para pagar aos funcionários. Houve plenários. Houve resistências. Desde logo porque não se «queria os funcionários junto aos professores!». Mas chegaram a acordo e começaram a contribuir. Este fundo acabou por pagar o dia de greve de 10 funcionários e ainda sobrou dinheiro que foi entregue aos professores contratados. As funcionárias, acompanhadas por essa professora, escreveram uma carta ao seu sindicato a dizer que nem sequer tinham sabido da greve e que para «a próxima queriam ser avisadas da greve e queriam ir a um plenário». Tenho esta carta comigo.
Este Pacto afastou muitos da capacidade de resistir, porque simplesmente desconhecem como fazê-lo. Não sabem os dirigentes sindicais actuais – alguns saberão – que a maioria das greves no nosso país, historicamente falando, foi feita sem qualquer protecção jurídica, nem direito ao trabalho. Que quem trabalhava ao domicílio era convocado pessoalmente a fazer greve também. Que os fundos de greves incluíam quem estava fora da fábrica e trabalhava à peça. Que, espantemo-nos!, quando os bombeiros faziam greve na República, Lisboa ardia porque não havia «serviços mínimos» e eles «estavam em greve!». Que tempos houve em que a maioria das greves eram convocadas de forma clandestina, para proteger os «precários», então, a esmagadora maioria. Que tudo isto se ergueu com uma cuidadosa organização que se baseava na confiança, solidariedade, compromisso, responsabilidade, pagamento de quotas para auto-financiar as organizações, debate da estratégia política (talvez o mais importante), até porque ser morto ou denunciado, mesmo antes da ditadura, na República ou na Monarquia, era uma ameaça real.
Vivemos um tempo que já não é. A História segue o seu curso. É normal e não nos deve angustiar. O Pacto Social expirou e as formas de organização que existem não funcionam. Não funcionam, e a razão não é porque as pessoas não aderem a elas: as pessoas não aderem a elas porque estas formas de organização não funcionam mesmo.
Não temos um povo brando. Temos uma classe trabalhadora, a classe-que-vive-do-trabalho (professor, médico, bancário, estivador, cantoneiro, bolseiros, enfermeiro, engenheiros....) que percebeu os limites da delegação de poderes. Ainda não teve força para, no seu lugar, erguer uma outra forma de organização que implique o exercício do poder, de forma directa, livre, igual e democrática (não são chavões, um plenário que não dá voz a todos não tem legitimidade).
O nosso problema não é a rejeição dos velhos métodos. Esta é a morte anunciada do Pacto Social. E tudo o que é qualitativamente novo implica a destruição do antigo que lhe colocava amarras. O dilema é ter imaginação colectiva para reaprender a resistir, organizadamente, com liberdade. Podemos chorar, carpir, que «tão bom que era no tempo em que os sindicatos chamavam uma greve, não havia sequer piquetes, ninguém se mobilizava, ficava-se em casa, e os patrões ou o Estado chamavam os sindicatos e negociavam 2% de aumento salarial!». Ou podemos olhar para o outro lado, «the bright side of life», ou acentuar o optimismo, como nesta música de Amstrong, cantada no fim de 1945. Tempos novos que aí vêm, como os daquela professora que fez da greve uma acção de responsabilização colectiva e não um acto rotineiro e vão, cheio de palavras sem sentido, do estilo «lutamos até à morte». Ninguém com bom senso luta para morrer mas para vencer.
Estes são tempos novos, em que o optimismo não é uma postura naïf – pergunto-me sempre para que serve o pessimismo, alguma vez mudou alguma coisa? – mas uma preferência de quem submete à História o senso comum. Pois sabe que o mundo se move...mesmo que o mundo inteiro diga que não, que não se move.
Feliz 2014!