A Historia regista poucos casos de uma fusão tao harmoniosa de um homem com as aspirações e o combate do seu povo pela liberdade e a independência.
Mandela foi o iniciador e o guia da luta revolucionária dos negros sul-africanos contra a engrenagem monstruosa que os oprimia. A sua palavra e o seu exemplo foram decisivos para conduzir à vitória a luta de classes que tornou possível a destruição do apartheid que durante décadas contou com a cumplicidade do imperialismo anglo-americano e o apoio de poderosas transnacionais mineiras.
O seu gigantesco funeral e a atmosfera que o envolveu não surpreendem. Mas a unanimidade dos elogios ao homem e ao estadista não ajudam a compreender nem a sua personalidade, nem a sua complexa intervenção na História.
O coro dos elogios agora entoado por aqueles que durante anos identificaram nele um perigoso terrorista quase abafou opiniões críticas sobre decisões polémicas tomadas por Mandela quando assumiu a Presidência.
Mas para os historiadores essas críticas existiram e devem ser tema de reflexão. O herói quase mítico da independência tem sido censurado porque, eleito, não cumpriu parte do programa do ANC. Críticas, a meu ver, improcedentes. Se Mandela tivesse levado avante a prometida Reforma Agrária, nomeadamente a expropriação dos grandes fazendeiros de origem europeia, proprietários das melhores terras do país, a esmagadora maioria dos 5 milhões de brancos teria abandonado massivamente a Africa do Sul num gigantesco êxodo. A economia do país teria ruido.
É um fato que o rumo da África do Sul desiludiu os que esperavam que ela se encaminhasse para o socialismo. Essa era, porem, uma aspiração romântica após a desagregação da URSS, num contexto histórico hegemonizado pelo imperialismo estado-unidense.
Transcorridos 18 anos sobre a vitória eleitoral do ANC e o fim do apartheid, a África do Sul continua a ser uma sociedade capitalista marcada por profundas e chocantes desigualdades. Nela se formou uma próspera arrogante e corrupta burguesia negra. Essa realidade facilita a compreensão dos entusiásticos elogios póstumos a Mandela vindos dos governantes e dirigentes políticos dos EUA e da União Europeia. A admiração que hoje manifestam pelo herói africano é tardia e profundamente hipócrita.
Durante os 28 anos em que permaneceu no carcere da Ilha de Robben apoiaram o apartheid e a repressão.
É oportuno recordar que em 1987, quando a Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução exigindo a libertação imediata de Mandela, somente três países votaram contra, os EUA de Ronald Reagan, o Reino Unido de Thatcher e, para vergonha nossa, o Portugal de Cavaco Silva.
Hoje, os sacerdotes do capital simulam esquecer que o humanista Mandela foi um revolucionário consequente, omitem que o Mandela dialogante não foi um Gandhi africano. Iluminam a imagem do estadista da concórdia entre negros e brancos, mas ocultam a do defensor da luta armada contra o apartheid.
Seria incómodo para Obama (que pronunciou em Joanesburgo um discurso farisaico) Cameron, Hollande e outros dirigentes imperialistas reconhecer que Mandela foi membro do Partido Comunista da África do Sul e, tal como Marx, não ignorava que a violência tem sido a parteira da Historia.
Os media do capital que enaltecem em 2013 a grandeza do humanista Mandela apagaram dos seus arquivos as fotos da visita que o apologista da luta armada contra o apartheid fez em l962 à Argélia de Ben Bella, do abraço fraterno a Fidel Castro e da solidariedade ao palestino Yasser Arafat e ao líbio Muamar Kadhafi.
A grandeza de Nelson Mandela não é minimamente afetada por ter erigido a luta armada em pilar do seu combate contra a opressão racista. Essa opção é inseparável do seu humanismo revolucionário.