Façamos com que aqueles que exploram disputem entre si pelas melhores oportunidades de espoliar os mais produtivos dentre aqueles que também disputam entre si pela chance de se deixar exaurir em troca de uma existência estropiada, esgarçada, de alguém cujo sentido na vida é o favorecimento alheio.
Façamos com que os recursos supostamente gerais, arrecadados e geridos pelo Estado, sirvam para garantir essa vantagem de poucos sobre muitos, essa redução de uns à condição de instrumentos para a promoção do bem-estar de outros, garantindo inclusive uma aparência de legitimidade a essa situação.
Façamos com que a riqueza efetiva produzida pelos espoliados e seu consumo mesmo sejam meros pretextos para o enriquecimento monetário do restrito grupo privilegiado por meio de sua venda, não precisando sequer suprir necessidades legítimas de quem a consome, podendo inclusive prejudicar-lhe muito e tendendo mesmo a promover esse efeito nocivo – que acomete também uma parte dos mais favorecidos, ainda que com menor intensidade, dado que a estes são reservados os melhores produtos do trabalho social.
Façamos de modo que os indivíduos que nesse cenário convivem se reconheçam tão pouco e de modo tão problemático uns nos outros e em seu mundo comum, induzidos que são à disputa em todos os âmbitos, que eles se tornem quase incapazes de perceber o cuidado mútuo e o cuidado com o ambiente compartilhado senão como perda de tempo e energias, como um vacilo lamentável, um vício moral, ao invés de uma virtude.
Façamos com que o máximo bem-estar almejado pelos indivíduos seja, via de regra, o suprimento de bens de consumo para si e para os mais próximos, mantendo longe de sua consideração a exigência coletiva de um ambiente mais saudável para o legítimo desenvolvimento cooperativo, assumido como sendo de responsabilidade conjunta e voltado ao benefício de todos.
Façamos com que o único complemento desse prazer supremo obtido da aquisição e do consumo privado de bens seja o de saborear a inveja daqueles que não dispõem dos bens em questão ou só dispõem de suas versões inferiores.
Façamos de modo que sejam pouquíssimos e que sejam tratados de ingênuos e excêntricos aqueles que conseguem reconhecer o ambiente humano como fruto de complexo e muito produtivo trabalho cooperativo executado sob forma alienada; e que a maioria persista vendo nele uma inelutável conseqüência de eventos naturais, os quais situariam alguns pouquíssimos em postos de domínio e outros muitíssimos em posições de submissão, constituindo uma extensa e complexa trama hierárquica de relações estranhadas que devem ser aceitas sem questionamentos.
Façamos os indivíduos baterem no peito orgulhosamente exigindo o direito pessoal de ajustarem-se irrefletidamente e irresponsavelmente a padrões mais que questionáveis de conduta e consumo disseminados através de meios de comunicação sofisticados e de amplo alcance, torcendo o nariz para todo aquele que ousar indagar-lhes sobre sua legitimidade.
Em suma, façamos de todo o avanço produtivo humano um reforço das mais perversas relações entre os indivíduos humanos, fazendo refluir para o cantinho das excentricidades ingênuas todas as disposições solidárias legítimas.
Mas façamos isso com ética.