“A História não se repete”. Com esta singela, mas profunda frase, Trotsky abrirá o terceiro capítulo de seu célebre escrito “Balanços e perspectivas”, em que, pela primeira vez, desnudará a dinâmica da revolução que se desenhava na Rússia czarista. E realmente, somente elaborações vulgares e caricaturais verão em acontecimentos históricos a mera reprodução de cenas do passado, ou ainda, em acontecimentos pretéritos a cartilha que deverá reger as ações futuras. É uma noção das mais elementares que toda situação histórica deve ser analisada em sua particularidade, em sua dinâmica própria, em sua configuração específica, a qual, certamente, jamais aconteceu e jamais acontecerá da mesma maneira.
Entretanto, um erro análogo, e igualmente trágico, é descartar todos processos do passado como anacrônicos e obsoletos, proclamando a cada dia a criação do novo, um novo que comumente se mostra com ares de Déjà vu. A história, neste caso, é como a vida. Certamente as diversas experiências, erros e acertos, vitórias e derrotas, acometidas ao indivíduo no curso de sua vida, não garantem um futuro de êxitos permanentes, pois os episódios futuros jamais se repetirão da mesma maneira, nem serão idênticas as alternativas colocadas. Todavia, sem levar em conta as diversas experiências do passado, o indivíduo estará fadado eternamente a dar com os burros n´água.
Infelizmente esta analogia, como toda analogia, padece de grandes limitações. Além da complexidade muito superior de uma sociedade frente a um indivíduo, os acontecimentos históricos, e sobretudo os grandes acontecimentos históricos, nem sempre se dão no curso de uma geração. Quando questões de grande envergadura social estão colocadas, a memória individual se mostra, no mínimo, como absolutamente insuficiente. Por isto é necessário história, história e mais história. E como no caso do indivíduo, o esquecimento histórico pode se reverter em trágicas consequências, mas com desfechos muito mais dramáticos e catastróficos do que em qualquer epopeia individual. Por isto, considerando os recentes debates e polêmicas que envolvem a atuação dos Black Blocs no Brasil, nada melhor do que rememorar alguns episódios do passado.
Como se sabe, o marxismo somente foi hegemônico no movimento socialista mundial no século XX e em particular a partir da revolução russa. Até então dominavam grupos que se caracterizavam por prescrever receitas para o futuro, com uma acepção pre-formatada de uma sociedade ideal e sem grandes preocupações em encontrar na configuração social do presente uma força social capaz de romper com os grilhões da em questão ao mesmo tempo que prefigurar uma nova. Neste sentido, a especificidade dos marxistas no movimento socialista foi procurar se ligar as lutas dos trabalhadores e intervir em seus movimentos, considerando que a revolução não seria um ato puramente político de destruição do poder constituído, mas um ato político que seja decorrente da organização e auto-determinação dos trabalhadores. Para esta nova vertente do socialismo que emergira em meados do século XIX na figura de Marx, uma revolução social não se trataria de uma posição auto-proclamatória externa as grandes massas populares, em que um grupo arrogaria para si a efetivação dos interesses dos explorados, tampouco ações que se fundariam no inconformismo individual, mas a atividade consciente e organizada de uma classe.
Por isto, o desafio colocado pelos marxistas sempre foi o de conduzir os trabalhadores a consciência da necessidade de destruição do poder capitalista. Jamais procurar substituir sua ação por aquela de um grupo restrito. Não por acaso os membros da Liga dos Comunistas estiveram na dianteira das barricadas nas revoluções de 1848, assim como, a Associação Internacional dos Trabalhadores na Comuna de Paris em 1871. Atuaram em unidade com os trabalhadores e com o apoio da quase totalidade da população explorada. Em caminho contrário seguiam diversos grupos de caráter puramente conspirativo, centrados em ações isoladas e desdenhando o sentimento geral das grandes massas trabalhadoras. Para Marx, estes grupos subordinam “o movimento total a um de seus momentos, que põe em lugar da produção social, comum, a atividade intelectual de pedantes individuais e, sobretudo, na fantasia suprime a luta revolucionária das classes e sua necessidade POR PEQUENAS AÇÕES DE CONJURADORES OU GRANDE SENTIMENTALISMO”.
Uma das figuras proeminentes deste tipo de socialismo conspirativo foi sem dúvida Blanqui. Sua valentia e coragem eram inquestionáveis e mesmo admiráveis. Não por acaso passara 37 anos de sua vida na prisão. Apesar de seu espírito inquebrantável e de sua sincera entrega a luta revolucionária, Marx e também Engels jamais deixaram se iludir pelos meios e métodos estritos por ele utilizado, assim como seu desdem pelas grandes massas populares. Com relação a este personagem, Engels dirá que trata-se “essencialmente de um revolucionário político; é socialista somente por sentimento, por indignar-se com os sofrimentos do povo, mas não possui teoria socialista, nem propostas práticas definidas para a reorganização da sociedade”.
Uma postura muito mais rígida foi reservada por Marx à Mikhail Bakunin no interior da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT). Para este último, a riqueza do capitalista estava associada unicamente ao Estado, bastando, assim, destruí-lo para que o capital ruísse por si só. Em sentido diverso, Marx sustentará que é necessário destruir o capital, a concentração dos meios de produção nas mãos de uns poucos capitalistas e o Estado ruirá por si só. Neste sentido, em sua crítica ao livro Estado e Anarquiade Bakunin, Marx dirá que “decididamente, ele [Bakunin] não compreende nada da revolução social; só conhece sua fraseologia política; para ele, não existem as condições econômicas desta revolução” e destacará que “a base de sua revolução é a vontade”. Como se vê, para Marx, a luta pelo socialismo não se baseia na mera vontade de um pequeno grupo inconformado com a realidade reinante, não reside no mero ato político de destruição do Estado burguês. Este ato é, evidentemente, necessário para destruição do capitalismo, mas deve estar intrinsecamente ligado a ação consciente da classe trabalhadora organizada, na expropriação da propriedade privada e na auto-organização da produção, fundamento da nova sociedade. Por isto, ações que visam unicamente o enfrentamento com o poder estatal e seu respectivo aparato de defesa, descolados dos grandes núcleos da classe trabalhadora e da organização da produção, deixará intacta a forma capitalista de produção e exploração, ainda que consiga abalar, temporariamente, suas formas de representação estatal.
Todavia, os movimentos revolucionários focados na ação direta contra o Estado em desconsideração para com a massa de trabalhadores inertes, não foi, infelizmente, exceção no curso do século XX. No Brasil, em particular, milhares de jovens ingressaram na guerrilha urbana contra a ditadura militar nos fins dos anos 60 até o início dos anos 70. Embalados pela cartilha de Regis Debret, A Revolução na Revolução, e o Manual do Guerrilheiro Urbano de Carlos Marighella, tornou-se hegemônico no interior da juventude radicalizada brasileira a concepção de que não era necessário a mobilização em massa dos trabalhadores, mas, pelo contrário, estes entrariam em movimento em decorrência da própria ação dos grupos guerrilheiro. Se é verdade que a ação guerrilheira mostrou grande potencial de crescimento entre grupos de estudantes inconformados com a ditadura, jamais conseguiu, por sua vez, penetrar no interior das grandes massas populares ou dos trabalhadores organizados. O resultado foi catastrófico. Centenas caíram em combate, milhares foram torturados até o umbral da loucura, tudo isto, sem que um só arranhão fosse realizado no aparato de estado militar e, menos ainda, no capitalismo brasileiro. Enquanto isto, a grande massa dos trabalhadores seguiu indiferente o seu curso, embalados na ilusão do milagre econômico. Não bastasse, estes grupos foram recorrentemente invocados, no curso dos anos de chumbo, para justificar o regime militar e a repressão dele decorrente. Evidentemente que, aqui, não se pretende, sob nenhuma hipótese, criminalizar os antigos integrantes da guerrilha urbana, mas avaliar seus meios, métodos e os resultados que se seguiram. É preciso analisar lucidamente o passado, sem ceder aos impressionismos, heroísmos e sentimentalismos de qualquer tipo.
Movimento semelhante acontece nas recentes mobilizações brasileiras de junho através de muitas das ações levadas a cabo pelos Black Blocs. Sabemos que o grupo em questão não possui uma unidade organizativa, mas os elementos que comentaremos emergem de suas ações, dos meios e dos métodos utilizados. Sabemos que eles atraem a simpatia de um setor restrito, podendo inclusive crescer no interior deste setor, ao mesmo tempo que se afastam permanentemente das grandes massas populares. Ao destruírem estabelecimentos públicos e privados, sem qualquer reconhecimento da maior parte da população e mesmo dos manifestantes, fornecem munição para que o aparato militar justifique a repressão perante a mídia e o restante da população. Se lançam constantemente em empreitadas que não podem vencer, pela desproporção das forças em choque. Esquecendo que o conjunto da experiência histórica não deixa dúvidas de que derrotas são seguidas sempre de desmoralização, retraição e desilusão. E atenção! Para os leitores desatentos, não se pretende, aqui, acusar os Black Blocs pela repressão policial, da mesma forma que no caso acima não se pretendeu atacar os guerrilheiros pela ditadura militar. O questionamento diz respeito aos resultados decorrentes dos meios utilizados. Por fim, a ideia de que as ações isoladas dos Black Blocs podem se alastrar para o conjunto dos manifestantes e da população não resiste um único segundo. A ação violenta de grupos restritos jamais foi um motor, em toda história, para que a classe trabalhadora tome consciência da natureza de sua exploração, pelo contrário, somente quando esta toma consciência da natureza de sua exploração é que se mostra ávida ao combate.
Mas uma ponderação deve ser aqui realizada. Não se pretende, com este texto, criminalizar a ação dos Black Blocs e de outros grupos com práticas afins. Sua valentia, coragem e abnegação são inegáveis e louváveis. Ao mesmo tempo, a revolta contra o aparato de repressão do estado - a polícia - os ataques impetuosos contra os bancos e outras instituições privadas, sinalizam uma forte propensão contra a sociedade capitalista e uma sincera entrega a uma ação transformadora. Entretanto, como já dizia Marx, “o caminho para o inferno está pavimentado de boas intenções”. Não é suficiente se revoltar contra as instituições capitalistas sem atacar o próprio capital a partir da ação organizada daqueles que o reproduzem constantemente, a classe trabalhadora. Infelizmente, a ação destes grupos isolados não produziu na massa trabalhadora, magicamente, uma revelação divina que entrelaçasse estes atos violentos com a permanente usurpação de sua vida pela exploração do trabalho. Quase todos viram com pavor os prédios depredados e as vidraças quebradas.
Se é verdade que as ações perpetradas pelos Black Blocs se aproximam dos referidos grupos de Bakunin e Blanqui no que tange aos meios e métodos utilizados, assim como por levarem a cabo ações isoladas desconsiderando a correlação de forças e a predisposição do conjunto dos trabalhadores, afastam-se daqueles por não possuírem qualquer projeto para sociedade, sendo apenas um grupo de indivíduos que se unificam em torno de uma ação, pelo menos por enquanto. Todavia, é exatamente neste aspecto que reside a sua principal limitação, sua ação é uma negação indeterminada, bem caracterizada pelo termo anti-capitalista, o qual remete as limitações inerentes ao capitalismo, sem apontar para qualquer possibilidade efetiva de transformação. Estas posições parecem diversas, mas na verdade são dois lados de uma mesma moeda. Ao não se fundamentarem pelos interesses postos objetivamente por uma classe social, mas apenas na constatação subjetiva da exploração, os blanquistas e bakuninistas projetavam o futuro em uma idealização societária dada a priori, os ativistas Black Blocs projetam no vazio. De um futuro idealizado à um futuro ausente. Os marxistas, por sua vez, não prescrevem receitas para a cozinha do futuro, tampouco se limitam a crítica indeterminada do que está dado, mas se ligam aos movimentos e organizações dos trabalhadores, trabalham pacientemente para que ganhem confiança em si mesmos e tomem para si o seu destino. É verdade que estes precisarão destruir o aparato de poder do estado burguês, o que certamente se dará pelo uso da violência, mas não somente. Prefiguram a sociedade futura através da efetivação de sua própria atividade: o trabalho. Agora livre dos entraves e limitações impostas pela necessidade permanente de valorização do valor. Por isto, os marxistas possuem um programa revolucionário, que sintetiza as necessidades objetivas de uma classe. Sua ação não visa somar uma série de indignações individuais, mas que os indivíduos se unam por aquilo que têm em comum enquanto classe, expresso pelo seu programa.
Por fim, vale dizer que estes elementos sumariamente esboçados acima não são produto de uma mente genial, tampouco revelações de um grande líder ou de um partido eleito, mas produto da apreensão dos nexos fundamentais de nossa sociedade capitalista e da reflexão sobre mais de dois séculos de atividade revolucionária. O passado não nos fornece a cartilha para ação no presente. Não existe uma forma predeterminada que indique o caminho para se mobilizar a classe trabalhadora e fazer valer a necessidade histórica da revolução socialista. E é exatamente por toda complexidade que circunda tal questão, que devemos, o quanto antes, deixar de lado as formas impressionistas e voluntaristas de ação, se não quisermos recomeçar do zero a marcha do processo revolucionário a cada nova geração, e como no trabalho de Sísifo, conduzirmos a luta dos trabalhadores ao eterno retorno. Retorno este que, paradoxalmente, mergulha cada vez mais profundamente na barbárie capitalista.