Em artigo para o New York Times, Shadi Hamid analisou a derrocada da Irmandade Muçulmana seguida do golpe militar que depôs o presidente democraticamente eleito Mohamed Morsi menos de um ano após chegar ao poder. O que parecia uma vitória do islamismo moderado se mostrou o fracasso do modelo de democracia egípcio e a volta dos militares ao poder – ao menos momentaneamente. A mensagem central do texto de Hamid é a de que os islâmicos que apostaram pela via democrática foram derrubados e isto dá força aos islâmicos que lutam pela via das armas, como a Al Qaeda e outros. A democracia não aceitaria o islamismo (militante) por essência.
Concordo com a análise, ainda que veja um problema na concepção dos islâmicos radicais de democracia e participação.
A imposição de leis islâmicas, restrições à forma como as pessoas decidem viver etc., além dos abusos aos direitos humanos que vêm junto com imposição da Sharia e leis que restringem liberdades são, em si, uma ofensa à democracia. A democracia, então, pressupõe o secularismo como valor, em conjunto com o respeito aos direitos humanos, ao passo que imposições religiosas seriam uma afronta aos mesmos direitos e mesmo à própria democracia. Por mais que na democracia a maioria governe, minorias não podem ser alienadas, senão temos uma ditadura da maioria, e é exatamente isto que vemos em regimes que utilizam a religião como forma de controle social, como bandeira ou mesmo como pano de fundo.
A conclusão (minha) possível seria que o islamismo radical é inimigo ou incompatível com a democracia. Da mesma forma que, no Brasil, os neopentecostais são incompatíveis com a democracia no momento em que se apropriam das estruturas do Estado e tentam impor seus valores retrógrados e medievais. Isto não por serem islâmicos (ou, no caso brasileiro, neopentecostais), mas por utilizarem estes valores como norteadores dentro de um regime democrático, transformando-o em uma forma de ditadura, de imposição de valores.
O importante é analisar se o problema é o golpe/revolução contra os islâmicos militantes (isso porque a Irmandade Muçulmana é muito mais light que os salafistas também com representação no parlamento egípcio) ou o próprio islamismo militante impositor da Sharia e incompatível com a democracia no modelo que conhecemos e/ou defendemos. Qual é o limite das imposições religiosas de um partido – quer represente maioria ou não da população – sob toda a população frente a noções básicas de democracia e direitos humanos?
Em outras palavras, dada a aparente incompatibilidade entre democracia e imposição de valores religiosos, o papel do exército egípcio foi o de simplesmente restaurar a democracia – isto se se confirmarem novas eleições e a efetiva restauração da democracia. (Podemos não concordar com os meios, claro: uma forma não-democrática de restaurar a democracia é legítima?)
Outro ponto importante é a atual discussão sobre a possível exclusão da Irmandade Muçulmana de futuras eleições, assim como fantoches que ela porventura busque plantar para retomar o poder, além da exclusão de salafistas mais radicais. Seria esta proibição incompatível com a democracia, mesmo que os ideais de tais partidos sejam, em tese, antidemocráticos?
Que as tentativas da Irmandade, do AKP, partido de Erdogan na Turquia, também objeto de protestos e revolta, e, no Brasil, de grupos evangélicos com iniciativas como a PEC 33, de tomarem o Estado com a intenção de impor valores religiosos se mostram incompatíveis com a democracia, é um fato; mas até que ponto estes “retrocessos a modelos fascistas” podem ser simplesmente excluídos do debate público ou do acesso à democracia representativa, dos parlamentos?
Os judiciários acabam tendo um papel preponderante – vide, no caso do Brasil, o STF tomando recentemente diversas decisões contra imposições religiosas – e, querendo ou não, mesmo o exército acaba tendo este papel de mediador em um país como o Egito, com frágeis instituições.
Estamos diante de um dilema interessante, sobre se a democracia precisa ser defendida dela mesma e quais meios podem ou devem ser usados para este fim. Seguindo o raciocínio, sem a garantia do secularismo, resta apenas a manipulação das massas por discursos retrógrados e deslocados, ou seja, não há uma efetiva democracia, onde as pessoas são capazes de dar sua opinião e contribuir livremente. Em outras palavras, se não existem as condições básicas para que exista um sistema democrático (secularismo e pessoas livres e aptas a decidir), este modelo não seria, obviamente, democrático.
De modo que o golpe militar egípcio seria um “contragolpe”, uma restauração da democracia que não existiria enquanto refém da religião. Isto, aliás, dá força às teses de que o Egito passa por uma revolução e não por um simples golpe. Resta agora acompanhar o desenvolvimento da política no país e esperar que ele não pule de uma não-democracia religiosa para uma ditadura pura e simples, militar. De novo.