Trata-se de um filme que suscita várias discussões. Duas delas, que são interligadas, me chamaram a atenção de modo especial: uma sobre as proporções que pode tomar a comoção popular e outra sobre o estigma criminal.
O filme se passa numa pequena cidade dinamarquesa, onde um professor do jardim de infância local, Lucas (Mikkelsen) é acusado de pedofilia. A população da cidadezinha, numa ânsia de justiça a qualquer custo, começa não apenas a exigir a condenação de Lucas, como também a excluí-lo dos círculos sociais e até mesmo a agredi-lo fisicamente. Durante a investigação, o princípio de que toda pessoa é inocente até que haja prova em contrário é devidamente acatado pelas autoridades — mas não pela população. E esta ânsia não é saciada — antes, é potencializada — quando a denúncia, por falta de provas, é arquivada pela justiça.
Também recai sobre Lucas o estigma criminal. Como dito anteriormente, antes da conclusão das investigações ele já havia sido condenado pelos moradores locais. Mesmo depois do arquivamento da denúncia pela justiça, por ter sido constatada a inocência de Lucas, os moradores da cidade seguem com a execração pública. O estigma só é diminuído — e, ainda assim, não por completo — após o perdão do pai da criança que originalmente fez a denúncia.
Por que essas discussões são interessantes? Ora, porque apesar de o filme se passar numa cidadezinha da Dinamarca, é isso que vemos diariamente no Brasil. Tal qual em “A Caça”, o suspeito, antes de qualquer tipo de condenação, já é tido como um criminoso. Não há necessidade da apresentação de provas para a comprovação de autoria: trata-se de um criminoso, não importa o que digam os indícios contrários ou o próprio acusado. Neste mesmo sentido, é bastante comum ver no Brasil uma situação de comoção popular através da qual não se hesita em pedir uma punição cada vez mais severa — e de preferência também cruel, com torturas e até mesmo execução — para pessoas que tenham cometido condutas consideradas criminosas ou, o que é ainda mais grave, para pessoas que tenham sido simplesmente (e não raro também levianamente) acusadas de terem cometido crimes.
Não poucas vezes o clamor popular acaba por justificar a violação de direitos da pessoa que está sob investigação (sim, uma pessoa que está sob investigação tem direitos e eles devem ser resguardados). Este mesmo clamor, em determinados momentos, é fator determinante na condenação de um acusado. Como a maior parte da população não costuma ter conhecimento acerca de toda o caso, a pressão pode acabar fomentando a punição de uma pessoa que não cometeu crime algum. Temos de ter em mente também que o clamor popular é facilmente manipulável pela grande mídia, motivo pelo qual ele deve ser visto com muita prudência.
O clamor popular por uma crescente penalização está intimamente ligado com a ascensão do estigma criminal. No Brasil esta questão é patente e alcança níveis alarmantes. Ainda que o acusado seja inocentado, pesa o estigma de ter recaído sobre ele a acusação de ter cometido condutas criminosas, abominadas pela população. Tomando de exemplo o personagem de “A Caça”, ele nunca mais será “Lucas, o professor do jardim de infância da cidade”, mas “Lucas, o professor do jardim de infância da cidade que foi acusado de pedofilia”.
Ainda mais grave — e mais recorrente, creio — é o estigma que permanece mesmo após a pessoa ter cumprido pena. É o estigma do egresso. É muito comum ver pessoas que, devido ao preconceito advindo deste estigma, não conseguem, por mais que tentem, recompor suas vidas: salvo raras exceções, não conseguem encontrar parceiros afetivos, alugar casas, encontrar empregos, etc. Continuam a ser consideradas como criminosas. Seguem pagando por um crime pelo qual já foram punidas. E assim, não poucas vezes, acabam, para ter meios de sobreviver, voltando a praticar delitos, num circulo vicioso.
É preciso se opor a que direitos sejam violados no curso de investigações. É preciso se opor a que o clamor popular tenha qualquer tipo de influência no momento de se definir alguma condenação. Por fim, é preciso se opor com veemência a que os estigmas sigam existindo e, através de sua existência, persistam numa contínua criminalização, seja dos acusados que tenham sido declarados inocentes, seja dos egressos do sistema carcerário não por acaso majoritariamente negros e pobres, vale lembrar. Enquanto não nos opusermos a isso enquanto sociedade, não avançaremos na efetivação de um real Estado Democrático de Direito.