Dois anos passaram desde a assinatura do memorando que ajoelhou Portugal. Os níveis de produção de riqueza recuaram 15 anos e hoje somos mais pobres, mais dependentes e menos soberanos. Só no primeiro trimestre, o PIB tombou 4%, o investimento ruiu 17% e o consumo interno outros 4%. Em Maio apenas, 4% de todos empregos desapareceram. A receita da troika pariu um quadro de emergência social sem paralelo em 40 anos: levou à falência milhares de empresas, estendeu o desemprego a um milhão e meio de portugueses e devolveu a emigração aos níveis dos anos 60, com mais de 50 000 portugueses a deixar o país todos os anos.
Perder o medo ou perder o pio
Mas crise que dizima Portugal não é uma praga bíblica. Os culpados têm nomes, apelidos e siglas políticas. Como canta o Fausto, uns vão bem e outros mal. É que não é fortuito que em plena crise os maiores grupos económicos exibam resultados fabulosos. A pobreza dos trabalhadores cresce na medida da riqueza de uma mão-cheia de bancários. O governo não falhou: conseguiu precisamente o que queria: aumentar as rendas do capital à custa das rendas do trabalho.
Nesse objectivo vale tudo, da destruição do Serviço Nacional de Saúde à Escola Pública, passando pela Segurança Social. Fazem gato-sapato de direitos constitucionais indissociáveis da democracia e do bem-estar das famílias; prendem quem lhes grita “Vai trabalhar!” e ameaçam suspender o Tribunal Constitucional quando a lei suprema da nação não lhes convém. Não sei se incorro em crime de injúria com estas palavras, mas a corja que nos governa perdeu-nos o medo.
Já está bom para fazer greve, ou esperamos mais um bocadinho?
Se avançamos para a falésia, primeiro é preciso parar para depois respirar, reflectir e mudar de direcção. Dia 27 de Junho, os portugueses dão o primeiro passo e fazem greve porque não aceitam trabalhar de graça. Param para dizer basta à fome, à exploração e à prepotência da miséria que morde os de baixo imposta pelos de cima. Param hoje para garantir o amanhã; um dia para não pararem os dias todos, abdicando de um dia de salário para evitar que lhes roubem mais dois meses.
Perante a lesa-pátria do governo, resistir é um acto patriótico. Fazer greve assume-se como expressão individual de uma urgência histórica que nos chama a defender a dignidade dos nossos filhos. Uma decisão pela qual o futuro nos pedirá contas. Porque não somos pais incógnito, netos de filhos ignaros, como acautelava o Zeca, fazemos greve. Para dizer, num referendo mais alto que todos os votos, que não admitimos regressar à longa noite do fascismo.
Se sobejam as razões para fazer greve, não pode faltar coragem. Paramos para parar o desrespeito pelos direitos laborais, o bloqueamento da contratação colectiva, a política de baixos salários e as más condições de trabalho; a precariedade; a repressão contra os sindicalistas; os despedimentos e os salários em atraso; o roubo dos feriados, das férias, do descanso e dos subsídios; o corte nas pensões e no valor do trabalho extraordinário. Chega e basta. Que caia o governo, quem ordena é o povo!
Por todos os meios
Contra a Greve Geral levantar-se-ão as vozes do costume, com os mesmos argumentos de sempre. Chamarão mandriões aos grevistas, apesar do grande sacrifício pessoal que acarreta; dirão que as greves não mudam nada, embora o Governo ameace ilegalizá-las. E, tal como sempre, virão os comentadores de turno, empossados de virgens ofendidas, protestar contra os “incómodos” que a greve causa e contra a “violência económica” que ela encerra.
Têm razão. A greve incomoda muito e «violenta» muito mais. Ela é um rio, um poderoso manancial que não se extingue na espuma dos dias por onde passa, partindo sempre para novas e mais duras lutas. Sim, essa torrente de milhões que recusam ser escravos é violenta, no sentido em que a ausência dos trabalhadores desliga a economia da corrente. E sim, esse caudal de lutas desembocado em greve incomoda, mas sobretudo aos patrões, porque lhes recorda que nada funciona sem o consentimento do povo. Incomoda-os porque é para isso mesmo que a greve serve: não estamos a brincar, estamos a dizer-lhes que acabou a festa.
Mas que violência é essa quando comparada à violência a que nos submetem cada dia? Como escreveu Brecht, porque se fala apenas da violência do rio que tudo arrasta, e não das margens que o comprimem? O que é a violência de um autocolante no vidro de um autocarro quando comparada à violência sobre motorista que já não pode pagar a casa? O que é um cadeado no portão da escola, quando somos tantos professores desempregados? O que é uma corrente à entrada do supermercado, quando o salário já não nos chega para a mercearia? O que é um cordão humano de gente sentada no chão, quando até esse chão pode deixar de ser nosso?