9 de Maio de 2013: os instrumentos do observatório de MaunaLoa registraram, pela primeira vez desde que as medidas se iniciaram, uma média diária de concentração de dióxido de carbono (CO2) acima de 400partes por milhão (ppm).
O valor foi excedido em apenas 3 centésimos de ppm (a média diária registrada foi 400,03), o que evidentemente, do ponto de vista físico, não faz nenhuma diferença, por exemplo, em relação a 399,99. Também é preciso dizer que, em virtude do ciclo anual da vegetação no Hemisfério Norte, é em Maio que as concentrações de CO2 atingem seu pico e certamente uma média anual de 400 ppm talvez ainda requeira 3 anos para se configurar. O valor do dia 09/05/2013 é suficiente, porém, para servir de marco simbólico.
Como mostrado na Figura ao lado, as concentrações de CO
2 nos últimos 800 mil anos são conhecidas com bastante precisão, tendo em vista que tais valores foram medidos em amostras do ar aprisionado em bolhas no interior do gelo, obtidas ao se perfurar os 3 quilômetros de espessura da calota polar do continente Antártico. É visível a alternância entre valores bastante baixos (chegando a 180 ppm) no auge de algumas “eras do gelo” (períodos glaciais) e valores mais elevados, aproximando-se dos (mas quase nunca atingindo) 300 ppm nos períodos quentes que se intercalam (os chamados “interglaciais”). Durante os períodos glaciais, estima-se que a média de temperatura global tenha ficado abaixo da do presente por algo em torno de 5°C. As calotas polares se estenderam para latitudes menores e, em função disso e da contração térmica, o nível dos oceanos descia a níveis até poucas centenas de metros abaixo dos dias de hoje. Isso por si só já sugere que o sistema climático é bastante “sensível”, ou seja, sofre variações de grande amplitude, que não podem ser explicadas somente com base nas variações periódicas de certos parâmetros da órbita da Terra mostrados na Figura abaixo (se esta é mais alongada ou tem um formato mais próximo ao de um círculo; se a inclinação do eixo de rotação relativamente ao plano da órbita aumenta ou diminui ou em qual estação do ano ocorre o periélio – posição mais próxima do Sol). Na verdade, esse comportamento “sensível” sugere que
o CO2 e outros fatores cumprem um papel decisivo ao amplificar o efeito das mudanças nos parâmetros orbitais (o que se dá por meio de mecanismos de retroalimentação ou “feedbacks”, como explico
aqui).
É verdade que a Terra já atravessou períodos mais quentes do que o atual e há indícios de que a concentração de CO2 acompanhou estas outras condições climáticas. Mas é preciso que duas coisas sejam ditas, sem arrodeios... Primeiro, a velocidade das mudanças anteriores na concentração desse gás foi geralmente muito menor do que a que se vê no presente, com a queima desenfreada de combustíveis fósseis levando a um acréscimo de 2 ppm ao ano e acelerando! Segundo, ainda que não haja indicadores da concentração de CO2 no passado mais remoto tão precisas quanto as colunas de gelo, os indícios apontam que é preciso voltar ao passado pelo menos 4milhões de anos para se encontrar valores de 400 ppm. Isto é anterior à presença não só da nossa espécie (Homo sapiens), mas do gênero Homo na face do planeta. O clima também não era aquele ao qual nossa espécie e as espécies contemporâneas se adaptaram. O planeta era outro, com temperatura 3°C acima do presente e oceanos nada menos que 25 metros acima, em virtude da presença reduzida de geleiras, da inexistência de gelo marinho permanente no Ártico e da própria temperatura mais elevada dos oceanos (dilatação térmica). Esse mundo irreconhecível está sendo recriado pela intervenção humana na atmosfera terrestre, com o agravante de que é evidente que a concentração de CO2 não se estabilizará em 400 ppm, pela absoluta inépcia, irresponsabilidade e estupidez dos governos nacionais, reféns – voluntários ou não – da poderosa indústria petroquímica (que, junto com os bancos estabeleceu uma plutocracia global, como descrevo neste texto). Estranho “progresso” este que nos empurra de maneira inconsequente a um túnel do tempo do clima, sem parada final definida!
O peso do número 400 fica mais claro quando aplicamos o conceito de
sensibilidade climática, algo que já discuti em outros momentos. A chamada “sensibilidade climática de equilíbrio” consiste em um número:
a elevação na temperatura média global resultante de uma duplicação na concentração de CO2. Determiná-la não é algo trivial e há muitas estimativas na literatura, produzidas através de metodologias incluindo a análise de dados observados no último século e meio, de “testemunhos paleoclimáticos”, isto é, indicadores do clima do passado até resultados de simulações com modelos climáticos complexos. Ao final, admite-se que
a sensibilidade climática esteja na faixa de 2 a 4,5°C, sendo 3°C o valor mais provável, isto é, espera-se que em se duplicando a concentração de CO
2 atmosférico, o planeta aqueça em torno de três graus, com uma incerteza para mais ou para menos.
Nossa referência é o clima do período anterior à Revolução Industrial, quando a concentração de CO2 era de 275 ppm (valor que pouco mudou por quase 10 mil anos, diga-se de passagem) e com temperaturas médias globais 0,8°C abaixo das de hoje em dia (sim, já aquecemos a Terra em quase um grau, o suficiente para disparar as grandes mudanças ora observadas como o acelerado derretimento de diversas geleiras e do gelo marinho, principalmente do Ártico). Admitindo-se uma sensibilidade climática de 3°C, duplicando essa concentração, isto é, levando-a o CO2 a 550 ppm, espera-se um clima com temperaturas 3 graus acima do período pré-industrial (ou 2,2 °C acima do presente). Isto é muito, especialmente se pensarmos que o aquecimento global não é uniforme e determinadas áreas (a grande maioria dos continentes, especialmente sua porção mais interior – o que inclui, por exemplo, a Amazônia, no caso da América do Sul) tendem a aquecer mais do que as grandes extensões de oceano, já que a água é uma substância com muita inércia térmica (ou elevado calor específico, se quisermos ser mais rigorosos). Neste caso, uma média de aquecimento de 3°C produziria facilmente mudanças regionais de temperatura de 4, 5 ou mais graus, com impactos violentos sobre os climas e os ecossistemas locais!
A Figura ao lado representa não apenas o cenário de duplicação da concentração de CO
2, mas qualquer situação entre as condições pré-industriais e esses 550 ppm. Ela sugere, por exemplo, que
350 ppm estariam provavelmente associados a um aquecimento de 1°C (círculo azul), com alterações climáticas possivelmente aceitáveis (considerando as incertezas para mais e para menos, ficaríamos entre 0,7 e 1,6°C). Aqui, cabe abrir parênteses. Se esses 350 ppm foram ultrapassados em 1988 e estamos bem acima disso há vários anos, por que o aquecimento global observado somente agora está chegando nesses níveis? Porque o ajuste entre CO
2 e temperatura não é instantâneo, da mesma maneira que a água na panela não começa a ferver imediatamente após acendermos a chama do fogão...
A marca de 400 ppm, no contexto da sensibilidade climática, representa, portanto, uma expectativa de aquecimento de 1,6°C acima do período pré-industrial. Em outras palavras, considerando o aquecimento já observado de 0,8 °C, se estabilizássemos a concentração de CO2 nos níveis atuais, ainda assim deveríamos ter de lidar com um gradual aquecimento extra, correspondendo a 0,8 °C. Introduzindo a margem de incerteza, teríamos entre 0,3°C e 1,6°C a mais de aquecimento (ou 1,1 e 2,4°C acima das temperaturas pré-industriais) até que o sistema climático voltasse a se estabilizar. Como é aceito que se deve evitar um aquecimento global de 2°C ou mais acima da temperatura pré-industrial, já haveria neste caso uma probabilidade não desprezível de entrarmos nessa “zona de risco”. 400 ppm não são uma concentração segura de CO2! Isso para não falar dos 450 ppm (círculo amarelo), valor de estabilização já difícil de ser atingido e que nos deve levar a temperaturas 2,1°C (entre 1,4 e 3,2°C) acima do clima pré-industrial para o qual, portanto, com riscos já bastante significativos... nem de 500 ppm (círculo laranja), com aquecimento associado de 2,6°C (entre 1,7 e 3,9°C) ou 1,8°C (entre 0,9 e 3,1°C mais quente do que o presente).
Existe saída e todos sabemos disso. É preciso cortar drasticamente as emissões e mudar os padrões globais de produção e consumo, atingindo fundamentalmente o estilo de vida perdulário típico dos mais ricos e indo na contramão da lógica de mercado, de auferir lucros com base em produtos supérfluos, desnecessários, descartáveis. Implica em cortar os subsídios aos combustíveis fósseis, seja na forma direta ou indireta: incentivos fiscais, benesses de infraestrutura, abatimento em insumos como a própria água (sendo emblemático o caso do abatimento de 50% no preço da água fornecida a uma termelétrica a carvão no estado do Ceará, em meio a uma das secas mais severas dos últimos tempos). Implica em atribuir um preço adequado aos combustíveis fósseis (incluindo os danos ambientais, os impactos climáticos e os prejuízos à saúde humana associados à sua extração, processamento e queima, enfim à toda sua cadeia produtiva).
Utópico? Não diria. Diria que é um duro chamado à responsabilidade, por parte de uma espécie que, coletivamente, assumiu um comportamento de alto risco, que revela um misto de ignorância, imaturidade, imediatismo, irresponsabilidade em relação ao impacto dos próprios atos e falta de zelo para com as gerações futuras. Se há algo que se assemelha mais a uma fantasia é a ilusão de que será possível manter a escalada de crescimento capitalista ancorada na queima de combustíveis fósseis sem que isso traga danos profundos, irreversíveis e trágicos à civilização humana e à maioria da biota terrestre.
Não falo de utopia, ou de heroísmo, portanto. O problema dos 400 não podem ser resolvidos apenas pelo voluntarismo e iniciativa de uns poucos (como os 300 de Esparta em seu tão decantado enfrentamento contra o poderosíssimo exército persa). Mudar a base infraestrutural da geração de energia em escala global requer intervenção de milhões, mobilizando-se, discutindo democraticamente e pressionando por políticas de mitigação baseadas em princípios de justiça climática e que estejam à altura da urgência da questão. Daí, é preciso que se diga claramente que é impossível resolver o problema sem enfrentar diretamente a plutocracia comandada pela indústria de combustíveis fósseis. Sem destroná-la, sem tirar de suas mãos o termostato do planeta, sem que resolvamos que petróleo e carvão devem ficar no chão e que é necessário mudar nosso sistema produtivo, econômico e político, ao invés de mudar o clima... aí serão outros 500...
P.S.: Outros 500? Sim, pois há combustíveis fósseis disponíveis para serem queimados em quantidade suficiente para exceder em 2000 ppm a concentração de CO
2. 500 ppm a mais de CO
2 na atmosfera, com o resultado esperado de 900 ppm na atmosfera indicado pelo círculo mais escuro, do lado direito do gráfico, são uma
receita certa para um completo desastre global, nos levando a um planeta provavelmente mais de 4 graus mais quente do que o presente!