A questão da disponibilidade subjetiva mais otimista ou mais pessimista em relação às perspetivas do socialismo permanece digna de interesse.
Não há porque não reconhecer que o projeto revolucionário atraiu, preferencialmente, pessoas animadas por uma atitude otimista. Essa perspetiva sobre o futuro da condição humana, e as possibilidades históricas da luta igualitarista dos trabalhadores ajuda a manter, politicamente, um compromisso militante, para além das vicissitudes das derrotas mais imediatas. Esta aposta repousou na esperança de que o proletariado, uma maioria assalariada que permanece politicamente dominada, socialmente oprimida e economicamente explorada, seria capaz de lutar por si mesmo de forma independente.
Entre os fundadores, e no marxismo da Segunda e, também, da Terceira Internacional predominou uma inflexível confiança de classe, e um otimismo histórico sobre a transição ao socialismo. Este otimismo foi criticado ou acusado de fatalismo ou até mesmo teleologia. Uma das suas expressões teóricas mais criticadas pode ser encontrada no “Tratado sobre Materialismo Histórico” de Bukharin. Convém notar que a fórmula sempre condenada, porém, pouco citada de Bukarin era, essencialmente, condicional:
A condição necessária para um ulterior desenvolvimento é também chamada com muita frequência de necessidade histórica. É neste sentido do termo “necessidade histórica” que podemos falar da “necessidade” da revolução francesa, sem a qual o capitalismo não teria continuado o seu crescimento, ou da “necessidade” da chamada “libertação dos servos”, em 1861, sem a qual o capitalismo russo não teria podido continuar o seu desenvolvimento. Neste sentido podemos também falar da necessidade histórica do socialismo, desde o momento que sem ele a sociedade humana não pode continuar o seu desenvolvimento. Se a sociedade deve continuar a sua marcha, o socialismo é inevitável. (tradução e sublinhado nosso)1
As lutas decisivas, portanto, a hora da revolução, poderiam variar e tardar de nação para nação, mas a perspetiva estratégica abraçada pelo marxismo era otimista sobre o futuro do socialismo. O capitalismo estaria condenado a sucumbir de crise em crise, e cada terremoto destrutivo teria que provocar uma reação e resistência do proletariado. A vitória da revolução socialista, ou seja, a conquista do poder pelos trabalhadores e seus aliados permanecia condicionada pelas reviravoltas da luta de classes: um desenlace incerto. Não obstante, as derrotas parciais e nacionais seriam um momento de uma longa marcha que preparava, na dimensão mundial, novos combates em condições mais favoráveis à vitória final.
Entretanto, os medos, as inseguranças e a imaturidade do proletariado diante do desafio da luta pela direção da sociedade continuam a ser a tese que sustenta o desalento, a desesperança, portanto, o ceticismo na possibilidade de triunfo de uma estratégia revolucionária. O argumento de que 150 anos de luta pelo socialismo teriam sido mais que o bastante para demonstrar a inviabilidade do projeto pode impressionar.
O argumento é forte, mas não é novo. Esta posição não deveria surpreender em períodos de refluxo prolongado, ou depois de derrotas muito sérias, derrotas históricas. Não foi diferente depois das derrotas das revoluções de 1848, ou depois da derrota da Comuna de Paris em 1871, ou depois da derrota da revolução de 1905 na Rússia, ou depois da derrota da revolução alemã em 1923, ou depois da derrota diante do nazi-fascismo em 1945 e da república na Guerra Civil Espanhola em 1939.
O impressionismo foi sempre perigoso em política, e fatal em teoria. Os receios e as angústias diante dos desafios da luta de classes alimentam-se na força de inércia que atua, poderosamente, no sentido de manutenção e conservação da ordem. As forças de inércia histórica apoiam-se, por sua vez, em muitos fatores (materiais e culturais). Eles não devem ser subestimados. É porque são grandes estas pressões que as transformações históricas foram sempre lentas e dolorosas.
A transição socialista, a passagem do poder de uma classe privilegiada para uma maioria despojada, algo muito diferente da passagem de uma classe proprietária para outra classe proprietária, prometia, previsivelmente, ser um processo extremamente difícil. São, em geral, necessários grandes intervalos para que a classe trabalhadora possa recuperar-se da experiência de derrotas, e consiga gerar uma nova vanguarda, recuperar a confiança nas suas próprias forças, e encontrar disposição para arriscar de novo pela via da organização coletiva, da solidariedade de classe, e da mobilização de massas.
O marxismo fez uma aposta nas possibilidades da luta política. O que se quer dizer com uma aposta na política? Isso significava, para o marxismo clássico, que o capitalismo empurrava o proletariado, apesar das suas hesitações, pela via da experiência material da vida, das crises e catástrofes cíclicas, na direção da luta de classes. A história está repleta de episódios de rendição política de movimentos, frações, partidos, lideranças e chefes. Mas as classes em luta “não se rendem”. Recuam, interrompem as hostilidades, diminuem a intensidade dos combates, duvidam das suas próprias forças, mas, enquanto existem, acumulam novas experiências, reorganizam-se sob novas formas e voltam à luta. As classes podem agir, por um período, maior ou menor, contra os seus próprios interesses. Mas não podem renunciar definitivamente à defesa dos seus interesses: as classes não fazem “seppuku”.
As batalhas, os combates, cada luta são nessa escala e nessa proporção, numa perspetiva histórica, sempre batalhas parciais e transitórias, vitórias ou derrotas momentâneas. As relações de forças alteram-se, e podem ser, por um período, mais desfavoráveis ou menos, com sequelas mais duradouras ou mais superficiais. Entretanto, não existe para uma classe social a possibilidade histórica do suicídio político.
Uma classe social pode ser “destruída materialmente”, para usar uma expressão brutal, em função de um processo de desenvolvimento ou regressão histórica profunda, e deixar de existir enquanto sujeito social. Isso também já ocorreu variadas vezes na história. Mas, sempre, de forma involuntária: enquanto existir, ou seja, enquanto for económica e socialmente necessária, resistirá e lutará. Se o fará com disposição revolucionária ou não é uma outra questão.
Esse é o foco apropriado para a discussão dos vaticínios marxistas sobre o papel do proletariado. Uma aposta na luta política, para o marxismo, significava que o proletariado, mesmo consideradas todas as limitações objetivas e subjetivas que o condicionavam, mais cedo ou mais tarde, se veria diante da última alternativa, o caminho da revolução. Poderia precisar de um longo período de aprendizagem sindical e ou parlamentar para esgotar todas as outras vias, para vencer as ilusões. Ilusões nas possibilidades de reformar o capitalismo, por exemplo. Poderia, também, dispensar ou abreviar, as décadas de experiência na colaboração de classes: porque as lições se transmitem por variadas formas e, mais intensamente, na medida em que a dinâmica internacional da luta de classes se acentua.
Os proletariados aprendem com os processos de luta de classes uns dos outros, em diferentes países, e não necessariamente teriam de repetir sempre os mesmos caminhos. Mesmo num mesmo país, as “vantagens do atraso” permitem que destacamentos da classe trabalhadora aprendam com a experiência dos setores que se lançaram à luta na frente de forma pioneira.
Há, todavia, momentos na História em que as massas, exasperadas por décadas de exploração e perseguição, perdem o medo. E inclinam-se, então, perante a “última alternativa”. É aí que a revolução surge aos olhos de milhões não só como necessária, mas como possível. Quando, e em que circunstâncias, é um dos temas mais difíceis da elaboração marxista. Mas esses momentos são mais frequentes do que usualmente se pensa. E quando o proletariado perde o medo ancestral de se rebelar, toda a sociedade mergulha numa vertigem da qual não poderá emergir sem grandes convulsões e mudanças. O turbilhão da situação revolucionária é uma das tendências mais profundas da época histórica.
Quando esse sentimento de que não é mais possível continuar a viver nas condições impostas pela ordem do capitalismo é compartilhado por milhões, então, a força social da mobilização da maioria assalariada transforma-se numa das forças materiais mais poderosas da história. Uma força material terrível, maior do que os exércitos, do que as polícias, do que os média, as igrejas, quase imbatível. Esses momentos são as crises revolucionárias. Que a maioria das revoluções do século XX tenham sido derrotadas não demonstra que não venham a ocorrer novas vagas revolucionárias no futuro.