Aquando das primeiras neves, um manto frio cobre de branco os telhados, as árvores e as cidades. Mas até Abril, a mesma neve será atropelada e salgada, pisada e coberta de areia para que não escorregue quem a pisa, derretida e novamente congelada, até mais não ser que uma pasta castanha de água chilra empapada em terra e lixo. De manhã, enquanto removo este gelo sujo que me bloqueia o carro, interrogo-me se este lugar terá alguma vez ouvido a canção que instintivamente assobio e desafinadamente trauteio. Sim, com certeza que até na memória deste chão distante estará guardada a senha do meu povo «...em cada esquina um amigo, em cada rosto igualdade...». Alguém já te terá cantado, alguém já te terá sabido, «Grândola, vila morena, terra da fraternidade». Disto me interrogo e de outras coisas mais, como quando acabará esta neve, que não nos deixa ver o chão? Ou até quando resistirá à nova estação que já se sente? Porque não bastará o já óbvio sol da primavera para a neve se ir embora? Ou terá de ser removida, novamente, pela força?
Como a neve de Boston, que em Abril ainda provoca a primavera em serôdia teimosia, também o meu povo teve amiúde de afastar elementos estrangeiros à vontade da sua estação histórica. Assim foi com João I de Castela, Filipe IV de Espanha, Miguel I, Carlos I e Marcelo Caetano entre numerosíssimos e mui ilustres outros. Em tudo, são serôdias como estas neves as nossas classes dominantes. Incestuosa casta de tradições obsoletas e costumes atrasados que prefere a renda garantida ao risco do investimento, não cedem em nada voluntariamente. Pedro Passos Coelho (um pequeno Costa Cabral) sabe perfeitamente que a receita da austeridade não funciona, que apenas gera mais recessão, desemprego e miséria.
Desde que a Troika Nacional acordou com a Troika Estrangeira o Pacto de Agressão, a taxa de desemprego subiu de 12,7% para 17,7%, ao passo que a dívida pública escalou dos 108% para os 122%. Em pouco mais de ano e meio, foram destruídos 400 mil postos de trabalho, os salários caíram mais de 20%, o PIB tombou mais de 8% e o investimento público 50%. A pobreza alastrou a 25% da população, a mortalidade infantil aumentou e diariamente somos confrontados com notícias de suicídios de quem preferiu desistir da vida a desistir da dignidade. Não há alternativas, dizem. Ao mesmo tempo que os grandes grupos económicos acumulam riquezas obscenas.
Mas o povo português provou, para além de qualquer dúvida, que este governo não é mais que um cadáver adiado. Da sua morte deu notícia a manifestação de 2 de Março, quando inundámos as ruas com uma antiquíssima indignação: uma semente que plantámos mal nos fizemos povo e depois regámos em 1385, 1640, 1910 ou 1974 com a força atávica dos tambores e multidões que tem, por qualquer meio, de vir à superfície. E ao milhão e meio de portugueses que em Portugal disseram basta, juntaram-se outros por todo o mundo. Em Londres, Paris, Estocolmo, Madrid, Barcelona, Berlim ou Boston, foram centenas os que protestaram nos consulados e embaixadas. Para além de um fenómeno político sem paralelo desde 75, as manifestações no estrangeiro traduzem uma mudança qualitativa no perfil dos emigrantes.
Nós, emigrantes, somos exilados. Não fomos à procura de uma oportunidade, fomos porque não tínhamos nenhuma. Não precisámos que nenhum primeiro-ministro nem nenhum secretário de estado nos encorajasse a ir embora, porque, para a maioria não foi uma opção, foi uma chantagem. Partimos invariavelmente com lágrimas na cara e raiva no coração contra quem nos expulsou. Mas não seremos mais comunidades bem-comportadas a quem os governantes do PS, PSD e CDS-PP gostam de vir dar palmadinhas nas costas. Esse tempo acabou. Mais e mais de ora em diante as nossas famílias não contarão apenas com remessas em dinheiro, contarão também com remessas de luta e solidariedade. Não seremos biombos de sala nem agentes de viagens para um país de criados e vendido ao turista. A tarefa urgente da emigração é contribuir para que o governo caia tão cedo quanto antes e garantir que não visite com tranquilidade nenhuma parte do globo onde haja portugueses. Este governo ansiava por ver-nos pelas costas. A nós, e à nossa juventude e combatividade. Mas agora somos 150 mil a emigrar por ano e queremos muito mais do que uma vida digna noutro país. Exigimos que nos devolvam a escolha de emigrar. Exigimos a luz do Largo do Carmo, o cheiro da Gardunha e o pão alentejano cortado pela manhã. Exigimos o bulício dos mercados, as conversas dos cafés, a velhice dos nossos pais e os abraços dos amigos. Exigimos que emigrar seja uma opção e não uma obrigação e exigimos estar ao lado do nosso povo quando ele, por fim, se levantar. Exigimos poder voltar; e sabemos que isso só será possível com um governo de natureza e prioridades diametralmente distintas.
Também aqui em Boston se fizeram ouvir os ecos da Grândola. Enfrentando temperaturas negativas, trouxemos a estas ruas as vozes do nosso povo, acusámos que o mesmo governo que tanto elogia o acto de emigrar é também o maior inimigo dos emigrantes. Sendo certo que a manifestação de dia 2 de Março não foi o princípio nem o fim, prometemos que para onde quer que esta luta vá, os portugueses longe de Portugal irão também.