Originário de Amarante, no Piauí, o conhecido sociólogo e lutador social nasceu no seio de família de classe média remediada. Filho de mãe branca e de pai negro, tinha entre seus ancestrais nobres europeus e africanos, senhores de engenho e cativos.
Clóvis Moura ingressou no PCB em 1942, trabalhando como jornalistas em Salvador e, a partir de 1949, em São Paulo. Interessado pela questão social e racial no Brasil, empreendeu aos 23 anos pesquisa sobre a luta dos trabalhadores escravizados nos arquivos baianos, concluída em 1952. Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas foi trabalho pioneiro na interpretação da antiga formação social brasileira, apresentada claramente como escravista e regida pela oposição escravizados e escravizadores.
O trabalho germinal de Clóvis Moura teria escassa aceitação e legitimação. Desconsiderado pela inteligentizia oficial, foi mal recebido pela intelectualidade do PCB, ao contrariar as teses sobre formação social semi-feudal. Terminou sendo rejeitado pela prestigiosa Editora Brasiliense, de Caio Prado Júnior, para conhecer publicação, sete anos mais tarde, em 1959, pela micro-editora Zumbi, fundada por militantes comunistas para publicar obras não aceitas pela Editora Vitória, do PCB. Em 1962, Clóvis Moura esteve entre os poucos intelectuais que romperam com aquele partido para fundar o PC do B.
Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas conheceu uma reedição ampliada, pela Editora Ciências Humanas, em 1971, doze anos após sua publicação, durante a ditadura militar, e duas outras reapresentações, a última pela editora Mercado Aberto, de Porto Alegre, em 1988, quando do primeiro centenário da abolição da escravatura, há já 25 anos!
Rebeliões da Senzala
Em Rebeliões da senzala: quilombos, insurreições, guerrilhas, parcialmente ainda sob a influência da visão de Gilberto Freyre da escravidão negra como produto da inaptidão cultural do americano ao cativeiro, Clóvis Moura assinalou que o “estabelecimento da escravidão" subvertera “em suas bases o regime de trabalho até então dominante”. Assim sendo, propôs o caráter hegemônico da escravidão, avançando que, “do ponto de vista sociológico”, ela dividira “a sociedade colonial em duas classes fundamentais e antagônicas" − a dos escravizadores, "ligados economicamente à Metrópole", e a da "massa escrava", formada pela "maioria da população", que "produzia toda [sic] a riqueza social”.
Sobre a produção mercantil da Bahia de inícios do século 19, extremando, avaliou que “era toda baseada no trabalho escravo” e que as “relações escravistas determinavam todo o conjunto da sociedade baiana”. Defendeu que os “escravos, os pequenos lavradores, sitiantes, pecuaristas, intelectuais e artesãos” vivessem “asfixiados pelos senhores de engenhos e [de] escravos que usufruíam vantagens desse sistema de economia colonial”. Em leitura igualmente inovadora, enfatizou a importância histórica da Abolição, que apresentou como decorrência do fim do tráfico. Assinalou com sensibilidade a cisão do abolicionismo em “ala moderada” e ala “radical”, que se voltara “para os próprios escravos, organizando-os para que lutassem com suas próprias forças [...].”
Clóvis Moura destacou a participação da pequena “classe operária” e a evolução da consciência do cativo durante a luta abolicionista. Sua visão arguta da Abolição é impugnada comumente pela historiografia brasileira e pelo próprio movimento negro que desvalorizam o sentido revolucionário da superação do escravismo, em 1888, devido à situação atual do brasileiro com afro-ascendência, em desqualificação inaceitável da até hoje única revolução social vitoriosa no Brasil, produto sobretudo da mobilização das classes exploradas.
Clóvis Moura investigou sumariamente a participação dos cativos nos principais “movimentos políticos” do passado – Inconfidência Mineira, Revolução de 1917, etc. –, destacando que “eram aliciados e engrossavam” movimentos das classes dominantes. Destacou nessas lutas a singularidade da conspiração baiana de 1798, a única realmente a se mobilizar contra a escravidão. Minimizando a resistência “individual” e orgânica dos cativos à escravidão – fuga, justiçamento, etc. –, enfatizou as “revoltas” coletivas nas quais o cativo lutaria “por objetivos próprios” – quilombos, guerrilhas e insurreições. Propôs que os quilombos assumiriam “forma defensiva” e “insurrecional, com o objetivo de esmagar seus senhores”.
Em defesa do quilombo
Clóvis Moura apresentou o fenômeno “quilombo” como “geral” e “constante” na história do Brasil e expressão do “inconformismo do negro”, determinado pelas regiões e época em que surgia e pela capacidade de articular-se com índios, cativos e livres pobres. Apontou e analisou quilombos de várias regiões do Brasil e destacou a importância do mocambo do “preto Cosme” na Balaiada, lembrando que ainda não tivera seu “historiador” e a desqualificação habitual do “líder quilombola” como “megalômano ou paranoico”. Em Evolução política do Brasil, de 1933, Caio Prado referira-se ao quilombo e a dom Cosme em forma depreciativa. Não sabemos se a proposta sobre a subalternidade de dom Cosme fazia parte do original de Rebeliões na Senzala apresentado ao célebre historiador.
Clóvis Moura definiu o “Quilombo dos Palmares” como “a maior tentativa de autogoverno dos negros fora do Continente Africano” e sintetizou as principais insurreições escravas, enfatizando as baianas. Propôs que a revolta de 1835 fora “planejada nos seus detalhes”, destacando seu projeto “político” necessariamente limitado – matar “os brancos, pardos e crioulos”.
Em 1951, Clóvis Moura recebera resposta de carta enviada a Édison Carneiro. Ela assinalava o caráter “extremamente importante” da pesquisa e enfatizava a necessidade de que não esquecesse a “importância” do “motivo religioso” nos levantes servis. Para Carneiro, a “religião” era “o vínculo nacional entre os escravos” e o “substantivo quilombo” significava também “ajuntamento religioso”. Moura não seguiria a recomendação do conhecido pesquisador, também ligado ao PCB.
Clóvis Moura concluiu seu trabalho com análise sintética das lutas diretas dos trabalhadores escravizados, que propôs não se tratarem comumente de “revoltas” dominadas “por simples paixões momentâneas”, mas planejadas “detalhadamente”, em super-avaliação da capacidade de consciência explícita dos trabalhadores escravizados. Destacou entretanto as debilidades objetivas dos movimentos.
Ruptura epistemológica
Publicado em 1959, Rebeliões da senzala efetuava ruptura epistemológica ao propor que a “imensa massa escrava” impulsionara a “economia colonial” e esmagara “quase inteiramente o trabalho livre”. O trabalho rompia com as visões da historiografia tradicional e do PCB, ao afirmar o caráter sistêmico do trabalho feitorizado e da escravidão. Questionava, assim, a proposta de existência de povo brasileiro e da centralidade de lutas camponesas contra os grandes proprietários na pré-Abolição. Em verdade, naqueles anos, os segmentos camponeses eram extremamente minoritários no Brasil.
Como os trabalhos germinais anteriores de Manuel Bomfim, Manuel Querino e Benjamin Péret, não utilizados e citados por Clóvis Moura, a visão germinal do passado do jovem intelectual marxista não teve desdobramentos imediatos. A seguir, dominaram interpretações que assinalaram a importância e a violência da escravidão, o caráter não escravista do passado, a infecundidade da resistência servil do trabalhador escravizado, consagradas pela célebre Escola Paulista de Sociologia – Florestan Fernandes, Fernando Henrique Cardoso, Octário Ianni, entre outros.
Décadas mais tarde, em fins dos anos 1970 e início de 1980, a centralidade do mundo do trabalho impôs-se transitoriamente no Brasil, devido ao avanço das lutas sociais. Então, abriu-se espaço para que o trabalho e a resistência do escravizado conquistassem importante status acadêmico. Nesse breve período, a visão de Clóvis Moura inspirou novos estudos sobre a história social da escravidão. Muito logo, com o refluxo das lutas sociais e hegemonia conservadora, consolidaram-se a reabilitação da visão de escravidão patriarcal, pactuada e negociada e a qualificação da leitura germinal de Clóvis Mouro como visão romântica de um cativo eternamente rebelado.
Liderança Negra
Em 1970, ainda sob a ditadura militar, Clóvis Moura transformou-se em uma das mais destacadas e influentes lideranças do movimento negro organizado, posição que manteria na década seguinte, até a consolidação das visões e propostas colaboracionistas e racialistas nos anos 1990, até hoje plenamente dominantes. Nos últimos anos de sua vida, como comunista sem partido, mantendo sempre a radicalidade de seu pensamento, Clóvis Moura colaborou com a Editora Expressão Popular do MST, já sem acesso às grandes editoras e meios de comunicação.
Clóvis Moura produziu importante obra histórica, sociológica e poética, na qual se destacaram trabalhos preciosos sobre diversos aspectos da formação social brasileira, sobretudo referentes à escravidão e às relações sócio-raciais, temas sobre os quais se debruçou longamente, sobretudo na década de 80. Nos últimos anos de sua vida, ocupou-se na conclusão de seu Dicionário da escravidão negra no Brasil, publicado postumamente, em 2004, pela EdUSP.
Na produção científica relativamente limitada sobre a obra de Clóvis Moura destacam-se a dissertação de mestrado, de 2002, de Erika Mesquita, “Clovis Moura : uma visão critica da historia social brasileira”, defendida na UNICAMP; o livro coletivo publicado em sua homenagem, em 2003, sob a coordenação do historiador Luís Sávio de Almeida, O negro no Brasil: estudos em homenagem a Clóvis Moura[www.edufal.br]; a dissertação de Fábio Nogueira de Oliveira, de 2009, “Clóvis Moura e a sociologia da práxis negra”, defendida na UFF.
Em 2004, o valioso acervo pessoal de Clóvis Moura – que era magnífico missivista – foi entregue por sua família ao Centro de Documentação e Memória da UNESP. Ao batizar como Clóvis Moura um dos seus campi, a Universidade Estadual do Piauí demonstrou certamente que santo forte faz, sim, milagres em sua terra!
O decênio de Clóvis Moura será certamente oportunidade excelente para discussão da vida e da obra de um dos mais destacados pensadores e lutadores sociais brasileiros do século 20.