O recém-empossado presidente, sob uma parada de drones nos céus de Washington, procurou estabelecer paralelos entre si, o primeiro negro nesse cargo, e Martin Luther King. Pousou até para uma sessão de fotografias junto ao busto do líder do movimento dos direitos civis. Mas que direito tem Obama de se apropriar do legado de Martin Luther King? E se Martin Luther King fosse hoje vivo (teria 84 anos), estaria sentado na assistência ou do outro lado das grades, com os manifestantes que protestavam contra a política imperialista de Obama?
Nas décadas que nos separam do seu assassinato, a imagem de Martin Luther King foi alvo de uma campanha sanitária para higienizar e esterilizar as suas ideias políticas. O MLK que a maioria dos estado-unidenses hoje conhece, é um irreconhecível negro bonzinho e daltónico que profetizou a sociedade americana dos nossos dias: uma espécie de Pai Natal negro que só chega em Janeiro.
Quando em 1964 um jornalista da BBC preguntou a MLK se algum dia um negro chegaria à presidência, o histórico líder do movimento dos direitos civis respondeu afirmativamente e pressagiou que em 25 anos ou menos essa realidade se poderia concretizar, advertindo porém para a “integração” de negros “nos andares mais altos de uma casa em chamas”. O incendiário Obama é a prova viva da penetração de alguns negros nas estruturas de poder de uma sociedade (ainda) segregada. Uma casa em chamas em que as condições de vida dos negros se deterioram de ano para ano.
O sonho de MLK nunca se concretizou: o desemprego dos negros (15%) continua a ser o dobro dos brancos e mais que duplicou em relação à década de 601; Segundo o Census Bureau, desde a década de 80, os rendimentos das famílias negras caíram 36% ao passo que os das famílias brancas aumentaram 39%, ao ponto de em 2011, os negros serem em média 22 vezes mais pobres que os brancos2. Da mesma forma, a taxa de encarceramento dos negros tem subido em flecha desde os anos 60, sendo hoje seis vezes superior à dos brancos, com 7% de todos os homens negros atrás das grades3.
Martin Luther King dedicou toda a sua vida à defesa dos trabalhadores mais pobres. Organizou greves, defendeu sindicatos e enfrentou a política corpo a corpo. O sonho que nos contou um dia, não era o pacto de austeridade que Obama está a pactar com os republicanos, com cortes na educação, Medicaid e Medicare. MLK foi um paladino da educação pública e gratuita, um defensor intransigente de um sistema de saúde público e universal. Quando, em 1967 a repórter canadiana Eleanor Fischer lhe preguntou sobre a sua preferência política, MLK manifestou a sua repulsa por ambos os partidos Republicano e Democrata, manifestando a necessidade de um terceiro partido.
Que não haja dúvidas: para além da cor da pele, Obama não tem nada em comum com Martin Luther King e para a libertação social e política dos negros americanos, o facto do presidente ser negro é tão importante como para os moradores da Cova da Moura que a mulher de Passos Coelho seja negra.
Obama é o presidente que mais imigrantes ilegais deportou na história dos EUA, é o presidente dos aviões não tripulados que espalham a morte e a destruição do Paquistão ao Iémen. É o presidente que elabora listas com centenas de indivíduos a abater. É o presidente que autorizou a repressão mais brutal e a espionagem contra o Occupy Wall Street e grupos pacifistas. É o Presidente de Guantánamo que se gaba de ter assassinado Osama Bin Laden.
Martin Luther King era um auto-proclamado revolucionário, que se opôs ao “imperialismo americano” e à guerra do Vietname, afirmando que o “Governo dos EUA” é “a principal fonte de violência no mundo” e que “não tem os recursos morais ou económicos para ser o polícia do mundo”. Se fosse vivo, enfrentaria as guerras de Obama com a mesma coragem política com que enfrentou as de Lyndon Johnson e estaria com os sindicalistas do Michigan e do Wisconsin, como um dia esteve com os de Montgomery e de Memphis.
O aprofundamento da crise do capitalismo, a vitória de Wall Street sobre o capital industrial e a regressão das relações internacionais à orgia de sangue dos tempos medievais são o sonho de Obama e o pesadelo de Martin Luther King. A história dará razão ao último.