Foi um verdadeiro rio de guarda-chuvas e solidariedade, aquele que ontem inundou as principais artérias de Bilbau. Enfrentando por igual o txirimiri, a cortante chuva basca, e o imobilismo rombo de Madrid, mais de 115 mil mulheres e homens, deram a cara pela repatriação dos Presos Políticos Bascos e por uma solução justa e definitiva para o conflito.
Este rio humano, uma das maiores manifestações da história do País Basco, estava feito do mesmo líquido anónimo que faz mover as grandes rodas da História. Foi um povo inteiro, quem ontem falou a uma só voz. Dos Pirenéus navarros às serras de Álava, das montanhas da Biscaia às costas da Guipúscoa, este rio e este povo confluíram de toda a Euskal Herria em Bilbau. Superaram os diques impostos pelos Estados e transbordaram as ruas que lhes pertencem com um clamor: “Os Presos Bascos, no País Basco”.
A este rio, opõe-se a barragem dos Estados francês e espanhol, que mesmo depois da ETA ter declarado o fim definitivo da sua actividade armada, insistem em conservar o estado de excepção. Embora a Esquerda Independentista se tenha comprometido com o recurso exclusivo a meios pacíficos e tenha mesmo reconhecido o sofrimento causado pela ETA, o governo de Rajoy mantem-se amarrado ao cenário da confrontação armada. Teima em manter uma lei de partidos fascizante, em perseguir os independentistas, em reprimir os movimentos populares pela violência e em fazer uso da tortura.
O Governo de Rajoy tem-se oposto a todos os esforços de solucionar o conflito, brindando com intransigência e irresponsabilidade todas as ofertas incondicionais de paz. Mas porque razão não quer o Governo espanhol a paz? Porque razão faz orelhas moucas à própria comunidade internacional, que com cada vez mais veemência o pressiona para discutir as consequências do conflito? Porque razão se recusa até a falar com a ETA sobre as questões técnicas da entrega das armas? Porque razão aposta em manter aberto o ciclo de confrontação armada, ao ponto do Ministro da Justiça espanhol ter declarado que a manifestação (pela paz) de ontem devia ter sido proibida?
Qualquer Estado democrático celebraria o fim de meio século de violência armada. Mas o Estado espanhol não é democrático. Na verdade, o Estado espanhol estava muitíssimo confortável com a dinâmica ad-eternum de enfrentamento armado com o independentismo. No tema das pistolas e das bombas, o Estado espanhol joga em casa. Já no terreno democrático, resvala, peca por falta de argumentos e sabe que perde. É por isso que o Estado espanhol tem um medo de morte a que os Bascos possam decidir o seu futuro livremente. É por isso que lhe interessa de sobremaneira que o sangue não seque e as feridas não sarem.
Para manter as feridas abertas, para além de evitar o diálogo e a normalização política, o Estado espanhol tem reforçado a sua aposta na mais velha das receitas para a guerra: da Palestina à Irlanda, de Angola à Colombia, há um sentimento comum que leva os povos a erguerem-se em armas, a predisporem-se a matar os seus semelhantes. Esse sentimento é a humilhação. No País Basco, há um antiquíssimo sentimento visceral de espezinhamento que Espanha pretende manter, entre outros meios, com a dispersão dos presos.
A dispersão dos Presos Políticos Bascos é o exemplo mais gritante de uma política penitenciária de excepção, talhada à medida de um conflito político-militar que já não existe. Os mais de seiscentos presos bascos estão tão afastados de casa quanto a lonjura de Espanha e França permite, nalguns casos a mais de mil quilómetros das suas famílias. É-lhes aplicada uma lei especial, concebida para os isolar e torturar. Ao contrário de todos os outros presos, os Presos Políticos Bascos não podem gozar de liberdade condicional ao cabo de 2/3 ou ¾ da sua pena, que mesmo depois de cumprida, pode ser prolongada indefinidamente. Os Presos Políticos Bascos são também os únicos que não são libertados em caso de doenças graves e alvo de uma política penitenciária cruel de isolamento e desatenção médica.
Mas como nem a mais alta barragem pode demover o rio que a decidiu romper; nenhuma humilhação, nenhuma teimosia e nem o mais obtuso dos governos poderá deter os desejos de paz do povo basco. Pelo contrário, o autismo do governo Espanhol pôs a nu a sua debilidade democrática e provou que o seu problema não era verdadeiramente com o terrorismo mas com o independentismo de esquerda, que ameaça pulverizar a frágil unidade espanhola e provocar um efeito dominó na Catalunha e na Galiza. Recorde-se que nos dois últimos actos eleitorais bascos, a Esquerda Independentista alcançou resultados históricos e a posição de segunda força política. Também na Catalunha, o independentismo alcança o seu auge histórico e ruma para um referendo. Uma e outra vez, o Estado espanhol responde da única forma que sabe: com ameaças de repressão, ilegalizações e intervenções militares.
O rio que ontem inundou Bilbau não pode ser detido. Irá crescendo até desaguar um dia, mais cedo do que tarde, na paz. Uma paz verdadeira, sem vencedores nem vencidos, baseada na justiça e no respeito pela livre vontade das bascas e dos bascos. E nesse dia, o povo trabalhador basco, durante tantos séculos arrastado pelos rodapés de historiografias estrangeiras, despertará do sono embrutecedor a que o submeteram e, estou certo, há-de também decidir construir o seu próprio Estado e entrar definitivamente na sua própria História.
Goethe dizia que na impossibilidade de ser imparcial é preferível ser honesto. Para enterrar definitivamente o machado de guerra há que enfrentar com honestidade todas as consequências do conflito e falar abertamente sobre todas as vítimas, todas as armas, todos os presos e todas as leis. Essa é a única abordagem honesta que um conflito tão violento nos pode exigir. De pouco ou nada servirá ao Governo insistir na catilinária moralista da vingança, a única vingança que conhecerão será a paz das próximas gerações.