Assim, com o propósito de se empreender uma reflexão ética rigorosa, com base na qual se possa efetivamente (ainda que sempre de modo aproximativo, provisório, cauteloso) qualificar dada ação e responsabilizar alguém (inclusive a si próprio) por havê-la praticado, bem como dissuadir a outros de cometerem uma mesma falta e incitá-los a repetir um eventual acerto, deve-se efetuar um esforço investigativo acerca de quem age, do contexto de sua ação, do tipo e do grau de consciência com que opera o agente e dos propósitos de seu ato, pra que ser atenha ao mínimo.
Isso deve ser feito não apenas para situar o objeto analisado (a moral, seja em geral, de um povo, de um grupo ou de alguém) com vistas a compreendê-lo melhor e poder agir mais eficazmente sobre ele, mas também para julgar efetivamente e com rigor ainda maior o ambiente mais amplo no qual se insere o objeto em questão, cenário que também deve ser submetido a ação corretiva ou a estímulos de incremento, caso se revele como mais significativamente inspirador de uma conduta que possa ser tida como nociva do que daquela conduta que pode ser avaliada como benéfica, a partir de reflexão rigorosa. Somente assim se pode aspirar a alguma consistência não só nos julgamentos e nas devidas reprimendas ou devidos estímulos, como também no máximo de controle coletivo e democrático possível sobre as condições que se crê estimulantes à adoção dos valores e princípios que se pretendem encontrar nos indivíduos (os quais não se pretendem enquadrar em uma cartilha de dogmas relativos ao bom comportamento, mas manter sempre sob discussão acirrada e aberta), bem como estimulantes à sua realização por meio dos atos dessas mesmas pessoas.
Como é pouco usual, cabe numa Ética como essa que ora se propõe questionar radicalmente se as circunstâncias atuais (comumente apresentadas a nós como inamovíveis, apesar de sua historicidade) permitem que existam de fato como regra os indivíduos que elas já permitem produzir-se como exceções louváveis, que à maioria aparecem como heróis, ingênuos ou loucos, mas que os mais sensatos tentam se tornar, no mais das vezes em vão; cabe indagar se a sociedade contemporânea é um ambiente propício para o desenvolvimento de individualidades saudáveis o suficiente para a condução de sua vida interativa segundo padrões que já somos capazes de traçar, ainda que de modo precário, ou mesmo outros ainda muitíssimo mais elevados, alguns dos quais sendo apenas vislumbrados pelos mais perspicazes. Tudo isso, evidentemente, deve ser precedido do questionamento radical acerca da efetiva bondade daquilo que hoje usualmente se tem como bom; isto é, da reflexão crítica a propósito dos valores e princípios avaliados via de regra como positivos em nossa sociedade, que é uma dimensão do julgamento criterioso a que se submete essa mesma sociedade. Então, os questionamentos acerca da positividade ou negatividade do contexto atual para a emergência e efetivação de tais ou quais parâmetros se restringem aos preceitos que resistam a esse mesmo exame crítico.
Para promover-se uma reflexão nesse talhe, é necessário o estabelecimento não só de alguns pressupostos de caráter mais amplo, relativos à forma específica de ser do humano, único que pode agir moral ou imoralmente, como também de alguns outros relativos ao modo pelo qual essa forma de vida se ordena no contexto atual. Sem isso, a teorização pretendida careceria de sustentação e de consistência.
Com o intuito de suprir a primeira de tais demandas, serão feitas algumas explanações acerca do processo de auto-produção do humano enquanto ser sócio-histórico, que se opera através do intercâmbio concreto que envolve, demanda e propicia a qualificação das faculdades subjetivas dos indivíduos, dentre as quais aquelas que condicionam a sua moralidade: a reflexão e a vontade, atributos naturais em sua forma elementar, mas que são constantemente qualificados na prática concreta de caráter social e histórico, por meio da qual dão origem a capacidades cada vez mais complexas, relacionadas em uma trama interativa intrincada. Neste plano mais geral, abstrato, serão feitas algumas considerações a respeito de noções como sociabilidade, historicidade, individualidade, liberdade e cultura.
Além desses enunciados mais gerais acerca do humano como ser que produz a si próprio, serão apresentadas, para o suprimento da segunda das demandas enunciadas acima, algumas idéias acerca do momento atual do fazer-se humano do homem, caracterizado por sua configuração segundo o sistema social do capital. Nesse momento, pretende-se trazer à luz algo da contraditoriedade desse mesmo sistema, por meio da apresentação de possibilidades e limites engendrados pela interação humana conforme esse modo de produção.
Intermediária à consideração mais ampla sobre a forma especificamente humana de ser e à caracterização mais precisa da sociedade capitalista, traça-se uma distinção entre moral e ética, em que a primeira é anunciada como se constituindo pelo julgamento e pela ação orientados por costumes e hábitos de caráter normativo espontaneamente assumidos como válidos pelo indivíduo que age ou julga como boa ou má a sua própria ação e aquela de outros, que toma como semelhantes a si; ao passo que a última se apresenta como reflexão sobre aquele tipo de julgamento e ação, consideração que se opera com o respaldo de uma base filosófica mais ampla e se produz como uma espécie de justificação racional para os juízos e atos do referido tipo.
A ação ética, portanto, será apresentada como conduta moral racionalmente justificada ou justificável da perspectiva do gênero humano, o qual é compreendido como um tipo de ser processual que engendra a si próprio e não como um tipo de ser determinado por uma essência ou natureza muda qualquer. Irá apresentar-se, pois, como ação praticada com vistas ao bem comum, fundada em uma modalidade de reflexão por meio da qual se pretende alçar a um plano que transcenda a singularidade e a particularidade, superando caprichos e manias, por um lado, bem como tradições e costumes, por outro – o que não deve culminar no desprezo, mas na assimilação criteriosa, da bagagem cultural historicamente transmitida. Partindo-se, no entanto, do pertencimento de cada indivíduo à humanidade tal como se configura em momento dado, evita-se o risco de se naufragar em uma idéia de natureza humana tomada como fundamento do comportamento correto.
Desse modo, defende-se ser a reflexão ética capaz de evitar o essencialismo, preservando-se, por outro lado, do risco de aprisionamento inexorável dos indivíduos em uma cultura específica, em relação à qual eles se reduzem à impotência, bem como se precavendo do risco da dissolução de sua individualidade por outra via, através da drenagem de todo seu conteúdo efetivo, fazendo restar-lhes apenas um eu de certo modo avulso e vazio, cuja inserção social se dá de modo arbitrário.
Assim, intenta-se apresentar a ética, desde que operada segundo os moldes referidos, como sendo de grande utilidade. Útil, por exemplo, na avaliação de preceitos morais tradicionalmente defendidos como capazes de promover o bem comum, mas que por vezes não passam de mecanismos utilizados para se fazerem passar por universais interesses que são de fato singulares ou particulares e socialmente lesivos; bem como na avaliação da pertinência das reflexões similares, cujo foco, no entanto, centra-se na particularidade ou na individualidade como lócus de qualquer valoração, abstraindo tanto uma como outra de sua necessária inserção na universalidade, negando por princípio a abrangência de qualquer preceito – e recaindo no absurdo de crer que possa haver partes que não sejam constitutivas de um todo.
Por fim, cabe antecipar que, não obstante se defenda a utilidade da reflexão ética, no presente texto não se confere à mesma qualquer caráter resolutivo com relação aos problemas que a inspiram, nem se toma seu âmbito teórico como fundante de uma reflexão abrangente. Diferentemente disso, tal reflexão, assim como a filosofia em geral em que se baseia, será posicionada no bojo de um projeto mais amplo, em que a teorização multidimensional se insere como um elemento entre outros, embora de valor inestimável; um projeto de fomento das relações mais favoráveis para o livre desenvolvimento de todos.
O homem como ser sócio-histórico
O homem, quando compreendido a partir da complexidade progressiva de suas capacidades e anseios, e não a partir apenas de sua conformação física, não pode ser tido como um ser dado pela natureza, nem suas transformações como estritamente determinadas por aquela. Isto porque a complexificação dos anseios e das capacidades humanos se dá por obra dos próprios homens, em meio ao processo interativo de produção material de sua vida.
Quando se trata da produção material da vida humana, trata-se não apenas da fabricação de objetos úteis, mas trata-se do desenvolvimento efetivo, pelos homens que atuam em conjunto, de um modo de vida que lhes é próprio e lhes possibilita experiências cada vez mais diversificadas. Assim, o complexo produtivo material da vida humana constitui-se como matriz a partir da qual se torna possível o desenvolvimento de todas as demais dimensões do humano, por mais independentes que elas possam parecer com relação àquela matriz.
A maneira pela qual se dá a cooperação concreta dos indivíduos estabelecida por eles próprios em meio ao processo de produção de seu mundo e de si mesmos determina a forma da sociedade como um todo. Portanto, embora a sociabilidade (ou convivência interativa dos indivíduos) possa e deva ser entendida como a essência humana, essa mesma sociabilidade deve ser entendida não como uma essência fixa e imutável, mas como algo que se transforma constantemente, por obra dos próprios indivíduos. E isto afasta a existência social dos homens de qualquer outra existência grupal que se encontre na natureza, dado que neste âmbito as interações se dão à revelia de qualquer intencionalidade.
A própria sociedade não é senão o resultado constante e tendencialmente mais intrincado da interatividade deliberadamente produtiva dos indivíduos humanos concretos – interação em cujo interior são desenvolvidos novos e mais novos âmbitos de atuação, o que contribui a cada passo para distanciar a vida humana cada vez mais de algo que se possa considerar como natural. Deste modo, tem-se que a história humana é o resultado sempre provisório da produção de si mesmos pelos homens através de suas relações, as quais assumem aspectos cada vez mais complexos e, muitas vezes, contraditórios e insuficientes no que diz respeito à satisfação dos interesses da totalidade dos agentes envolvidos. Neste processo, podem-se instaurar contextos marcados pela exploração de uns por outros, inclusive com a participação de complexas instituições e artifícios diversos desenvolvidos de modo mais ou menos deliberado para esse fim, tais como os valores e princípios que induzam à reprodução das relações de dominação instauradas.
Individualidade e sociabilidade
A existência do indivíduo em dado contexto fornece a ele a possibilidade de assimilação de características mais gerais dos membros daquele grupo a que pertence. E a forma específica de sua participação propicia-lhe a assimilação de características mais particulares, bem como lhe propicia o desenvolvimento de características bem singulares, dado que sua inserção ali se dá através de um fio único de experiências. No fim, o indivíduo se caracteriza por uma espécie de síntese exclusiva de múltiplas determinações possíveis em seu mundo.
O caráter único da individualidade humana não deve ser negado. Ao contrário, deve-se afirmar a unicidade do indivíduo como algo de que não se pode privá-lo, que todos os traços de sua personalidade são conseqüências, na maioria das vezes não programadas, de sua atividade própria e singular de adaptação do mundo que o envolve (e de seu próprio organismo) segundo suas necessidades igualmente próprias. Esta adaptação, no entanto, é condicionada pela forma já dada a este mesmo mundo pela atividade de outros indivíduos que, em conjunto e de forma mais ou menos deliberada, o fizeram tal como é; bem como é condicionada pela atividade dos demais indivíduos a ele contemporâneos, que a seu lado transformam continuamente aquele ambiente, transformando também a si próprios.
Esse condicionamento, portanto, não deve ser entendido como uma determinação estrita pelo ambiente. Ainda que em um nível muito elementar em muitos casos, a atividade de um indivíduo humano é livre, como será visto adiante. Um indivíduo humano não tem suas necessidades nem o modo de reagir a elas determinado estritamente por algo que lhe seja externo. Seu ambiente lhe impõe condições (possibilidades e limites), mas suas ações são, mais ou menos, deliberadas.
Por isso, não faz sentido distinguir, em uma mesma pessoa, algo que a constitua “enquanto indivíduo” daquilo que a constitui “enquanto membro da sociedade”, uma vez que um indivíduo concreto só se configura enquanto tal a partir do conjunto de seus predicados (suas qualidades), cuja quase totalidade possui caráter social (com exceções devendo ser feitas no tocante a suas características fisiológicas, que, no entanto, também podem ser, cada vez mais, socialmente alteradas), e uma vez que toda e qualquer sociedade só se constitui a partir e através de relações entre indivíduos. É certo que há, em vários casos, discrepância entre o modo como um indivíduo age na presença ou na ausência de outros de seu grupo ou subgrupo social (aqui entendido como qualquer particularidade inserida na universalidade do todo em que se insere, isto é, a humanidade que lhe é contemporânea); mas isso não implica que em algum desses momentos ele deixe de ser social.
Todos os âmbitos da vida humana têm caráter social. Mesmo os anseios mais íntimos de um indivíduo derivam de seu contanto, inegavelmente único (e até certo ponto singularmente mediado), com o todo (ainda que apenas através de algumas de suas partes) do mundo (coisas, pessoas, instituições) no qual ele vive, cuja existência é social e histórica: derivada não só da interatividade dos indivíduos com os quais vivemos hoje, mas também daquela que existiu entre os indivíduos das várias gerações que nos precederam, como já se defendeu acima.
Quanto às diferenças, além de assumir que elas existem entre as pessoas, o que é da ordem do óbvio, devemos empenhar-nos em compreender de que tipo são tais diferenças, pois também é óbvio que as diferenças são diferentes entre si e a manutenção de umas ou outras, portanto, surte efeitos diversos e mesmo contraditórios.
Há, certamente, algo de muito válido no imperativo de se preservar a diversidade dos indivíduos. No entanto, é válido também questionar: quais são as diferenças que devemos lutar por manter, aquelas que segregam os indivíduos em grupos involuntariamente formados a partir de sua situação econômica etc. ou aquelas que garantem a cada um a singularidade de uma personalidade formada a partir de uma experiência única de apropriação de uma parcela livre e responsavelmente escolhida da riqueza social (entendida esta riqueza como diversidade de predicados humanamente possíveis e sócio-historicamente engendrados, acompanhada, obviamente, das coisas concretas que a condicionam)? Outra pergunta que deve ser posta é: a preservação das diferenças do primeiro tipo não acarreta uma séria dificuldade de se manterem as de segundo tipo?
Liberdade e cultura
O indivíduo humano é, antes de tudo, um objeto. Mas, ele é um objeto que, além de vivo e consciente, é também auto-consciente. E, enquanto tal, ele é não só capaz de compreender o mundo à sua volta, mas de compreender-se neste mesmo mundo, colocar a si mesmo, em sua relação com este mundo, como objeto de seu pensamento. Ele é, portanto, sujeito; um sujeito capaz de auto-compreensão situada.
Mas ele não só compreende o mundo e compreende-se no mundo, em sua relação com este mesmo mundo. Ele é capaz, além disto, de determinar-se com base em tal reflexão, isto é, é capaz de impor a si mesmo objetivos que não lhe são naturais. Ele é capaz de traçar propósitos para si mesmo, com vistas a incrementar sua relação com o mundo, o que lhe abre a possibilidade de co-produzir o mundo propriamente humano, assim como a possibilidade de construir simultaneamente a si mesmo. Por isso, pode-se dizer que um indivíduo humano é livre, como fora antecipado acima.
Mas esse objeto que é, ao mesmo tempo, sujeito-livre-agente, capaz de reflexão (auto-compreensão situada) e vontade (autodeterminação situada), não vive em isolamento, como também já se antecipou. Sua relação com o mundo se dá no interior e através de sua interação com indivíduos que lhes são semelhantes. Ele é, portanto, sujeito-livre-agente-social, dado que é membro de um grupo cuja lida com o mundo se dá de modo cooperativo e dado também que é enquanto tal que ele se constitui como reflexivo e deliberativo, isto é, como capaz de problematizar sua existência e tomar decisões acerca dela. Sua reflexão e sua vontade são, portanto, condicionadas socialmente. Sua forma e seu conteúdo dependem do contexto social de que ele participa, contexto em que se dá sua relação com o mundo e consigo mesmo, embora, como também se mencionou, esse condicionamento não possa ser confundido com uma determinação absoluta.
Mas esse indivíduo é um sujeito-livre-agente-sócio-histórico, isto é, membro de um grupo cuja lida cooperativa com o mundo tem como resultado a produção constante de um novo mundo e de novos modos de se lidar com ele. É enquanto membro de tal grupo que o indivíduo humano é reflexivo e deliberativo.
Assim, a racionalidade humana é sócio-historicamente produzida; assim como é sócio-historicamente produzida a liberdade humana. Ambas se desenvolvem na medida em que os indivíduos humanos, articulados em relações sociais criadas e constantemente transformadas por obra sua, impõem a si mesmos novos propósitos e buscam alcançá-los, manobrando-se e ao mundo, em um processo de humanização de si próprios e deste mesmo mundo, a cujo resultado se pode dar o nome de cultura.
A produção cultural é, portanto, um processo de apropriação de si mesmos e da natureza, empreendido por indivíduos humanos articulados de forma relativamente livre através de seu convívio efetivo; processo que se opera através da manobra cooperativa pelos indivíduos de sua própria natureza, tal qual se encontra biologicamente em cada membro da espécie, com vistas à apropriação da natureza em que se encontram, da qual fazem parte e da qual dependem para viver.
Com base nas relações mais imediatamente voltadas à reprodução material das condições objetivas da existência dos indivíduos, estabelecem-se as demais esferas do convívio humano, que se distanciam deste âmbito mais fundamental, sem nunca deixar, no entanto, de depender desse mesmo âmbito e de referir-se a ele de algum modo. Isto é verdadeiro quanto às práticas sociais, em quaisquer esferas, que, de um modo ou de outro, dão legitimidade à forma de vida em questão, como o é no tocante àquelas que a ela se contrapõem, buscando seu revolucionamento.
A vida humana é um ininterrupto e cada vez mais complexo processo de manipulação relativamente autônoma, pelos homens em conjunto, de objetos e fenômenos que se dá em meio à processualidade natural aleatória. Nela se dá, como se viu, o estabelecimento pelos homens de seus próprios modos de interação (ainda que não seja comum que eles se dêem conta disto); o que determina a variabilidade que se nota nas formas de vida humanas. Dá-se aí também, através das relações acima referidas, o desenvolvimento de instrumentos variados: sejam eles ferramentas, materiais (como raspadeiras de pedra lascada e micro-computadores) ou imateriais (como idéias, fórmulas e valores); sejam eles habilidades, perceptivas, motoras e intelectuais. É fazendo uso conjunto de tais instrumentos que produzimos e nos apropriamos dos demais objetos que nos são úteis, seja para lidarmos com situações naturais, seja para lidarmos com situações artificiais.
O conjunto de relações, instrumentos e demais objetos e circunstâncias a que se fez referência é o que constitui a cultura de um dado grupo humano. E, dado que este conjunto se submete constantemente a acréscimos, ajustes, substituições, correções, articulações etc., deve-se admitir que a cultura de um dado grupo não é imutável. Deste modo, tentar manter intacta a cultura de um grupo é impedi-lo de produzir cultura.
Por isso, buscar defender a liberdade de um povo empenhando-se em perpetuar-lhes a cultura é, de fato, retirar-lhe de vez a liberdade, por que é negar-lhe a possibilidade de produzir cultura. É contribuir, portanto, com o aprisionamento histórico de um povo repudiar sua assimilação de elementos alheios e proibi-lo de se apropriar livremente de sua própria situação efetiva, que envolve o contato concreto com outras referências. Estimular-lhes a absorção crítica de todos os elementos, no entanto, é uma empreitada legítima; assim como é legítimo o seu estímulo à autocrítica constante.
Moral e ética
a) Moral
Quando se fala de moral, trata-se de sistemas de valores e princípios que regulam determinadas relações entre os indivíduos de dadas comunidades e entre estes indivíduos e sua comunidade como um todo. Tais sistemas de valores se caracterizam pelo fundamento que supostamente oferecem aos indivíduos para as ações que praticam com vistas ao bem comum (mesmo que de fato não o promova, nem contribua para isso, mas para seu oposto), no interior do mundo próprio comum instituído por sua interação efetiva. Eles são, portanto, parte dos elementos culturais constitutivos desse mundo.
A moralidade é, por sua vez, a capacidade dos homens em sociedade de criarem códigos de conduta moral e de agirem em conformidade aos mesmos, bem como de contrariá-los mais ou menos criticamente. E tal capacidade é imprescindível para a manutenção da cooperação (ainda que tensa e conflituosa) dos indivíduos na criação de seu mundo comum – condição para o seu desenvolvimento.
Cada moral particular é um sistema que se expressa nos hábitos sociais de caráter normativo, vigentes (ainda que não exclusivamente, mas ao lado mesmo de outros que os contrariem) em um determinado grupo; hábitos esses que são intimamente assumidos como válidos pelos seus membros, não lhes sendo impostos institucionalmente, como as leis.
Tais hábitos normativos são as obrigações e as proibições assumidas de modo relativamente livre como tais pelos componentes de um dado grupo, que os assimilam através de seu convívio social, e podem ser em parte compartilhados pela quase totalidade dos indivíduos do grupo, em parte exclusivos de um subgrupo e em parte exclusivos de um indivíduo.
Embora sua adoção não seja imposta, como as normas jurídicas, há mecanismos diversos que tendem a incuti-los mais ou menos sutilmente no indivíduo. Nem sempre esse sugestionamento é fruto de um projeto, mas pode sê-lo. Deste modo, a moral de um indivíduo é sempre um conjunto de valores por ele assimilados do meio social de que faz parte ou por ele desenvolvidos em sua lida mais ou menos livre com este mesmo meio. Com freqüência, associam-se um e outro processo: um indivíduo assume em parte e contesta em parte alguns ditames vigentes, criando alguns valores próprios (que, no entanto, só podem ser tidos como morais se, segundo sua avaliação, promovem o bem comum).
A moral não é universal nem estática, dado que ela varia de grupo social para grupo social, podendo, no entanto, haver compartilhamento parcial de valores entre distintos grupos, referentes aos âmbitos em que há interação entre eles, por exemplo. Outra possibilidade de compartilhamento parcial de valores se dá quando os grupos têm origem comum. Além disso, a moral varia, no tempo, em um mesmo grupo social; podendo, porém, preservar alguns elementos apesar da passagem de um momento a outro, por serem eles relativos a aspectos da vida social que se mantêm semelhantes apesar das mudanças. Por fim, a moral varia, no interior de um mesmo grupo, em um momento dado, quando neste mesmo grupo se reúnem em subgrupos indivíduos com interesses radicalmente conflitantes (embora neste contexto uma dada moral possa prevalecer, sendo no mais das vezes aquela própria do grupo mais forte). Em um contexto deste tipo, pode haver normas para a lida com membros do mesmo subgrupo e normas para a lida com não-membros do mesmo subgrupo, pelo menos em parte. Mas pode haver também valores que se alçam acima das divergências, os quais podem servir de elementos para a construção de um novo modo de convívio que não envolva a contradição em questão.
Os códigos morais existem necessariamente para cumprir uma função social, mas esta função não é sempre idêntica: ela pode servir para promover a harmonia, na constituição de um dado grupo; para manter a harmonia, em um grupo já constituído; para conter a desagregação, em momentos de crise experimentados pelo grupo em questão; e, promover mudanças, também nos referidos momentos de crise.
Embora seja necessariamente fruto de uma consciência socialmente constituída pelos indivíduos através de seu convívio, a moral não é necessariamente produto de uma consciência social crítica, podendo ser “justificada” de forma alienada ou estranhada. Por isso, não são incomuns na história humana códigos morais que se “justifiquem” por algo que não o próprio interesse dos próprios indivíduos enquanto membros de uma comunidade, tal como a natureza ou supostos entes sobrenaturais diversos.
Quanto a este último ponto, cabe a consideração de que, embora a moralidade seja um elemento da liberdade humana, isto é, da capacidade de os homens produzirem a si mesmos concomitantemente à produção de seu mundo, determinados produtos derivados de seu exercício podem converter-se em constrangimento. Isso se dá quando a legitimação de tais produtos é posta em um âmbito externo ao convívio humano, tal como se referiu acima, tornando-se muito mais difícil o seu aprimoramento, de modo que ela fica debilitada em sua capacidade de acompanhar e, ainda mais, de promover mudanças. Nesses casos, a moralidade, que é inegavelmente uma potência humana, engendra um entrave, ao invés de servir de estímulo à auto-produção livre do humano. E isto tende a ocorrer quando seu exercício se dá em um contexto de impotência dos homens diante de suas próprias forças sociais, cujo fundamento pode ser, por exemplo, um conjunto de relações sociais de dominação e exploração econômica, tal como ocorre no sistema capitalista – em que é comum determinados valores serem apresentados como naturais ou como manifestações da vontade divina.
A manifestação prática da moralidade, esteja ela inserida ou não em um contexto de impotência, se dá através de atos e juízos morais. Os atos morais são ações praticadas por dado indivíduo em função de sua convicção, justificada ou não, acerca da correção ou bondade intrínseca de tais ações, que a representa para si mesmo através de reflexão mais ou menos rigorosa. Os juízos morais são os julgamentos acerca da correção ou incorreção de uma dada ação, que podem ser promovidos pelo próprio agente, com base em suas convicções, bem como podem ser promovidos por terceiros, com base no que têm como correto. Tais convicções que servem para esses julgamentos são aquilo a que se pode dar o nome de valores e princípios.
De grande importância para o julgamento moral é a avaliação das motivações que conduziram à ação em pauta, dado que um agente pode: conformar-se sem saber com determinadas normas vigentes, o que confere à sua ação um caráter amoral; conformar-se a elas por conveniência, embora não crendo em sua validade, o que confere caráter imoral à ação em questão; transgredir tais normas sem saber, às vezes por incapacidade de avaliação e de decisão, por ignorância ou doença etc., o que faz com que se deva classificar tal ação como amoral; conformar-se a elas por convicção, de modo que em tal ação se deva reconhecer um caráter moral; transgredi-las por interesse imediato, embora convicto de sua validade, o que permite que se qualifique tal ação como imoral; transgredi-las por pressão, à força, o que confere à ação a qualificação de amoral e, por fim, transgredi-las por convicção, tendo em vista outras e melhores normas ou motivações, que são tidas pelo agente como capazes de promover o bem comum, devendo ser adotados por todos, o que faz dessa ação uma ação moral.
Desta maneira, no campo de exercício da moralidade temos: atos e formas de comportamento dos homens em face de problemas morais (aqueles cuja solução não concerne apenas à pessoa que os propõe, mas também às que sofrerão as conseqüências da ação orientada por sua decisão – colocando-se na esfera de um “dever-ser” de que depende o bem comum); bem com juízos que aprovam ou reprovam moralmente os mesmos atos e formas de comportamentos, inspirando-os ou inspirando ações contra eles. E tanto os atos quanto os juízos morais pressupõem certas normas que apontam o que se deve fazer; quer dizer, apontam aquilo que é considerado como bom, levando-se em conta não apenas o interesse imediato do indivíduo que julga e age, mas o interesse de todo o grupo a que ele pertence (portanto, seu interesse mediato, uma vez que a “saúde” de seu grupo é a condição de seu próprio bem estar).
Considera-se deste modo como moral não aquele ato que se supõe conformar apenas, mas aquele que se acredita ser motivado pelo que se considera bom, e bom para todos, não somente para quem age ou para um terceiro que venha a julgar-lhe a ação. Assim, julga-se moralmente uma ação quando se julga se a ação é boa em si mesma, com base em normas que possam ser consideradas como válidas para todos. E isto se dá, mesmo que só o indivíduo que julga as considere como tais, vindo a caracterizar-se um conflito moral no caso de tais normas entrarem em choque com as normas tidas como válidas por outros.
Em suma, para resolver seus dilemas morais, os indivíduos de um grupo recorrem a normas, cumprem determinados atos, formulam determinados juízos. E, às vezes, em alguns casos em que há conflitos entre normas, eles se servem de determinados argumentos ou razões para justificar a decisão adotada. Em tais casos, já se está aproximando do campo da Ética.
b) Ética
Quando se fala de ética não se trata de códigos de normas de conduta, mas de uma elaboração teórica acerca de tal tipo de código. A ética é um esforço investigativo e reflexivo de caráter filosófico com o qual, como com qualquer outro, intenta-se: por um lado, compreender e explicar a fundo seu objeto, pois com ela procura-se decifrar a natureza, os fundamentos e as condições sócio-históricas da prática moral; por outro, possibilitar aos homens um domínio consciente sobre o mesmo objeto, dado que por seu intermédio busca-se oferecer fundamentos para os homens fazerem uso mais consciente e, portanto, mais livre de sua moralidade.
Daí decorre ou espera-se que decorra uma contribuição para, de acordo com as necessidades e possibilidades de dado tempo, instaurar-se uma moralidade pela qual se oriente uma conduta humana verdadeiramente universal, um conjunto de preceitos que sejam condizentes com a universalidade humana e capazes de auxiliar em sua concretização. Um conjunto de preceitos que não tem ou não deve ter a finalidade de tornar os indivíduos iguais, padronizando-os, mas de garantir a todos as melhores condições possíveis para o desenvolvimento autêntico de sua individualidade, através de uma apropriação consciente e responsável de elementos socialmente disponíveis.
A Ética sucede a moral em milênios. Pois, se a moralidade se constitui a partir mesmo da mais rústica consciência social, a ética irá demandar habilidades intelectuais muito mais sofisticadas, compatíveis com um convívio social já extremamente complexo. E sua universalização, isto é, sua assimilação por parte de todos os componentes do grupo social em questão, depende da universalização das capacidades envolvidas, algo impossível em uma sociedade marcada pela dominação de uns por outros (de que a atual é um exemplo): portanto, impossível no contexto em que mais se demanda por ela.
E essa incorporação da Ética por parte de todos é impossível em uma sociedade desse tipo, porque esta tende a condenar o desenvolvimento dos indivíduos ao nível conveniente à manutenção e ao incremento da dominação; o que ocorre não só com aqueles que se instruem para a aceitação da dominação, como com aqueles que se formam para exercê-la sobre os demais. Nesse tipo de sociedade, portanto, a moralidade dos indivíduos dá origem a um conjunto de preceitos conservadores e a outras disposições que impulsionam os indivíduos à atinência a seus problemas individuais imediatos, desviando-lhes de quaisquer discussões aprofundadas acerca de sua legitimidade.
No entanto, apesar de ser indutora de conformismo, a sociedade atual impulsiona, contraditoriamente, à formação de valores e princípios que de algum modo inspiram nos indivíduos exigências morais saudáveis, as quais podem pressionar por mudanças, caso sejam devidamente trabalhadas. Na sociedade capitalista, os indivíduos podem vir e de fato vêm a ter como legítimos valores como a igualdade e a liberdade (daí serem usualmente tidas como morais as ações praticadas sob sua motivação e imorais aquelas que se praticam com vistas a seu contrário); no entanto, são levados também a crer que eles são inatingíveis. Em tal forma de convívio social, os indivíduos são estimulados pela liberdade e pela igualdade formais, necessárias à estrutura do próprio sistema, ao desejo de efetivação desses mesmos valores; mas, por outro lado, são frustrados por inúmeras determinações bem concretas, relacionadas à propriedade privada dos meios sociais de produção, que impossibilitam a efetivação daqueles valores, tais como se vê adiante.
Dado que o mesmo sistema social não pode funcionar senão a partir da idéia e de instituições que garantam aos indivíduos que se envolvem em contratos de caráter econômico sua liberdade e sua igualdade perante a lei, princípios morais são formulados e sustentados em defesa de tais valores. No entanto, dado que esse mesmo sistema se fundamenta na exploração de uns por outros, a liberdade do trabalhador se restringe ao direito de vender sua capacidade de trabalho para manter-se vivo enquanto alguém que enriquece outro, ao passo que a do capitalista se reduz àquela de comprar-lhe a força de trabalho com vistas a extrair disso algum ganho econômico, dado que se submete à necessidade inelutável de fazer lucrar seu capital; e a igualdade entre ambos se reduz, portanto, a uma identidade vazia de conteúdo, à sua caracterização enquanto livres contratantes econômicos.
O tratamento reflexivo adequado de tal problemática pode induzir a movimentações efetivas tendentes à transformação social profunda, com vistas à criação de um contexto em que de fato, e não apenas na idealidade, os homens possam se ver como livres e iguais em possibilidades sócio-históricas de desenvolvimento.
Como foi visto, os homens não só agem moralmente, mas também podem tomar esse comportamento prático como objeto de sua reflexão. É quando esta reflexão atinge determinado grau de sofisticação e rigor crítico que se dá, ou pode se dar, a passagem do plano da prática moral para o da teoria moral, isto é, da Ética. Quando se verifica esta passagem e já se está propriamente na esfera da Ética, aqueles valores que são intuitivamente adotados pelo montante mais significativo dos indivíduos podem passar a ser questionados quanto à sua possibilidade de realização, o que pode culminar na compreensão de que mudanças profundas são necessárias em nossa sociedade para que possamos de fato agir conforme os parâmetros que já fomos capazes de traçar para nós mesmos.
Os problemas éticos são mais gerais, mais abstratos. A ética não serve para orientar imediatamente a prática concreta, pois não fornece um código de conduta. Mas ela pode ajudar na sua formulação consciente, pois poderá esclarecer: a) o que é o comportamento pautado por normas, quais são as suas condições efetivas, quais são as suas funções, quais são os seus limites; b) o que é o bem comum, fim a que visa tal comportamento. E, como conseqüência prática, tem-se que ao se compreender o comportamento regrado e se decifrar aquilo que seria benéfico para todos, traça-se uma referência, um marco para se avaliar a correção ou incorreção de uma dada ação a ser praticada ou evitada em uma situação concreta, sem mesmo a necessidade de se elaborar um código específico de conduta, uma moral.
Para se determinar o que é bom para os homens, é necessário compreendê-los. Tomando como alicerce uma compreensão rigorosa do ser humano como ser que se constitui através da interação concreta e constante dos indivíduos, pode-se empreender uma reflexão ética capaz de revelar o absurdo de alguns códigos morais e mesmo instituições neles inspiradas que, fazendo-se passar por universais, não passam de uma defesa arbitrária de privilégios sócio-historicamente constituídos. Num momento histórico como o atual, em que se configura em escala global uma só comunidade humana, a partir da aglutinação violenta de todas sob a lógica daquela dominante, que se faz passar por fundamentada em valores universais e em instituições universalmente válidas, a necessidade de uma reflexão ética rigorosa se faz imprescindível. À luz de uma Ética de tal forma fundamentada, dada norma ou instituição de conduta moral pode revelar-se racionalmente insustentável em termos morais, portanto, como antiética. E isto pode vir a servir de estímulo para a sua substituição por outras mais elevadas, capazes de contribuir para a construção de relações sociais mais harmoniosas entre os homens, impulsionando os indivíduos ao combate das relações sociais que com aquela norma pretendem-se legitimar e perpetuar. Pode trazer à luz a incompatibilidade de dada forma social com relação aos valores que ela própria foi capaz de estimular em seus indivíduos.
O sistema social capitalista
Na sociedade global contemporânea, em que grande parte dos indivíduos defende um conjunto de princípios inspirados nas idéias de igualdade e liberdade, a colocação em prática de tais valores e princípios na busca efetiva pelo bem comum lhes é impossibilitada por condições efetivas, as mesmas que os inibem de refletir atentamente acerca disso.
E esta é a melhor das hipóteses, dado que é relativamente comum encontrar neste mesmo contexto sócio-histórico quem nem mesmo sustente aqueles valores. Acham-se com freqüência aqueles que não só agem, mas também assumem abertamente agir em função de seu benefício imediato, em detrimento do benefício comum, negando este fato apenas quando tal confissão de egoísmo puder acarretar-lhe algum prejuízo. Estes, com mais acerto que vários filósofos, apontam as condições econômicas como causa de seu comportamento. Mas, errando como os mencionados pensadores, naturalizam tais condições, enviando a aspiração por um mundo ético para o campo da mera fantasia.
As condições mencionadas são: a predominância e quase universalidade da forma mercadológica do intercâmbio produtivo; a forma mercadoria da própria força de trabalho e a competição generalizada entre os indivíduos. Em um contexto assim determinado, disputam necessariamente entre si no interior e através de todas as instâncias sociais: capitalistas e trabalhadores, dado que os primeiros têm o objetivo de lucrar com a exploração do trabalho dos últimos, por meio da utilização de suas capacidades para além do que se remunera com seu salário; capitalistas e capitalistas, dado que disputam entre si por mercados, com vistas à realização dos lucros extraídos dos trabalhadores através da venda de seus produtos e serviços; trabalhadores e trabalhadores, dado que as “oportunidades” criadas pelos capitalistas de sua utilização como instrumento de produção são limitadas e desiguais, de modo que agarrar violentamente para si uma dentre elas é algo que se tem sempre que esforçar por fazer, contra aqueles com quem se disputa por elas; capitalistas e trabalhadores, de um lado, e capitalistas e trabalhadores, de outro, dado que em cada empresa se fundem, contra os interesses de outras, aqueles dos proprietários e dos empregados, que obtêm da mesma fonte a sua renda; indivíduo e indivíduo, desconsiderando-se as suas relações com os meios de produção, dado que a competitividade gerada a partir das relações anteriormente apresentadas se difunde para todas as instâncias do convívio social; indivíduo e sociedade, dado que aquelas mesmas relações geram no indivíduo a consciência (acertada) de seu desamparo por parte daquele que deveria ser um grupo de parceiros; grupos particulares diversos de indivíduos e sociedade, dado que o sofrimento similar de alguns indivíduos motiva a associação deles para uma resistência mais eficaz contra um ambiente que os oprime por tal ou qual característica particular; e, por fim, grupos particulares diversos de indivíduos, de um lado, e grupos particulares diversos de indivíduos, de outro, dado que esses grupos se formam em defesa de ideais que se contrapõem, muitas vezes, aos interesses de outros grupos.
Nesta sociedade, os meios sócio-históricos de produção de riqueza não são utilizados segundo interesses gerais, mas conforme sua conveniência para o restrito grupo de proprietários privados desses mesmos meios, que os utilizam com vistas à acumulação de dinheiro, boa parte do qual é reinvestida como capital; além disso, a utilização da riqueza não se dá como forma de garantir um intercâmbio saudável e edificante dos indivíduos, mas como uma forma de manifestação de superioridade de uns com relação aos outros ou como reconhecimento de uns pelos outros.
Em tal contexto, apresentam-se elementos que propiciem que em seu seio a liberdade e a igualdade sejam louvadas como valores inestimáveis, como se viu acima. No entanto, como também já se adiantou, este conjunto de circunstâncias se caracteriza efetivamente pela submissão dos homens ao modo por eles criado de produzir a sua própria vida, no interior do qual os indivíduos ocupam posições bem desiguais no tocante ao acesso às condições de existência e desenvolvimento, de modo que aqueles valores têm sua efetivação inviabilizada desde a base mesma da sociedade.
É como denúncia desse caráter contraditório da sociedade capitalista que deve operar a reflexão e o discurso da ética. E a ação por ela inspirada deve ser aquela que, detectando as frestas pelas quais se possa minar o sistema social vigente, insira nestes espaços elementos que tendam a forçar a derrocada de tal sistema, ao mesmo tempo em que a construção gradual, já em seu interior, de outro e mais condizente com os valores que, de algum modo, aquele sistema foi capaz de inspirar, não sendo, no entanto, capaz de permitir-lhes a efetivação.
Por fim, cabe ressaltar que, por meio do exercício de uma reflexão ética nesses talhes, não se pretendem impulsionar reformas individuais prévias e exclusivas, desconectadas, que teriam como conseqüência o aparecimento espontâneo de um conjunto mais legítimo de interações sociais, apesar da manutenção das instituições humanas hoje em vigor. Tais reformas, essas auto-faxinas tão freqüentemente pregadas aos quatro ventos, são impossíveis. No entanto, não é de modo algum impossível alguma qualificação mais consistente em termos morais, que a reflexão filosófica nesse campo tem como fomentar. Assim, sem ter o efeito de purificar-lhes as almas, mas auxiliando-os a precaver-se de preconceitos, bem como os qualificando para a defesa racional de sua conduta, para a persuasão dos demais acerca de sua justeza como atitude compartilhada socialmente e para o debate moral de um modo geral, a Ética auxilia os indivíduos em um processo multidimensional de auto-constituição que envolve atuação constante e aguerrida em várias frentes, abarcando desde a detecção de grupos, movimentos e causas defensáveis até a dedicação efetiva em sua defesa e incremento.
Considerações finais
Uma vez trilhado o trajeto proposto, ver-se-á que o agente passível de julgamento moral é o indivíduo humano; não concebido de modo abstrato, mas compreendido do modo mais concreto possível, a partir de uma análise rigorosa do contexto em que age e de sua participação singular neste contexto. Além disso, ver-se-á que não se deve restringir ao julgamento da ação do indivíduo, devendo-se promover também um julgamento rigoroso do contexto sócio-histórico que condiciona tal ação. Só assim se pode contribuir para a promoção de ações que previnam a conduta antiética, orientando um ataque preciso às causas de tal ação, impedindo que se naufraguem todos os esforços na ânsia de punição, que não raro se converte em perversa válvula de escape individual, nada contribuindo com a promoção do bem comum.
Partindo-se da idéia de que um indivíduo humano, independentemente do contexto, é imediatamente capaz de refletir e tomar decisões com plena consciência dos possíveis impactos negativos de suas ações sobre a vida dos demais, apenas por ser humano, incide-se na impossibilidade de se fazerem juízos precisos sobre a correção ou incorreção da conduta deste indivíduo, por abstrair-se de seus condicionamentos concretos. Descamba-se, assim, na impossibilidade de se promover o bem comum, que é o intuito que se encontra como motivação em quaisquer julgamentos ou ações morais legítimos, ou mesmo qualquer julgamento ou ação éticos legítimos. Faz-se deste modo pesar toda a recriminação sobre o agente, mantendo-se intacta a sociedade em que ele se formou e que propicia a formação de outros de seu tipo.
Segundo as considerações aqui apresentadas, o indivíduo é capaz de reflexão e deliberação apenas enquanto membro de um grupo humano sócio-historicamente determinado. Sua capacidade de agir moralmente, ou eticamente, é condicionada pelo seu pertencimento e pela forma específica de sua participação no mesmo grupo. Essa contextualização não serve para isentar o indivíduo de sua responsabilidade, mas para que se possa obter precisão nesta responsabilização. Além disso, serve para que se alterem as condições que inspiraram a formação de seu mau caráter ou coisa que o valha.
A vida humana é vida social e histórica, caracterizada pela interação concreta dos indivíduos em um mundo que lhes é comum, e se transforma concomitantemente à transformação deste mesmo mundo promovida por estes indivíduos. Essa vida conjunta é o meio de desenvolvimento e exercício da individualidade e da personalidade humanas. O pertencimento e o modo específico de participação de um dado grupo constituem as condições do desenvolvimento e da ação individual, oferecendo-lhe as possibilidades e os limites. As possibilidades e os limites socialmente impostos são como que elementos a partir e através dos quais o próprio indivíduo construirá, ao longo de toda a vida e de modo relativamente livre, o seu próprio eu.
Esses condicionamentos não determinam estritamente a constituição do indivíduo, dado que o mesmo tem participação ativa neste processo. E o grau de consciência e voluntariedade de sua participação depende de suas capacidades reflexivas e deliberativas, que são condicionadas pela situação efetiva deste mesmo indivíduo e, de um modo ou de outro, estimuladas pela ação recíproca com os demais indivíduos em várias instâncias da vida social.
Por meio de suas ações e da recepção própria das ações dos demais, os indivíduos produzem a si mesmos. Portanto, pode-se dizer também que eles se produzem uns aos outros, uma vez que as ações de cada um repercutem direta ou indiretamente na vida dos demais. Por isso, de modo mais ou menos consciente e proposital, os indivíduos exercem “papéis sociais” a todo instante, uma vez que suas ações são sempre motivadas socialmente, isto é, por circunstâncias produzidas pela ação conjunta dos indivíduos, e tem sempre alguma implicação social, ou seja, repercutem, material e imaterialmente, no contexto em que os indivíduos interagem.
O exercício de papéis sociais não implica necessariamente em submissão às regras hegemonicamente vigentes, uma vez que as ações contestatórias são possíveis e até mesmo constantes, só não sendo mais constantes que as ações nocivas à sociedade que acabam por estimular desenvolvimento tecnológico e novas formas de interação social preventiva e compensatória. Todos esses agentes desempenham papéis sociais, não só motivando aperfeiçoamentos, mas também os inibindo em várias frentes, alcançando graus cada vez mais elevados de violência. Ações parcialmente positivas e parcialmente negativas, que são extremamente comuns, estimulam um esforço de preservação das positividades e de combate das negatividades.
A vida em sociedade oferece possibilidades e impõe limites à atividade livre e ao desenvolvimento autêntico e responsável de cada indivíduo humano. Tais condições podem e devem ser progressivamente compreendidas e adequadamente tratadas por eles, com o recurso a formas diversas e sobrepostas de livre associação, de modo que as possibilidades sejam aproveitadas em seu máximo e ampliadas constantemente, com o conseqüente afastamento daqueles limites e mesmo a eliminação de alguns. Assim, por meio de uma intrincada rede de articulações sociais coerentes entre si e conjuntamente dotadas do propósito sincero de fazer alçarem os indivíduos a graus cada vez mais elevado de consciência moral e de fortalecer-lhes a disposição para uma conduta conseqüente, os indivíduos agrupados se mostram efetivamente capazes de promover algumas mudanças significativas em sua conduta, as quais irão se acentuando à medida em que modificações objetivas profundas no tecido social forem sendo empreendidas sob o empuxo desses novos agentes forjados na luta. Mas esse processo deve ser necessariamente ancorado em profunda e abrangente compreensão do mundo e de si no mundo por parte desses mesmos indivíduos: um “conhece-te a ti mesmo” que não é privilégio de classe aristocrático e não se alcança por introspecção, como o socrático-platônico, mas é acessível a todos, devendo ser obtido por meio da crítica social radical, de que problematização da conduta moral é uma das dimensões. A Ética, portanto, diferentemente de ser um manual de boa conduta para indivíduos isoladamente agentes, que têm nos outros meros objetos de sua ação egoísta (muitas vezes precisando de um intermediário transcendental ou da lei e da força para convencer-se de que lhes deve algum respeito), deve ser entendida como parte de um projeto coletivo de criação das condições mais favoráveis possíveis a cada instante para o desenvolvimento autônomo de todos. Não deve ser vista como panacéia a ser ministrada em rebanhos de indivíduos egoístas para inocular-lhes alguma solidariedade, alguma solidariedade. É, ao invés disso, uma dimensão a mais da complexa e intrincada reflexão filosófica que se têm que fazer em meio e acerca dos movimentos de reivindicação, servindo, pois, como orientação para a luta coletiva e não como cartilha pessoal de um agente solitário.
Isso não quer dizer que em nada se pode valer no campo da Ética para ações que se praticam individualmente; quer dizer, o invés disso, que não faz o menor sentido pretender promover o bem sem engajar-se, preservando e cultivando sua autenticidade individual, nas práticas de demanda e transformação efetiva do ambiente sócio-histórico que qualquer pessoa tem como palco inevitável de seu próprio drama.
Embora cada indivíduo possa fazer muito para promover seu próprio revolucionamento pessoal, sua ação com vistas a esse fim não pode ser executada em separado de seu contexto e isolada de seu convívio multidimensional com seus pares. É necessário que se promovam associações as mais variadas, em que sejam aproveitadas em benefício de todos as capacidades próprias de cada um, resultantes de sua interação única com o mundo – a qual também é mediada pelo convívio social, como se viu.
A reflexão ética deve pressupor a variabilidade e a variação históricas da dimensão, do conteúdo e da forma dos grupos humanos, através de simultâneas e contínuas dispersões e reintegrações tendencialmente mais complexas dos grupos humanos, cujo produto constante é a formação, transformação, dissolução e fusão de modos de ser humanos, com seus valores etc. Em uma reflexão ética deve-se pressupor, portanto, o gênero humano como entidade progressivamente constituída pelo grupo humano total em sua interação sobre o mundo, em processo contínuo de autoconstrução. Como uma abstração que tende à concreção pela inclinação atual à integração de todo o grupo humano.
Mas essa reflexão deve partir também da compreensão de que a humanidade que se forma efetivamente nos dias atuais forma-se como uma unidade sem homogeneidade; marcada tanto por diferenças positivas, que evidenciam uma enorme variedade de possibilidades existenciais humanas, como por diferenças negativas, que segregam e contrapõem indivíduos em decorrência principalmente de suas relações econômicas.
Com tal reflexão busca-se, portanto, adquirir e disponibilizar elementos para a lida mais racional possível com este complexo modo de ser, que se mostra mais cooperativo e mais competitivo, ao mesmo tempo, do que qualquer outro já existente na história humana; como capaz de inspirar e frustrar de um só golpe os mais universais valores de que já se teve notícia.