Não é preciso usar a massa cinzenta, se já pensam por nós, se já entregam tudo tão mastigadinho que não há necessidade de consciência crítica. Assim os autômatos deixam de perceber que as ideias dominantes de uma época são as ideias da classe dominante, como alertava a "Ideologia Alemã" de Marx e Engels.
Por exemplo, quem acompanhar pela mídia as notícias sobre o julgamento do Mensalão, a Ação Penal nº 470 (1), no Supremo Tribunal Federal, terá a impressão de que "agora sim" os corruptos serão punidos e a moralidade restaurada no País. Terá a impressão de que nunca se fez cumprir a justiça de forma tão cabal, transparente e acertada como agora, principalmente se acompanhar as análises do "imortal" Merval Pereira -alçado agora a "jurista"- todos os dias n'"O Globo" esmiuçando os votos dos ministros. "Agora sim" o Brasil caminha para se tornar um país sério, pensarão os desavisados. Mas a realidade é muito mais complexa que isso.
Não é preciso lembrar que a sociedade está fragmentada em classes, de modo que não pode haver ideologia à margem ou acima dessas classes (2). O Judiciário não está livre disso, nem os conceitos de "justiça" e "moralidade", por exemplo. Tentar entendê-los sob uma ótica formal-abstrata é cair no idealismo. Sobretudo é preciso ser radical, o ir à raiz das coisas que Marx prega na "Introdução à Crítica da Filosofia do Direito de Hegel": entender que a base material condiciona toda a superestrutura, do Direito à religião, e que atacar apenas ("apenas", porque é evidente que há uma interrelação dialética, pois também a base recebe os afluxos da superestrutura) esta e não aquela é golpear o vazio. Só assim podemos compreender que a corrupção é inerente ao sistema, e condenar 500 Josés Dirceus não mudará uma palha nesse sentido.
Não possuo a menor simpatia pelo PT e o lulodilmismo, os quais reputo inimigos da classe trabalhadora. Isso me dá o distanciamento necessário para dizer o seguinte: repudio, não apenas o tratamento do julgamento pela mídia, como também a forma como tem sido conduzido pelo STF. Antes de tudo, como dito acima, as ideias dominantes nos meios de comunicação são as ideias dos donos dos meios de comunicação. A "direita A", com voz na grande imprensa -"Veja", Organizações Globo, "Folha"- faz a festa, em seu ajuste de contas com a "direita B", que é o próprio lulodilmismo e aliados. O mensalão é tratado, nesses veículos, como o "julgamento do século". Joaquim Barbosa, o relator linha-dura, é endeusado, enquanto o "moderado" revisor Ricardo Lewandowski é transformado em vilão. Essa polarização é reproduzida maciçamente ("ideias dominantes...") nas redes sociais. Acusações de voto vendido e ad hominem pululam a cada manifestação do revisor em sentido oposto ao do relator. Não adianta dizer que o juiz vota baseado em sua livre convicção: querem sangue.
Não entrarei no aspecto puramente jurídico da coisa. Não li os autos, e entrar em minúcias, sem conhecer detalhes técnicos a fundo, é agir como os palpiteiros que cito acima. Mas não é preciso ser jurista para saber o risco que são condenações baseadas em presunções e indícios. O in dubio pro reo é mais velho que o rascunho da bíblia; e mantém toda sua atualidade nos dias de hoje. Não pode ser desconsiderado para atender ao "clamor popular" (aspas de propósito). O risco de se cair em um populismo judicial (3) nunca é desprezível, em casos de grande visibilidade midiática. Há hipóteses -não me refiro especificamente aqui ao "mensalão"- em que o juiz deve nadar contra a corrente, julgando de forma contramajoritária. Mas com certeza é muito mais fácil "jogar para a plateia". Mesmo que não seja o caso, que dizer da postura de Barbosa, vociferando sempre que outro ministro -principalmente o revisor- contesta seu voto? Foi preciso que Lewandowski lembrasse a Sua Excelência que "contraditório se faz entre as partes, não entre os julgadores". Longe de ser um decano na Advocacia, mas com uma experiência profissional que já alcança uma década, não me lembro de já ter presenciado tanta hostilidade entre magistrados nas sessões de julgamento das quais participei. O advogado pode, e deve, ser passional. Sem paixão não se faz Advocacia. O juiz, não. Juiz não faz justiçamento, não é justiceiro. Se tem isso em sua índole, deveria ficar na Advocacia ou no Ministério Público- e não na Magistratura. Caso contrário o direito penal, "a mais drástica opção estatal para regular conflitos e aplicar sanções" (4), fica presa fácil das mais variadas idiossincrasias pessoais.
Ah, a hipocrisia disso tudo. Se toda a estrutura do mensalão foi concebida para aprovar projetos de governo, faltou indiciar também o chefe do governo: o ex-presidente Lula em pessoa. É absurdo supor que desconhecia tais amplas negociações que ocorriam sob seu nariz. Mas será que ousariam indiciar, denunciar, julgar e quiçá condenar o presidente de maior popularidade dos últimos tempos? Nem a direita mais raivosa teve coragem de exigir isso. O maior beneficiado pelo mensalão é poupado, portanto, e a culpa recai sobre paus-mandados e "secretárias mequetrefes". E o mensalão tucano (5), em Minas Gerais, será apurado a fundo? Também terá magistrados mão-pesada, ávidos por condenar? Que dizer dos escândalos dos anos FHC? Aliás, a pergunta que não quer calar: se o mensalão petista teve por objetivo compra de apoio, por que as iniciativas aprovadas graças a essa compra -reconhecida como ilegal, daí a punição aos corruptos e corruptores- não são anuladas? A reforma da previdência, que tal...? Daí, como nunca a Justiça burguesa mostra sua real natureza, parcial, contraditória, míope, ao sabor dos interesses dominantes.
Não deixemos espaço para falsas impressões. Todos os ministros do Supremo Tribunal Federal, em sua atual composição -com exceção de Dias Toffoli, cuja sorte foi a de ter sido sempre advogado do PT, afinal "quem tem padrinho não morre pagão"- são juristas de alto nível. Joaquim Barbosa inclusive. Não é isso que está em discussão. Também não se quer aqui poupar mensaleiros. Crimes contra a administração pública têm, em regra, como grande vítima a classe trabalhadora. Devem ser repudiados e punidos de forma exemplar (6). O que é preciso é o seguinte: levantar o véu de hipocrisia que envolve o "julgamento do século". Na sociedade de classes, a Justiça é uma Justiça de classe (dominante), e na Ação Penal nº 470 temos apenas o acerto de contas entre setores dessa mesma classe.
NOTAS
(1) O andamento pode ser acompanhado pelo sítio do STF, aqui - http://bit.ly/eurxqZ.
(2) Lênin, "Que fazer?".
(3) Luís Roberto Barroso, "Constituição, democracia e supremacia judicial". Disponível aqui: http://bit.ly/SOK2SJ.
(4) Guilherme Nucci, "Manual de Direito Penal".
(5) "Quem escondeu o mensalão mineiro?" - http://bit.ly/OrRqq0.
(6) O que não quer dizer que haja necessidade de mais e mais tipos penais e de penas mais e mais graves. Veja-se nesse sentido "Pena & demagogia", de Fernanda Tórtima, na Tribuna dos Advogados (OAB/RJ) nº 520, outubro de 2012.