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1. Não há futuro para o atual projeto de padronização do galego quanto à constituição deste em língua nacional. E não há futuro não só polo modelo formal escolhido, mas, fundamentalmente, pola base ideológica e o tipo de ações que promove. Embora o modelo formal puder apelar pola sua pretensa fidelidade a uma tradição culta escrita (no oral, que saibamos, não há gravações de Manoel António), o modelo fracassa nas fórmulas de capitalização linguística. Não cria adesões maciças, simplesmente porque essa tradição não existe no plano da vida diária. E não entra noutros processos de formação de capital sobre outras bases pola sua subsidiariedade — económica, simbólica e jurídica — ao quadro de referência español.
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2. Pola mesma razão, não haveria qualquer futuro para um modelo lusógrafo pretensamente alternativo (“reintegracionista”) quanto à constituição do galego-como-português em língua nacional se estiver baseado em semelhantes premissas: filologização e desligação das vidas diárias. As alternativas vão por outros caminhos.
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3. Não há qualquer garantia (talvez, nem hipótese) de consolidação do galego no nível “macro” (naturalmente, detendo e vencendo gradualmente o processo de substituição linguística) sem alguma forma de soberania ou soberanias (política, social, cultural, económica, meio-ambiental, de género, etc.), isto é, de autogestão. Esta soberania seria condição necessária, mas não suficiente, para gerir o idioma e ré-inseri-lo na vida social duma maneira nova que não constituísse, como agora, um obstáculo para os relacionamentos de várias índoles, os projetos de vida, e a autogestão em outros aspetos desta.
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4. Mas, esta soberania poderia dar numa “Galiza” (no seu conjunto) mais bilíngue nos usos locais do que é na altura, à margem dum hipotético estatuto do português/galego como língua exclusiva ou predominantemente oficial e institucional, se tal regulamento existir. Isto é, a soberania moderna só pode surgir duma articulação de formas de identidade(s) (nacional, local, internacional e internacionalista) diferente ao ideologema do “nacional” como parâmetro praticamente exclusivo. Isto acarreta por definição a confluência de vontades sociais progressistas e soberanistas diferentes das que ofertam não só um nacionalismo de base étnica, mas também um de base cívica, se entendidos estes como reduções de vocação totalizadora. As formas de soberania e autogestão são múltiplas, desde iniciativas cooperativistas de base até ao amplo projeto da emancipação e independência nacional, passando polas identidades locais, comarcais (do “país” ou “terra” respetivos). E, nestes âmbitos simultâneos e complementares (e outros que afetam outras identidades, como a de género), as formas de identificação e de engrenagem do idioma com as práticas sociais diárias são também diversas.
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5. Não é previsível que, mesmo num panorama assim, se impusesse a curto prazo uma única visão e prática do idioma (“isolacionista” ou “reintegracionista”) — mesmo à margem, novamente, do seu estatuto oficial — . A pretensa base fonemicista como “mais fiel à fala” do projeto atual ativa formas de identificação com este modelo de base diferente às do modelo lusógrafo internacionalista, que é pretensamente mais “distante” da fala, mas que se nutre de outroselementos, diacríticos culturais e referentes. E, por isto, não é cabal esperar exatamente a regência dum princípio de identificação socialmente uniforme com um idioma que nunca antes estivera nacionalizado nos diferentes setores sociais. Esta uniformidade de ideologia linguística só é possível, precisamente, nos Estados-Nação onde se impõe ou se quer impor o valor unificado de troca dos padrões linguísticos (a España, Portugal). Mas reparemos que estaríamos a falar dum outro modelo de construção nacional soberana (não só dum aparelho formal sequestrado polo capital), sob outros princípios de relação entre as realidades económicas e sociais e a língua como veículo, recurso e símbolo.
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6. Portanto, parece plausível que um panorama futuro de consolidação do galego deveria, inevitavelmente, de conter elementos muito heterogéneos de práticas linguísticas, identificações com estas práticas, e relações destas práticas com outras práticas sociais. Estaríamos a falar dum panorama em dinâmica fragmentação, tensa mas sustentável, semelhante a uma orografia sociolinguística mudável, e com interesses sociais diferentes mas não inimigos, entre, basicamente, projetos orientados a que um dado idioma ou uma dada forma do idioma (español, galego-como-galego, ou galego-como-português, ou combinações de estes) os canalizasse e identificasse, com funcionalidade real (naturalidade e naturalização). Seria um panorama, em qualquer caso, onde o Princípio de Exclusão que até agora nos rege estivesse, por definição, ausente.
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7. Neste panorama, e com os olhos postos neste panorama, um objetivo do reintegracionismo pode ser (e já está a ser) o de procurar construir espaços onde esta visão e prática da língua produza formas de identificação efetivas e sustentáveis, articule grupos e vontades, e gere recursos (formas de capital), à margem de (e numa forma de concorrência com) outros projetos e formas de ver a língua. Neste contexto, o lógico alvo da expansão social e geográfica (e, em sociolinguística, o âmbito urbano também é geografia) do galego-como-português não seria uma consequência historicamente necessária e inevitável (que não é), mas resultado dum crescimento reticular e radicular de agires sociais e experiências que consolidassem uma coesão naturalizada entre língua(s) de uso, práticas sociais emancipadoras e enatuação de identidades.
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8. Este processo de base não substitui a necessidade duma ação superestrutural por ir introduzindo “elementos de Português” no quadro institucional atual. Talvez os efeitos das ações institucionais, também importantes, sejam pequenos no imediato, mas positivamente imprevisíveis noutra escala temporal. Se nalguma altura for possível uma nova soberania capaz de quebrar o quadro institucional español, será pola convergência de diversas ações de base e “de altura” (lembremos que qualquer instituição também não “preexiste” no vazio, mas é um campo de posições grupais e de atos), fundamentadas na diversidade ideológica dentro do campo soberanista progressista, e orientadas para um novo modelo económico-social. Se não for assim, de novo, estaríamos a reproduzir a formação do Estado do capital, que, por muito que seja “independente”, não garante a soberania e as soberanias.
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9. Evidentemente, a situação atual não aponta a que nada disto seja possível por “evolução espontânea” duma maquinaria económica e política atroz. Mas, quando a “crise” ocidental do dinheiro situa simultaneamente a afrenta à dignidade coletiva e individual e o confronto com o poder económico-institucional no nível mais alto das últimas décadas, existe a oportunidade de religarmos os pedaços fragmentados da consciência e reintroduzirmos a questão linguística e cultural (as questões do reconhecimento) como aspetos consubstanciais dessa dignidade, e como peças também estratégicas na gestão do confronto de classe, numa diferente visão da construção da hegemonia e da soberania à que tem acompanhado a política (também a política linguística) até agora.
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10. Em resumo, não se trata nem de esbanjar toda a energia num retórico protesto suicida contra um Estado que jamais cederá no seu intuito de laminação da Galiza, nem da procura dum “consenso” com setores agora objetivamente interessados e comprometidos — pola sua subsidiariedade e pola sua falta de visão emancipadora — num projeto cultural e de língua incompatível com o do reintegracionismo. Tampouco se trata, evidentemente, dum “diálogo” fútil, com bases distorcidas à partida (o Princípio de Exclusão), sobre qualquer hipótese de ação geral comum. Trata-se da articulação, efetiva e socialmente real (com resultados visíveis na vida diária) entre a ação linguística em favor do galego — e, nomeadamente, da visão e prática do galego como português — com iniciativas e projetos cívicos (sociais, económicos, culturais) de vontade emancipadora no local, crescentes e sustentáveis, que sejam capazes de ir convocando também fragmentos gradualmente mais amplos de setores mesmo programaticamente adversos, dentro dos mais frutíferos princípios da autogestão cooperativa.