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António Santos

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O Fantasma de João Mau-Tempo

Estupidez soa melhor em inglês

António Santos - Publicado: Terça, 22 Mai 2012 08:23

A língua é a expressão cultural de um povo e reflecte a sua formação histórica nos medos, esperanças e fragilidades de uma sociedade. O desaforo de estrangeirismos anglófonos e o fascínio pacóvio pela língua de Shakespeare são apenas a espuma de problemas culturais mais profundos: revelam a erosão de soberania económica e perda de autoestima.


A adopção de estrangeirismo é parte natural e salutar da evolução de qualquer língua. Ao dicionário português, incorporámos ao longo dos séculos palavras de origem latina, celta, árabe, francesa, tupi, chinesa, espanhola e, naturalmente, inglesa. Só os puristas da língua, não compreendem que da miscigenação linguística depende a sua sobrevivência. E que ao evoluir ao sabor dos organismos sociais que as criaram, também as línguas tomam contacto com outros povos, emprestando vocábulos e aprendendo sons, enriquecendo-se mutuamente nesse intercâmbio.

No entanto, a avalanche de expressões inglesas na nossa língua, não traduz um contacto verdadeiro com outros povos nem um interesse genuíno por outras culturas: Não preferimos ouvir cantar em inglês por apreciarmos poetas ingleses, nem usamos a sua língua por termos amigos americanos. Pelo contrário, a nossa ligação à língua inglesa é, em larga escala, uma relação de submissão a uma civilização que produz tecnologia e cultura que julgamos superiores. O nosso deslumbramento pelo inglês é fruto de um processo psicossocial de valorização de marcas, lojas e produtos de consumo. Da mesma forma que os índios brasileiros tentavam papaguear a fala dos colonizadores portugueses, hoje tentamos emular a língua do deus gringo para satisfazer uma ânsia bacoca por modernidade.

Não vos vou mentir, tenho uma reacção alérgica a portugueses que gostam de escrever em inglês no facebook: “Vanessa, já escolheste o teu birthday cake”; “Don’t worry Soraia, estamos sempre contigo”; “Carla, comer carne sucks!”; “Ó my god Cátia, pintaste o cabelo outra vez?” ou “A nossa family é mêmo do best, não é, ó Sandra?”. Para muitos, as palavras inglesas têm poderes mágicos e pronunciam-se como mantras sagrados, mesmo que com erros ortográficos e pronúncia macarrónica. Com efeito, o conhecimento de inglês da maioria destes anglófonos amadores, reduz-se ao emprego de expressões idiomáticas decalcadas dos filmes e palavras isoladas que se aprendem na MTV, o que é a mesma coisa que pretender saber como funciona uma televisão por saber o nome de todas as peças.

Mas que ninguém se engane, o assombro pelo inglês não é só doença de adolescentes. Cada vez mais artistas portugueses tomam a bizarra decisão de cantar em inglês. São artistas que viveram todas as suas experiências de vida em português, que pensam em português, que cantam unicamente para um público lusófono e que, no final das músicas, agradecem com um “obrigado”. Muitos artistas, explicam que em inglês a música “soa melhor”. (Coisa misteriosa!) Dizem que “há qualquer coisa” no idioma de Camões, que faz as letras soarem… ridículas! Na verdade, a música em inglês não soa melhor, é a nossa sensibilidade que é mais apurada para a métrica, semântica e fonética da nossa língua materna. Quando cantamos noutras línguas não conseguimos detectar o ridículo, mas acreditem, ele está lá.

É essa sensibilidade que justifica que não forcemos palavras estrangeiras onde elas não têm sentido. Quando tentamos intrometer estrangeirismos por graça de expressividade ou hodiernismo, perdemos em significado. É que por detrás de cada palavra, mesmo das mais corriqueiras e banais, vivem pequenas nuances culturais que regulam a força e acepção dos vocábulos e que só os falantes nativos entendem.

Também os nossos jornais importam cada vez mais palavras alienígenas no seu idioma original: O jornal i, é nesse aspecto, recordista: li há dias um artigo sobre um partido grego chamado “Golden Dawn”. Reparem bem: um partido nacionalista grego chamado “Goden Dawn”. Em praticamente todas as peças deste diário, encontramos expressões como commodities, day-after, Zion, mainstream, quotes, ratings, pipelines, sprints, insight, know-how, layout, etc. Todos estes exemplos, têm traduções apropriadas para português, mas como os nossos jornalistas desconhecem a riqueza da sua própria língua, vão comprar no estrangeiro as coisas que têm há séculos guardadas no sótão. Estes tecnocratas da economia, da ciência política e da informática (campos cercados de ocultismo), mantêm certas palavras em inglês para as elevar ao estatuto de totens, ídolos de nebulosos e incompreensíveis desígnios.

O zénite do servilismo filológico, atingiu-o o governo quando há dias, entregou ao deputado comunista Honório Novo um documento oficial sobre desemprego, escrito na íntegra em inglês. O deputado do PCP respondeu com o brio e a dignidade que a situação reclamava e recusou peremptóriamente aceitá-lo.

Mas a invasão de anglicismos é só a ponta do icebergue. O problema real é que a globalização do sistema capitalista afinou o intercâmbio cultural entre os povos pelo diapasão dos valores estéticos americanos. De nada vale promover, incentivar e valorizar a expressão de língua portuguesa sem a devolução da soberania política, económica e financeira. Os mesmos titãs, portugueses e estrangeiros, que detêm os meios de difusão cultural, detêm também os nossos bancos, as nossas empresas, as nossas terras e as nossas vidas. E continuarão a marcar o compasso da nossa assimilação cultural até que a economia e a cultura sejam colocadas ao serviço do povo e dos trabalhadores portugueses.


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