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António Santos

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O Fantasma de João Mau-Tempo

A América em Maio

António Santos - Publicado: Sexta, 11 Mai 2012 22:07

Uma greve geral abalou os Estados Unidos, no passado 1 de Maio, Dia Internacional dos Trabalhadores. O convocante não foi um sindicato nem um partido, mas essa criatura multicéfala a que se convencionou chamar Occupy Wall Street.


O seu crescimento foi tão explosivo, que arrastou consigo toda a esquerda estadounidense; o seu impacto, tão dramático que repôs na liça política questões há muito banidas do léxico democrático americano e trancadas num pretenso e irremediável pretérito marxista.

O Massacre de Haymarket

Para compreender como surge o Occupy e a greve de 1 de Maio, teríamos que percorrer cem anos de chumbo. Cem anos de prisões, ameaças e vinganças contra a organização operária americana. Um século de repressão inaugurado em Maio de 1886, numa greve em Chicago pelas oito horas. Na mortífera sanha de a furar, patrões e o seu braço armado policial, desencadearam uma onda de protestos que resultou na condenação à forca de sete dirigentes sindicais.

http://www.youtube.com/watch?v=cxfZtNEG1xU

A burguesia estava assustada, e tinha razões para estar. Por todo o país explodiam as greves e a popularidade do socialismo. De São Francisco a Boston, floresciam os sindicatos de classe e as organizações anarquistas. Do cadafalso, August Spies, um dos sindicalistas executados, profetiza: “Há-de chegar o dia em que o nosso silêncio será mais poderoso que as vozes que hoje estrangulam”. E assim foi, milhões de trabalhadores em todo o mundo, transformaram a data numa exposição internacional de solidariedade operária, numa mostra inequívoca de consciência de classe. Como se tal não bastasse para alarmar os patrões, em 1917 a Rússia socialista torna-se no primeiro país do mundo a fazer da efeméride um feriado nacional, vingando a morte dos anarquistas de Haymarket com a instituição do dia de trabalho não de 8, mas de 7 horas!

110512 grafico1A voz do fantasma de August Spies tornou-se insuportável para os multimilionários americanos, que trataram de apagar o massacre da História e a data do calendário. Criaram então o “Dia do Trabalho” em Setembro para calar Maio. E ao longo dos anos, foram inventando novos nomes oficiais para chamar ao primeiro dia deste mês: “Dia da Americanização”, “Dia da Lealdade” e hoje, “Dia da Lei”. Toda uma semântica bem comportada para evitar atitudes tão subversivas como exigir o dia de oito horas, reformas de velhice, ou saúde e educação para todos.

Do Massacre da Praça de Haymarket em Chicago aos nossos dias, o Governo americano conseguiu matar o movimento socialista e transformar a maioria dos sindicatos em gatinhos mansos e assustados. Hoje, menos de 12% dos trabalhadores americanos são sindicalizados e os seus líderes são constantemente assediados e discriminados. Outros, como o sindicato a que pertenço, funcionam como uma verdadeira corporação italiana: mera correia de transmissão institucional, a que o patrão obriga o empregado a pertencer para melhor o controlar.

O Sonho Morreu

A destruição paulatina das organizações dos trabalhadores americanos, abriu passo à desregulamentação do mercado de trabalho na medida da gula de Wall Street. Só nas duas últimas décadas, o salário mínimo caiu 10% enquanto os lucros das empresas aumentaram 100% e o salário dos presidentes das maiores companhias subiu 300%. Lentamente, o mito da “classe média americana” começou a morrer. Há 30/40 anos atrás, a maioria dos estado-unidenses acreditava que a América era a terra das oportunidades: que se trabalhasses muito, podias ter uma vida digna, com carro, casa, um daqueles relvados que vemos nos filmes e dinheiro para a educação dos filhos. O “Sonho Americano” foi um dispositivo ideológico inteligentíssimo: convenceu 150 milhões de pessoas que há umas 400 tão inteligentes que merecem 50% de toda riqueza. E que se tu não fazes parte desses quatrocentos multimilionários e não tens dinheiro para um seguro de saúde, é porque, das duas uma: ou és preguiçoso ou estúpido. Seja como for, a tua sorte a ti a deveste, e como bom americano, hás-de acreditar na justiça da tua própria infelicidade e odiar-te a ti mesmo.

110512 grafico2Mas virou-se o feitiço contra o feiticeiro. O mito da “mobilidade social” foi usado precisamente para a destruir. A desregulamentação do mercado de trabalho, o emagrecimento do Estado social e a privatização e encarecimento da vida, cavaram uma autêntica fossa comum entre ricos e pobres, o que por sua vez, reduziu as chances reais de sair da pobreza que afecta mais de 15% da população a uns inverosímeis 2%. A utopia de uma sociedade dividida entre “os que têm” e os que “em breve terão” revelou-se um logro para separar “os que sempre tiveram” dos que “nunca terão”.

É contra estas desigualdades astronómicas que a pequena burguesia cria, há um ano, o Occupy. Não pretendem representar nenhuma classe social, mas 99% dos americanos por oposição aos 1% mais ricos. Ao centrarem o problema na distribuição da riqueza, aceitam que o capitalismo a pode gerir de uma forma mais justa, sem beliscar a propriedade dos meios de produção. Por outro lado, os activistas dos parques de campismo improvisados, misturam este ingénuo reformismo bersteiniano com uma retórica e modus operandis decalcados do anarquismo situacionista mais radical: recusando as hierarquias, a representação e as votações, e arrastando as decisões em intermináveis assembleias gerais, baldadas em conclusões malgrado os milhares de pessoas.

Entre a Cooptação e a Revolução

Não é preciso muito para diagnosticar no Occupy a marca de classe da pequena burguesia atacada pela crise. Mas sobretudo, a natureza do movimento explica-se com o próprio estádio primitivo do desenvolvimento da luta de classes nos EUA, adiada um século pela repressão. A luta de classes na América está a recomeçar a infância, e muitas das características do Occupy remontam às organizações socialistas utópicas do século XIX.

Mas nem as revoluções se fazem com régua e esquadro nem a realidade é estática. O Occupy nasceu onde só havia deserto, colocou em cima da mesa os crimes do capitalismo e a discussão atraiu milhões de pessoas que nunca antes haviam participado na vida política. Primeiro o Estado procurou ignorar o movimento. Depois, quando as ocupações se estenderam a todas as grandes cidades, tentaram matá-lo com milhares de detenções, cargas policiais e demolição dos acampamentos. E quando compreenderam que o Occupy não se cala com bastões pela mesma razão que nenhum problema social se resolve policialmente, tentaram cooptá-lo.

Desde há meses, que a MoveOn e a American Dream, duas organizações de fachada progressista do Partido Democrata, injectam milhões de dólares na cooptação política do Occupy. Para além dos seus dirigentes praticarem um entrismo descarado, estas estruturas apropriam-se ilegitimamente do nome do Occupy para promover a reeleição de Obama. Nestes dias, o Partido Democrata tenta fazer ao Occupy o que o Partido Republicano conseguiu fazer com o Tea Party.

Ninguém sabe em que direcção ruma o Occupy. Mas é certo que não pode ficar no mesmo lugar. De um lado, estão os “progressistas” democratas, que também lá estavam quando Obama precisava que alguém justificasse porque é que não se cumpriram as promessas do sistema de saúde público ou do fim das guerras imperialistas. Do outro lado, está o socialismo científico.

Do Parque Zuccotti à Greve Geral

A Greve Geral do passado dia 1 de Maio foi um sinal importante de que o Occupy pode sobreviver à tentativa de cooptação. Em colaboração com dezenas de sindicatos, o Occupy, apelou aos “99%”, que mostrassem que sem os trabalhadores, a sociedade pára. E embora vários sindicatos tenham colaborado, nenhum sindicato apelou à greve. É que nos EUA, é estritamente ilegal fazer greve por qualquer motivo alheio ao local de trabalho. Greves gerais, políticas ou de solidariedade podem levar à prisão dos dirigentes sindicais e ao despedimento dos trabalhadores. E mesmo tratando-se de uma greve contra a decisão de uma empresa específica, o patrão pode contratar um “substituto temporário”, deixando o grevista desempregado até ao final desse contrato a termo. Por estas razões, a greve foi sobremaneira selvagem o seu sucesso difícil de medir. No entanto, sabemos que onde os sindicatos encontraram coragem, a greve funcionou: a fábrica da Caterpillar parou, o aeroporto internacional de Los Angeles fechou e os feries da Golden Gate ficaram em terra. E por todo o país mais de 200 000 pessoas saíram à rua.

Mas principalmente, a greve surpreendeu pela adesão de vários sindicatos nacionais, dos taxistas, à construção civil, passando por inúmeras associações de imigrantes e igrejas progressistas. Neste largo processo de construção de alianças, muitos activistas do Occupy tomaram contacto com as lutas concretas de amplas camadas da classe operária e aprenderam com a sua vasta experiência. E com a greve, milhares de trabalhadores mediram a sua força, adquirindo consciência de que os seus interesses comuns se conquistam em combate e não por consenso; que o caminho para a mudança está na construção e canalização do poder de quem precisa dessa mudança. Que não depende de abrir os olhos aos cegos nem de convencer os recalcitrantes, nem mesmo de pedir com jeitinho: depende sim, de acumular a força bastante para arrebatar a mudança a quem ela não convém.

Depois da Greve, a Luta.

O grande capital financeiro não vai abrir mão do seu império mais facilmente que em 1886. Ao Occupy cabe o dever histórico de fazer o que melhor tem feito: suscitar o debate para questões fracturantes e inspirar o protesto colectivo. Mas para não se defraudar a si mesmo, o movimento deve assumir posições de classe claras, tornar-se mais conciso e organizado e contribuir para o fortalecimento da luta contra o capitalismo sem cedências a democratas nem republicanos. Não pode continuar a suscitar a esperança chilra que Obama traiu, nem o discurso desbaratado de um serôdio Maio de 68. Em vez de confusão, deve inspirar revolução.

Desde 1 de Maio, alguns capítulos do Occupy já o compreenderam. Em Los Angeles, o Occupy já se assume anti-capitalista e anti-imperialista. Em Boston, os imigrantes da América do Sul trouxeram com o Ocupemos El Barrio uma lufada de coerência e combatividade. Em Chicago, acaba de se marcar um protesto contra a NATO. Em Portland, agendou-se um dia de protesto pelo sistema de saúde público, gratuito e universal. E em Nova Iorque, os sindicatos que chegaram com a greve prometeram ficar.

Apesar de pejado de contradições, o Occupy tem prestado um serviço valoroso aos trabalhadores norte-americanos. Forçou o governador de Nova Iorque a criar um imposto para milionários; criou um espaço para unir diferentes organizações, partidos, sindicatos e associações até então desligados; impediu milhares de execuções hipotecárias ilegais; segundo pesquisas recentes, foi responsável por inflacionar o sentimento de antagonismo de classes de 50 para 75%; criou extensas redes de activistas com meios alternativos de comunicação; devolveu à ribalta palavras como “socialismo”, “luta” e “greve”; Segundo o Pew Research Ceenter, desde que o Occupy nasceu, a percentagem de americanos que vê favoravelmente o socialismo aumentou para 29%. E enquanto que o futuro do Occupy permanece uma incógnita, já este sistema, sabemos por certo não ter futuro.


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