Atado polos pulsos, o capataz perguntava-lhe:
- Como te llamas? -e ele respondia-
- Kunta.
- No, tu nombre de esclavo es Toby!
E chas! Chas era o ruído que fazia o chicote nas costas do escravo Kunta, um rapaz de dezassete anos que, capturado em África, fora levado à América num barco negreiro e submetido à escravatura. A sua escravatura começava com umha troca de nome.
- Como te llamas?
- Kunta.
- No, Toby!
E chas! E assim repetidamente, num dos momentos mais dramáticos da história da televisom.
Aquela série foi umha adaptaçom do best-seller Roots, de Alex Haley, um livro que se apresenta na ediçom que eu tenho como "O testemunho mais eloquente nunca escrito sobre a grandeza e a liberdade dos homens". E das mulheres, claro.
Quando Alex Haley era um meninho, a sua avó Cynthia contava-lhe histórias sobre o passado da sua família até chegar a um devanceiro ao que chamavam o africano. Esta é umha história sobre a força da transmissom oral, esse fio de palavras que, nunca escritas, atravessam o tempo de geraçom em geraçom.
A história daquele africano que lhe contara a sua avó, e a esta a sua avó, era a história do tatara tatara tatara avó do pequeno Alex.
A avó Cynthia falara ao seu neto sobre um rapaz de dezasseis anos que se chamava Kintey, e que, procurando madeira para fazer um ko, perto dum lugar chamado Kamby Bolongo, em África, foi capturado e levado a um barco de escravos que o levou até a América, onde lhe dérom o nome de escravo Toby.
- Mamá, por que nom deixas de falar ao neno dessas cousas de escravos? Som umha vergonha, dizia-lhe à sua mae a mae do pequeno Alex.
- Se a ti nom che importan donde ves, a mim sim, respostava Cynhtia.
Álex cresceu sem esquecer aquela história. Fijo-se escritor e jornalista, foi colaborador de Malcom X e entrevistou Miles Davis e Mohamed Ali, entre outras muitas cousas, e um dia decidiu investigar sobre o passado da sua própria família.
Mas só tinha aquelas quatro palavras que chegaram desde África havia mais de 200 anos: ko, kambi bolongo, kintey. Com aquelas quatro palavras viajou até um lugar onde pensou que poderia dar com gente de todos os países da África: a sede da ONU em Nova Iorque. Ali, durante dez dias, à saída do trabalho, foi perguntando a dúzias de africanos se conheciam algum daqueles sons que ele pronunciava com sotaque de Tenesse: ko, kambi bolongo, kintey. Alguns penáarom que era louco.
Mas um dia alguém lhe deu o contato de um lingüista especializado em idiomas africanos, o belga Jan Vansina. E foi falar com ele.
Vansina, que escrevira o livro La tradition oral, estava muito interessado na transmisiom física da narraçom através das geraçons e escuitou-no com muita curiosidade. E dixo-lhe que aqueles sons eram quase com certeza palavras da língua mandinga.
A palavra ko podia referir-se ao kora, un instrumento de corda. E kambi bolongo podia estar composto pola palavra bolongo, água que corre, e Kamby, Gámbia: Rio Gámbia.
Alex Haley viajou a Gámbia. Ali contou dúzias de vezes a sua história a quem a quijo escuitar... E aqui a história pom-se outra vez maravilhosa, como nos explica o próprio Haley: "Depois contárom-me algo que eu nunca teria imaginado que pudesse existir: havia homens muito velhos, chamados griots, que eram arquivos viventes e ambulantes de história oral. Havia griots lendários que narravam momentos da história africana até durante três dias inteiros".
Alex Haley descobriu que durante muito tempo a memória, a boca, os olhos e os ouvidos foram os únicos meios que tinham as pessoas de armazenar a transmitir informaçom.
E assim foi como Haley conta que lhe dixérom onde podia dar com um griot que sabia muito do clam dos Kinte. Chamava-se Kebba Kanji Fofana.
Alex alugou umha lancha, um jeep, contratou os serviços de 14 persoas, incluídos 3 intérpretes e quatro músicos, porque lhe dixeram que os velhos griots nunca falavam sem música de fundo. E adentrou-se na selva até chegar a Juffure, umha aldeia de 60 pessoas, de casas redondas de barro e telhados de palha, quase como havia 200 anos.
E o griot começou a falar e da sua cabeça surgiu a linhagem complexa dos Kinte: quem casou com quem, como se chamavam os filhos, os seus destinos... Algo incrível. E falou e falou durante duas horas e chegado um momento dixo: "Na época em que chegárom os soldados do rei, o maior dos filhos, Kunta, afastou-se da aldeia para cortar madeira e nunca voltou a ser visto."
Alex Haley chorou com a emoçom. E decidiu escrever aquela história: Raízes.
Mas a sua investigaçom nom finaliza aqui. Em Londres descobriu que o ano em que chegaram os soldados do rei a Gámbia era 1767. E logo viajou a Virgínia, onde leu milheiros de escrituras de compra-venda daqueles anos, até dar com umha em que um tal John Waller transferia a William Waller 240 acres de terra e um escravo chamado Toby.
Esta é a asombrosa história que nos conta Alex Haley nas últimas vinta páginas de Raízes. Se procuras informaçom na wikipédia poderás ler que há quem cuestionou a vericidade dumha parte desta história. O próprio Haley reconheceu que se inspirou num romance titulado O Africano para escrever Raízes.
Mas, à margem da discusom sobre a percentagem de verdade histórica do livro, o certo é que Raízes, Roots, segue a ser um drama monumental sobre um homem, Kunta Kinte, e as seis geraçons que vinhérom atrás dele. Como assinala a contra-capa do exemplar de Ediçons Ultramar, de 1977, que eu tenho na mao: "Esta história redescobriu a um povo inteiro umha rica herança cultural que a escravatura lhes arrebatou, como lhes arrebatou os seus nomes e identidade".
E esta é a história de como quatro palavras, Ko, Kambi bolongo e Kintay, atravessárom douscentos anos de boca em boca, de avós a netos, de maes a filhas, e originárom umha das narraçons mais emocionantes entre as emocionantes histórias das palavras dos povos oprimidos, a história daquele home que nasceu livre com o nome Kunta e perdeu a liberdade quando lhe pugérom o nome de escravo Toby.
Fonte: Dioivo